Nova era nas relações com a África do Sul?

Em termos absolutos, depois de uma revisão na forma de computação das contas nacionais, a Nigéria passou a ter a maior economia de África mas em termos relativos não restam dúvidas que a África do Sul tem a economia mais sofisticada e poderosa do continente. Curiosamente, Angola manteve nas últimas décadas uma relação muito pouco assertiva com a África do Sul por razões que desafiam a lógica. Contudo, o presidente João Lourenço tem estado a dar sinais que pretende iniciar uma nova era nas relações com a África do Sul.

O presidente João Lourenço tem visita marcada para a África do Sul com quem o país tem na calha um acordo de supressão de vistos para visitantes com passaportes ordinários dos dois países com potencial impacto positivo na mobilidade e turismo. Os meses iniciais da presidência de João Lourenço têm sido positivamente surpreendentes com realce para o passo das mudanças  que transmite a ideia clara que existe consciência na necessidade de mudar urgentemente o rumo do país e que o mandato que emanou das eleições do passado mês de Agosto está limitado à 5 anos.

A economia da África do Sul é três vezes maior que a nossa e muito mais moderna, com um sector financeiro dominado por bancos com grande capacidade técnica e financeira e com uma capitalização bolsista acima de USD 950 mil milhões (JSE). Com efeito, algumas pessoas tem estado a apresentar a dimensão da economia sul-africana como uma barreira para maior integração de Angola na SADC porque alegadamente a nossa economia seria dominada por empresas sul-africanas, ignorando-se os efeitos positivos para a economia com maior investimento, concorrência e aporte tecnológico necessário para modernização da nossa economia.

PIBSADC
Fonte: FMI

A economia sul-africana emergiu recentemente de uma recessão e voltou ao crescimento que continua anémico, tal como o nosso, mas o apetite para investir das grandes empresas sul-africanas não diminuiu e Angola é um mercado que reunidas as condições, incluindo a vontade política, seria um porto natural para as empresas sul-africanas que buscam expandir para além das suas fronteiras.

Em 2016, a população da SADC (incluindo as Ilhas Comoros) era de cerca de 330 milhões de habitantes, sendo que dos 16 países apenas 7 tinham mais de 20 milhões de habitantes e destes, apenas dois tinham um PIB per capita superior a USD 3000: África do Sul e Angola, o que torna o nosso país no segundo maior mercado de consumo na região e este facto constitui um factor de atractividade de investimento a explorar, nomeadamente se combinando com melhorias significativas a nível institucional.

Contudo, apesar de todos os empecilhos aqui enumerados, a vontade de investir em Angola por parte de empresas sul-africanas é evidente pela dimensão e qualidade do investimento sul-africano em Angola em diferentes sectores de actividade, que por causa de um perfil menos expansivo de alguns destes investidores não é evidente a sua origem ou sequer a sua dimensão. A presença sul-africana tem qualidade e é diversificada como atestam os investimentos do grupo Shoprite e PEP na distribuição, a SAB Miller (hoje numa parceria com o Group Castel), Nampak Bevcan e Distell na indústria e a MultiChoice e Standard Bank nos serviços.

Não podemos ignorar que muitas empresas sul-africanas olham para o nosso mercado como um ponto para exportação e em nada é uma atitude/estratégia condenável, inclusive muitas marcas da África do Sul já têm em Angola o seu principal mercado mas não se pode ignorar que muitos dos principais investimentos realizados em Angola fora da indústria petrolífera são de origem sul africana e o nosso país só tem a ganhar se apostar num maior engajamento com a maior potência económica e tecnológica do nosso continente e parece ser este o caminho que o presidente João Lourenço quer seguir, bravo!

A África do Sul contra si mesma

SABookHá algum tempo li “A History of South Africa” de Leonard Thompson e fiquei impressionado pela história de sofrimento das comunidades negras da África do Sul desde o momento em que se começaram instalar colonatos europeus no século XVII.

Os povos da África do Sul sempre lutaram contra o regime segregacionista e com as independências africanas na segunda metade do século XX ganharam novos aliados. Os vizinhos independentes da África Austral, em particular Moçambique e Angola, tornaram-se alvos do regime do apartheid. Líderes como Jacob Zuma e Oliver Tambo refugiaram-se em Angola e Moçambique, vários artistas encontraram paz noutros países africanos como Miriam Makeba que viveu na Guiné-Conacry. Este particular período da luta dos sul-africanos, cujo rosto e guia moral foi Nelson Mandela, é que torna as explosões de xenofobia inexplicáveis – em particular para os africanos que são os mais visados da fúria. Jacob Zuma, que viveu na pele a solidariedade do continente nos momentos difíceis, disse que é “inaceitável”, pese o facto do seu filho apoiar a posição do rei zulu, Goodwill Zwelithini, contra a permanência de imigrantes na África do Sul (o rei diz ter sido mal traduzido).

Os episódios de violência xenófoba perpetrados sobretudo por camadas mais pobres não são um fenómeno exclusivamente sul-africano. Historicamente as tensões anti-imigrantes aumentam em períodos de fraco desempenho económico e muitas vezes os estrangeiros servem de bode-expiatório. No caso sul-africano, a postura contra migrantes de outros países, especialmente africanos e asiáticos, não é exclusiva das camadas mais pobres (apesar de serem estas que executam as barbaridades); uma pesquisa da Southern African Migration Project revelou que 90% dos sul-africanos considera que existem imigrantes a mais no seu país e recentemente políticos destacados pronunciaram-se contra o número de estrangeiros no país, como a ministra para o Desenvolvimento de Pequenos Negócios, Lindiwe Zulu que disse que “os estrangeiros têm que perceber que estão aqui por cortesia e a nossa prioridade são as pessoas deste país… (os empresários estrangeiros) não podem barricar-se e escusar-se de partilhar as suas práticas com empresários locais”.

A teoria dos estrangeiros estarem a roubar os empregos dos sul-africanos é contrariada pelos números da organização Migrating Work Consortion, que demonstra que apenas 4% da força de trabalho na África do Sul é estrangeira.

The Migrating for Work Research Consortium (MiWORC), an organisation that examines migration and its impact on the South African labour market, released two studies last year that drew on labour data collected in 2012 by Statistics South Africa.

They found that 82% of the working population aged between 15 and 64 were “non-migrants”, 14% were “domestic migrants” who had moved between provinces in the past five years and just 4% could be classed as “international migrants”. With an official  working population of 33 017 579 people, this means that around 1.2-million of them were international migrants. (link)

O que mais choca África é ver a última fronteira da luta contra o racismo no continente tornar-se num ingrato centro de xenofobia, que, como disse o histórico do ANC Ahmed Kathrada: “xenofobia é racismo”.

Podemos partir para teoria que anos de “separação” do continente num ambiente em que o africano era reduzido a lixo contribuíram para as relações difíceis entre sul-africanos e outros africanos, mas parece que o problema das relações entre povos de África é continental e não apenas de um país. Tenho a impressão (e temo estar certo) que as organizações regionais e continentais em África servem apenas para banquetes periódicos dos líderes enquanto que os cidadãos africanos pouco ou nada  beneficiam das relações institucionais intra-africanas.

O sistema colonial terminou mas a herança continua presente. Tipicamente, os países africanos têm maiores (e por vezes melhores) relações com a antiga potência colonial ou com “irmãos do mesmo colono” (Angola, Moçambique, Cabo Verde, Brasil, Portugal | Ghana, Nigéria, Uganda, Reino Unido | Benin, Senegal, Mali, França). No caso de Angola, vivem entre nós muitos imigrantes africanos, europeus, americanos e asiáticos e é perfeitamente palpável a diferença das nossas relações pessoais com europeus e com africanos. Nas nossas festas mais facilmente encontramos um amigo francês ou português do que um congolês ou nigeriano eventualmente porque estamos cercados de preconceitos que só poderão ser resolvidos com maior interacção e a cultura pode jogar um papel importante já que é igualmente palpável uma afinidade com as cores e sons de outros países do continente porque nenhum ouvido africano é indiferente ao batuque.

Os sul-africanos estão a atacar os pequenos negócios dos etíopes carregados de concepções erradas. Em Angola é frequente ouvir teorias conspiratórias e de certa forma preconceituosas sobre os “Mamadus” que operam as cantinas. Os sul-africanos hoje discriminam e agridem os moçambicanos que há algumas décadas atrás chegaram-se a frente para combater o apartheid e nós temos hoje uma relação apática com os nossos vizinhos congoleses que outrora acolheram (nem sempre com a hospitalidade devida, é verdade) muitos angolanos.

Apesar de tudo, o batuque é tão familiar a todos nós que o kuduro do Cabo Snoop faz furor no continente inteiro, como faz sucesso o som do congolês Fally Ipupa ou a batida do azonto do Gana e do Afrobeat feito na África do Sul, aliás o Uhuru mais famoso de África não é o presidente do Quénia mas sim o grupo musical sul-africano.

Não bastará os africanos não serem agredidos na África do Sul, é preciso criar espaço para troca de experiências e intercâmbio cultural entre os povos. É preciso entender as razões por detrás do fluxo de migrantes africanos para os países do continente (e não só) que apresentam mais oportunidades, é preciso elucidar as pessoas para os factos para abater falsidades e é preciso tornar a solidariedade africana num conceito abrangente e não apenas num escudo de defesa de lideranças duvidosas.

De todo modo, os problemas económicos da África do Sul não podem apagar a sua história recente e não  podem guiar o país que ambiciona ser a “nação arco-íris” para a falência moral. Depois dos acontecimentos de 2008 torna-se ainda mais inaceitável assistir tanta barbaridade pelas mesmas razões, desta vez é preciso um diálogo franco e abrangente porque uma repetição de tais acontecimentos poderá ser fatal para a reputação da nação.