Israel e Palestina

Em Fevereiro de 2020, antes da pandemia de COVID se ter tornado realmente global, tive a oportunidade de visitar Israel e a Palestina, a região com um conflito intermitente e, infelizmente, cada vez mais previsível e com poucos avanços reais para aquele que entendo ser o sentido certo.

O conflito entre israelitas e palestinos é complexo e sobre o qual aprendo todos os dias, mas não vejo outra solução a não ser a de dois estados. Contudo, com o avançar dos anos parece ser mais difícil implementar tal solução porque (i) os colonatos judeus na Cisjordânia ocupam grosseiramente o território de um futuro estado palestino e (ii) o minguar da Autoridade Palestiniana e ascensão do Hamas deixa o povo palestino sem um representante fiável aos olhos da generalidade.

A iconografia do conflito pode deixar a ideia que em Israel vive-se em constante tensão mas nos dias que fiquei em Telavive fui surpreendido por uma calma “assustadora” porque apesar de ser comum vermos mancebos adolescentes fardados e de metralhadora a tiracolo e gelado na mão a passear em centros comercias, não me lembro ter visto polícias a patrulhar as ruas, aliás polícias em operação só me lembro de os ter visto a assegurar o desenrolar de uma manifestação de trabalhadores do sexo contra regras restritivas à sua actividade que estavam em discussão no parlamento.

Telavive, Israel

Na verdade, a maior parte dos israelitas tem uma vida normal apesar das circunstâncias e suposta ameaça constante de ataque, o poderoso estado de Israel criou ao longo dos anos condições para que a sua população conseguisse levar uma vida com relativa normalidade e prosperidade cercada de muros e tecnologia de ponta que reduz a quase insignificância o impacto dos ataques episódicos da resistência palestina nas suas diferentes versões.

Contudo, o “sucesso” impressionante de Israel foi conseguido com a imposição de grandes custos à população árabe palestina que habitava a região sob gestão britânica antes da criação do estado de Israel no final da década de 1940.

As sucessivas guerras ao longo dos anos e a visível incapacidade dos diferentes movimentos palestinos em vergar Israel são mais do que indicativos que a solução militar só facilita os extremistas de ambos os lados. O cerco a Gaza é grosseiro e é natural que alimente o ódio visceral de palestinos contra Israel, mas ter o Hamas como defensor da causa cria ao mesmo tempo um argumento para as posições extremas de Israel.

Por outro lado, o PM Netanyahu é cada vez menos popular e cada vez tem mais dificuldades em formar governo sem recurso a coligações heterogéneas que invariavelmente incluem judeus radicais abertamente pró-colonatos e defensores da expansão do poder israelita em Jerusalém oriental, a revelia do mapa globalmente aceite e que não reconhece soberania israelita naquela parte da cidade.

Aliás, sobre Jerusalém tenho que dizer que é de longe a cidade mais intrigante e fascinante que alguma vez visitei. A cidade é considerada sagrada pelas três maiores religiões monoteístas e ao mesmo tempo um palco de conflito constante.

Transeunte muçulmano e igreja cristã em Jerusalém

A pobreza da parte oriental sob constante ameaça da expansão judia em território historicamente muçulmano contrasta com a modernidade e riqueza do lado ocidental onde está o parlamento e a casa oficial do primeiro-ministro de Israel, onde curiosamente não se vê um aparato de segurança relevante.

Aliás, quando se passa para o lado palestino em Belém o controlo é quase nenhum para quem é turista e foi mais uma surpresa. Os palestinos não disfarçam a raiva contra Israel que exerce um poder avassalador nas suas vidas mas para um forasteiro não deixa de ser visível a semelhança entre os povos, nomeadamente na culinária. Belém é mais uma cidade com longa história e significado religioso para os cristãos, apesar de estar sob gestão de um governo marcadamente muçulmano, o respeito pelos sítios marcantes do cristianismo que garantem milhões de turistas anualmente contrasta com a visão generalizada de intolerância associada à alguns governos muçulmanos.

Belém, Palestina

Parece ser mais um local em que as pessoas se acomodaram com a situação que anda longe do ideal, com muros e controlos de fronteia humilhantes para palestinos que os israelitas defendem como necessários para reduzir a vulnerabilidade do seu lado. Ramallah, mesmo ao lado de Belém é uma cidade relativamente moderna onde não se vislumbra um ambiente ameaçador, pelo contrário, as ruas estão cheias de comerciantes e é visível algum entusiasmo do sector imobiliário com prédios a crescerem de todos os lados. Curiosidade, nas caixas ATM as notas que retiras com teu cartão de crédito são de dólares dos Estados Unidos.

Gostaria imenso de voltar àquela região não apenas para explorar melhor Ramallah, mas também para visitar Sderot e Hebron como sugeriu-me o guia palestino-cristão em Jerusalém que na visão dele, sobretudo Sderot, são o exemplo acabado de normalização da situação absurda que se vive naquela região com dois arqui-inimigos que estão condenados a entender-se mas sustentam com posições utópicas que impossibilitam qualquer entendimento.  Os anos passam e estes momentos de tensão são apenas uma excepção de um normal que não deveria ser porque apesar de ser geralmente pacífico para israelitas, impõe custos sociais enormes aos palestinos e impossibilita a paz permanente na região.

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COVID, vacinas e falhas morais

Li há uns dias um artigo de Simon Allison no The Continent do Mail & Guardian em que o autor chamava de falha moral o momento actual de escassez de vacinas para imunização da população mundial. O autor levantou basicamente duas questões que concorrem para uma repreensível falta de solidariedade e, eventualmente, racionalidade: (i) as encomendas excessivas de doses de vacinas por parte dos países mas ricos que limitam a possibilidade de acesso a curt prazo por parte de outros países as tão desejadas vacinas num contexto de incapacidade da oferta responder à procura e (ii) irredutibilidade das farmacêuticas e seus parceiros na cedência da propriedade intelectual e levantamento dos direitos conferidos pelas patentes para que mais antidates possam produzir as vacinas com provas dadas.

«Canada, the worst offender, has pre-ordered so many vaccines that it will be able to vaccinate each of its citizens six times over. In the UK and US, it is four vaccines per person; and two each in the EU and Australia.» Simon Allison in The Continent

A pandemia de COVID-19, pelo seu carácter disruptivo, tem vindo a gerar muito pânico que tem efeito nas decisões políticas o que poderá estar na base das encomendas excessivas de alguns países. Por outro lado poderá ser a antecipação da possibilidade da COVID-19 tranformar-se numa espécie de gripe sazonal que obrigue a campanhas de vacinação anuais. Contudo, pese o facto de alguns países terem reagido tarde na corrida a aquisição de vacinas, é difícil defender encomendas que superam múltiplas vezes a população de alguns países quando outros penam por falta de doses.

Por outro lado, existem questionamentos sobre a não liberação da produção da vacina por outras farmacêuticas para atender à crise global causada pela pandemia. Alguns países como a África do Sul e Índia estão a solicitar a isenção do pagamento de direitos às entidades que desenvolveram vacinas para usarem a sua capacidade produtiva para mais rapidamente acabar-se com a situação actual de escassez de vacinas.

Compreendo a posição de alguns líderes políticos que buscam um atalho para mais rapidamente utilizarem soluções já existentes, mas confesso que também compreendo a relutância das empresas que criaram as vacinas em ceder a sua propriedade intelectual sem a possibilidade de maximização dos seus proveitos. Por mais bonito que seja, não podemos esperar viver num mundo em que o investimento em biomedicina não mereça o lucro, os efeitos da gratuitização do medicamente, a longo prazo, limitará o desenvolvimento de medicamentos. A função mais relevante das patentes é criar um sistema de incentivo que garanta o investimento futuro em tecnologia.

A solução do licenciamento mediante o pagamento de direitos parece ser o mais indicado para atacar a maka da escassez, desde que sejam garantidas as condições da produção genérica sem redução da qualidade do produto. A outra maka prende-se com a capacidade destes países de pagarem os direitos que eventualmente sejam cobrados pelas Pfizer, Moderna, AstraZeneca ou Johnson & Johnson. Mas para isso poderá ser montado um fundo global que ajude os produtores de genéricos a cumprir com as exigências dos dos proprietários das patentes e assim fica assegurado o pagamento aos proprietários das vacinas e aumenta a oferta deste produto necessário e, por agora, extremamente escasso.

A defesa desta alternativa poderia ser encabeçada pela OMS ou representantes da iniciativa COVAX, mas sabemos que os maiores financiadores destas organizações são os países desenvolvidos ou instituições como a fundação Bill & Melinda Gates cujo patrono já se mostrou céptico sobre a capacidade deste caminho solucionar a escassez no curto prazo assim como possíveis impactos negativos a longo prazo de um tratamento displicente da propriedade intelectual associada às vacinas. Por outro lado, a administração Biden avançou recentemente que a produção das vacinas vai aumentar significativamente nos próximos dias, começando pela Pfizer sem recurso ao licenciamento ou suspensão de direitos sobre propriedade intelectual.

Por outro lado, existe outra falha moral sem visibilidade aparente com forte impacto em todos os problemas causados pelas escassez de vacinas: a governação inadequada que caracteriza os países menos desenvolvidos. Como defendi aqui várias vezes, a qualidade das instituições define o nível de prosperidade das nações e desta disponibilidade económica deriva a capacidade de investir em ciência e de aquisição dos resultados da ciência que é um “desporto muito caro”.

A incapacidade de muitas nações garantirem hoje o acesso às melhores ferramentas para combater a pandemia de COVID-19, em particular nações africanas, não pode ser dissociada do negligenciamento crónico dos políticos pelas práticas governativas que concorrem para expansão do acesso à educação de qualidade e criação de ambiente propício à criação de riqueza por meio do empreendedorismo meritocrático visível nas nações mais ricas. Não basta apontar o dedo aos países com mais meios pelas sua óbvia falta de solidariedade, é igualmente necessário reconhecer que a melhor opção é garantirmos que os nossos cidadãos conseguem ter bases para desenvolver e participar na criação de soluções tecnológicas para combater a pandemia ou, na pior das hipóteses, assegurar que as nossas nações têm meios próprios para adquirir as vacinas que resultam do investimento de outros.

Governantes que dedicam muito do seu tempo em mecanismos para extorquir os erário público dos seus países enquanto criam condições para que estes crimes se mantenham impunes para as pessoas do seu interesse, não deveriam dar lições de moral à quem governa nações que operam dentro de regras que conduzem à melhoria contínua que acabam por ser evidenciadas em momentos como o que o mundo vive hoje. Assim, não é surpresa nenhuma que as soluções tecnológicas estejam a emergir de grandes economias ocidentais como Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha. Por outro lado, existem nações autocráticas que nunca descuraram da importância da capacidade técnica que mostram-se igualmente capazes de estar na linha da frente do desenvolvimento de soluções técnicas como a China e a Rússia. A tragédia africana é que o comportamento predatório dos seus governantes não deixam espaço para qualquer tipo de avanço social.

Naira mais flutuante está a correr bem

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Há um ano, em Junho de 2016 publiquei neste blogue um artigo sobre as regras implementadas pelo Central Bank of Nigeria (CBN) que visavam aumentar a participação dos privados na formação de preços e alocação de divisas no mercado cambial da Nigéria procurando assim controlar a taxa de câmbio oficial, melhorar a alocação das divisas na economia e, consequentemente, reduzir o gap entre a taxa de câmbio formal e a taxa de câmbio informal, que é um sinal de equilíbrio entre a oferta e a procura de divisas.

Os primeiros meses da nova política cambial do CBN foram meio caóticos, o processo de ajustamento foi duro e, como se esperava, levou depreciação da naira cuja taxa de câmbio era determinada pelo CBN. Hoje existe um sentimento generalizado que a política seguida pelo CBN foi acertada e contribuiu para o aumento das divisas na economia que sustentou o aumento da produção industrial local e a disponibilização de bens e serviços importados com impacto na inflação e na confiança dos investidores.

Ao criar uma janela de negociação em que compradores e vendedores de moeda estrangeira podem determinar o preço de uma transacção o CBN procurava também atrair investidores externos para o mercado cambial nigeriano, não sei até que ponto este objectivo foi alcançado mas é factual que os bancos comerciais nigerianos têm hoje mais divisas a disposição e estão todos a ajustar para cima as restrições impostas na utilização de cartões de crédito no exterior como reportou a Bloomberg.

Nigerian banks are boosting dollar-spending limits for payment cards denominated in local currency as much as tenfold because of improved foreign-exchange supply

No artigo de Junho de 2016 sugeri que o BNA ficasse de olho na evolução do mercado cambial nigeriano para daí tirar ilações para a direcção a seguir pela nossa política cambial e da leitura que faço de declarações recentes do governador do BNA está a ser desenhada uma política cambial mais liberal do que a actual. Em boa verdade Angola não tem apenas a Nigéria como indicador porque recentemente tivemos uma experiência em que o BNA reduziu a sua intervenção no mercado cambial permitindo a transacção directa de divisas entre as empresas petrolíferas e os bancos comerciais com resultados longe de serem considerados desastrosos, embora seja inegável que a redução do valor das exportações de petróleo e das operações das empresas petrolíferas em Angola iria sempre afectar os montantes disponíveis de divisas. Contudo, convém considerar o nosso passado recente e os resultados da alteração da política cambial nigeriana na definição de um novo caminho para o mercado cambial angolano.

Trump, proteccionismo e nós

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The Independent

Os economistas muitas vezes envolvem-se em debates ideológicos sobre os mais distintos temas mas é quase unanimidade o reconhecimento das vantagens do comércio livre. Contudo, apesar dos clássicos de Adam Smith e mais detalhadamente David Ricardo há séculos atrás e trabalhos mais recentes de Samuelson e Stolper, fora da tribo de economistas é muito comum encontrar vozes que se opõem a liberdade das trocas internacionais, sobretudo no que concerne às importações porque no imaginário das pessoas importar significa necessariamente perder e exportar significa ganhar.

Mas parece-me ser da “natureza humana” buscar a dominação política no lugar do comércio internacional. O ensinamento moderno de economia tem tido pouco sucesso em conseguir que o público em geral, até mesmo nos países mais avançados e educados (especialmente o nosso [EUA]), perceba e efectivamente inclua no seu pensamento político o truísmo que no comércio livre a vantagem é mútua*

Frank Knight, “Human Nature and World Democracy”

Nos últimos anos diferentes organizações e académicos têm estado a alertar para o crescimento da desigualdade económica entre os mais ricos e os mais pobres. Contudo, o principal desenvolvimento social e económico global das últimas décadas não foi o aumento da desigualdade mas sim a redução significativa da pobreza e esta redução ocorreu, sobretudo, devido ao aumento do comércio internacional que permitiu deslocar com mais eficiência capital e tecnologia dos países ricos para os países menos avançados que, nos casos de maior sucesso, conseguiram passar de nações subdesenvolvidas à potências económicas globais em menos de duas gerações como aconteceu com a China e a Coreia do Sul.

Donald Trump, numa das suas primeiras medidas como presidente dos Estado Unidos abandonou a Trans-Pacific Partnership (TPP) que era um projecto ambicioso da Administração Obama que agruparia 1/3 do comércio global numa zona de comércio livre com quase o dobro da população da União Europeia que juntava os países da costa do pacífico das Américas com alguns países da Ásia. Na visão de Donald Trump e dos sindicatos (como é hábito) as zonas de comércio livre são sinónimo de deslocalização da produção e destruição de emprego e devem ser combatidas como medida de protecção da produção local (no paleio da direita nacionalista) e do emprego local (no paleio da esquerda nacionalista) e ambos os campos esquecem da perda líquida de rendimentos que afecta o consumo da tal produção nacional e a potencial perda de mercado externo com a equivalência de políticas comerciais.

A ideia que o comércio externo é negativo para a economia local está ancorada em percepções erradas ou “factos alternativos” na linguagem da Administração Trump. Muitas pessoas partindo do princípio que importar é negativo e apenas exportar produz efeitos positivos na economia e no bem-estar dos nacionais, sempre que um acordo de comércio externo potencialmente significar o aumento de importações barricam-se na defesa do “interesse nacional” que normalmente resulta na protecção de produtores nacionais mesmo quando estes revelam manifesta ineficiência derivada do contexto (da competência da liderança política) ou da sua própria incompetência. Embora seja factual que algumas partes possam tirar proveito de práticas ilegais para obterem vantagens competitivas, isto não é a regra e a história prova que os benefícios do comércio internacional são mútuos como disse Frank Knight e ultrapassam a questão puramente económica porque contribuem grandemente para estabilidade política e relações internacionais pacíficas.

Como em boa parte do mundo, dos países ricos aos mais pobres da classe política ao eleitorado, em Angola existe muita gente com ideias proteccionistas com base numa visão especulativa do comércio livre assente na desconfiança dos parceiros e na ideia de que maior abertura ao comércio externo destruirá invariavelmente a indústria local e o emprego, assumindo que o comércio externo não serviria para expor as nossas fragilidades mas sim para retirar a nossa capacidade (e vontade) de as corrigir. Com este pensamento Angola continua afastada da zona de comércio livre da SADC apesar das metas várias vezes avançadas.

Os diferentes estágios de desenvolvimento dos países significam diferentes níveis de produtividade porque a população dos países mais desenvolvidos tem por norma mais qualificação técnica e as infra-estruturas de suporte à produção em tais países é normalmente superior. Ademais, os países mais desenvolvidos são normalmente melhor capitalizados e este capital pode ser a via de saída do subdesenvolvimento se as nações menos ricas focarem na criação de condições que atraiam este capital. Quando os fundos são escassos é preciso que sejam optimizados no que realmente faz a diferença, nomeadamente na formação dos quadros, na eliminação de barreiras à iniciativa privada e investimento externo e na aposta em infra-estruturas facilitadoras da actividade económica e social da população nomeadamente a urbanização, distribuição de água, fornecimento de energia e serviços de saúde de qualidade.

O proteccionismo protege os produtores bem relacionados da concorrência externa e gera complacência por parte do poder político que poderá continuar a negligenciar o investimento naquilo que realmente torna a economia mais competitiva: pessoas com formação e infra-estruturas de qualidade (incluindo o sistema de organização política do país).

*“But it seems to be “human nature” to seek political domination in place of free international trade.  Little success has attended the efforts of modern economic teaching to get the general public, even in the most advanced and highly educated countries (specifically our own), to realize effectively and carry over into their political thinking the truism that in free exchange the advantage is mutual.”

Poderá ser o combate à corrupção negativo para a economia?

A corrupção é apontada vezes sem conta como um cancro que corrói as sociedades moral e economicamente porque cria ricos sem criar riqueza e distribui injustamente os fundos que deveriam ser alocados de forma meritória.

No entanto, o relativo sucesso das medidas de combate a corrupção no sector público nigeriano implementadas pelo Governo do presidente Muhammadu Buhari fizeram nascer uma nova teoria que alega que a redução da corrupção no sector público é negativa porque reduz o rendimento disponível dos servidores públicos com efeitos devastadores no consumo que, por sua vez, reflecte-se negativamente na produção industrial ou distribuição grossista.

Blocking someone from stealing public funds will reduce his frequency in the market,” Sheka said. “If retailers can’t sell as much, they will buy less from manufacturers.

Funcionário público nigeriano in LA Times.

A principal medida das autoridades nigerianas foi a criação da conta única do Estado sob custódia do tesouro nacional que ilegalizou a criação de contas em bancos comerciais, controladas pelos diferentes departamentos públicos, para recebimento de pagamentos e realização de despesas. Esta medida reduziu significativamente o acesso à fundos públicos por parte dos servidores públicos que usavam tais fundos para viver acima das possibilidades que os seus salários oficiais permitiam. E daí nasce a teoria que o combate à corrupção é negativo para a economia.

Se consideramos que parte do consumo era alimentada com fundos obtidos ilegalmente (subornos, desvios, sobrefacturação, etc.) não é difícil concluir que existirá menos consumo mas esta abordagem ignora que a transferência de fundos para entes não produtivos tem vários efeitos perversos para a economia no curto e no longo prazo, como:

  1. Quando fundos públicos destinados para construção de um equipamento público são desviados para bolsos privados milhares de cidadãos ficam sem acesso ao tal equipamento que pode ser uma estrada que melhora a competitividade da economia ou um centro de saúde. O desvio beneficia meia dúzia de corruptos e prejudica milhares de cidadãos, as receitas da concessionária de carros de luxo não superam os danos causados à economia;
  2. Quando os desvios de fundos enriquecem algumas pessoas que não criaram riqueza existe maior pressão da procura sobre a oferta de determinados bens e serviços que num país infestado pela corrupção já pecam pela ineficiência. Esta pressão sobre a oferta resulta em inflação;
  3. Do ponto de vista social, a impunidade perante actos de corrupção encoraja a sua prática e cria uma economia falseada pelo compadrio e compra de favores, desincentivando assim os esforços pela eficiência e livre concorrência com os benefícios à esta associados a serem ultrapassados por interesses menos nobres.

A economia nigeriana, assim como a nossa, foi severamente afectada pela queda do preço do petróleo bruto que expôs a sua vulnerabilidade e empurrou a economia para a recessão o que, naturalmente, teve efeitos negativos no consumo. Se a perda de rendimentos da corrupção de alguns servidores públicos afectou o seu poder de compra, certamente não são a justificação para o arrefecimento do comércio. A redução dos desvios públicos tem como maior ganho o aumento da eficiência e a possibilidade de construção de um sistema mais justo.

Nenhum governo, oficial ou oficiosamente, deve aspirar criar condições para a permanência da corrupção como complemento da remuneração de funcionários públicos, as questões de baixa remuneração de funcionários públicos demandam outro tipo de soluções.

Olhos postos na Nigéria

1000 naira bills, Nigerian currency.

No comunicado emitido pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) sobre a visita da equipa chefiada por Ricardo Velloso entre 1 e 14 de Junho à Luanda o FMI alertou para necessidade de maior flexibilidade da taxa de câmbio como medida para redução de constrangimentos que afectam a actividade económica.

Será necessário comunicar claramente a estratégia para reequilibrar o mercado cambial aos participantes do mercado e recorrer a uma taxa de câmbio mais flexível, apoiada em condições monetárias mais restritivas para conter a inflação. Além disso, as restrições administrativas existentes para aceder a divisas à taxa oficial, que constituem um constrangimento à actividade e diversificação económicas, precisarão de ser levantadas gradualmente.

Os mesmos apelos têm vindo a ser feitos à Nigéria, a economia africana mais parecida com a nossa. A autoridade monetária da Nigéria, Central Bank of Nigeria (CBN) respondeu e no dia 15 de Junho anunciou que a taxa de câmbio da Naira, a moeda nigeriana, deixará de ser administrada pelo banco central e passará a ser determinada pelo mercado. As novas medidas entram em vigor no próximo dia 20 de Junho e é expectável que os primeiros tempos da nova realidade sejam marcados por alguma instabilidade no valor da moeda nigeriana mas antecipa-se a estabilização depois do período de ajustamento e uma taxa de câmbio mais consentânea com a realidade económica assim como é expectável assistirmos à redução progressiva do gap entre a taxa de câmbio oficial e a taxa de câmbio do mercado paralelo.

O anúncio foi bem recebido pelo mercado de capitais que se traduziu em fortes ganhos na bolsa nigeriana. Economistas nigerianos e o próprio CBN esperam que o novo modelo torne o país mais atractivo para o investimento externo e torne a alocação de divisas mais eficiente e justa, eliminado a efectiva subsidiação da taxa de câmbio para alguns agentes. O CBN tenciona ainda estancar a quebra contínua da Reservas Internacionais Líquidas que passaram de USD 42.8 mil milhões em Janeiro de 2014 para USD 26.7 mil milhões em Junho de 2016.

Neste blogue, já falei algumas vezes sobre a actual crise cambial (aqui e aqui) focando na taxa de câmbio desajustada e na necessidade de desvalorizar ainda mais o kwanza. A prazo, o ideal é mesmo deixar o mercado determinar a taxa de câmbio para que a alocação de divisas seja mais eficiente e, sobretudo, se ponha termo ao regime de alocação sectorial de divisas à taxas de câmbio subsidiadas que constituem uma vantagem desleal para um grupo reduzido de agentes. Neste contexto seria perfeito se a mantra do novo governador do BNA – “ética e moral” – fosse levada a sério e quando ela falhasse existissem medidas punitivas ajustadas porque a manipulação dos mercados deve ser encarada como um pecado capital.

De todos os riscos que a flexibilização da taxa de câmbio do kwanza pode trazer o mais pernicioso é o da aceleração ainda mais acentuada dos preços, uma vez que o BNA tem utilizado a taxa de câmbio como  instrumento para controlar a inflação, mecanismo que tem tido sucesso limitado nos últimos tempos. Com efeito, o kwanza sobrevalorizado combinado com a oferta satisfatória de divisas significa importações mais baratas e preços baixos em kwanzas, mas uma taxa de câmbio mais ajustada à realidade e défice na oferta de divisas implicam mais inflação uma vez que não temos capacidade de substituir importações competitivamente no curto prazo.

Contudo, o BNA e outros decisores da nossa política económica devem estar com os olhos postos na evolução do mercado cambial nigeriano sob esta nova configuração e, se possível, colaborar com o CBN. A evolução da taxa de câmbio da Naira nos próximos meses e o funcionamento do novo modelo cambial nigeriano são uma boa oportunidade para aprendermos e sustentarmos uma decisão sobre o caminho a tomar para a nossa política cambial no futuro próximo.

Terrorismo, risco, eurocentrismo, cobertura mediática e indiferença

Os psicólogos (e não só) estudam há anos como a proximidade de eventos afecta a nossa percepção de risco e expõe a nossa incapacidade de construir opiniões com base em factos de forma “involuntária” como Daniel Khaneman no seu magnífico livro “Thinking, Fast and Slow” (“Rápido e Devagar”) explica como dois sistemas de pensamento (i) Sistema 1 para questões ligeiras e o (ii) Sistema 2 para questões que exigem maior ponderação, afectam as nossas opiniões e escolhas.

Como a proximidade dos eventos – em termos geográficos, temporais ou puramente sentimentais – afecta a nossa percepção de risco. Os cidadãos europeus na presença dos últimos ataques terroristas no seu solo tendem a formular teorias que nos levam a concluir que a situação de segurança na Europa nunca esteve mais ameaçada por actos terroristas do que actualmente. Na verdade, os ataques terroristas em solo europeu eram mais frequentes e matavam mais pessoas nas décadas de 1970  e 1980 do que no presente, apesar de existir uma tendência crescente. O risco existe, a realidade pode piorar, mas a actualidade não é o pior pelo que já passou o continente.

Vítimas de ataques terroristas na Europa Ocidental 1970-2015

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De todo modo, o mais gritante é a diferença entre o número de vítimas de terrorismo na Europa ocidental e nas regiões que mais cidadãos morrem em atentados terroristas: Médio Oriente e África. Se considerarmos todos os ataques terroristas ocorridos no mundo registados pela Global Terrorism Database entre 2001 e 2014, as vítimas na Europa ocidental foram 420 contra cerca de 108 mil no resto do mundo.

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Mas porque será que os ataques em certas partes do mundo geram mais notícias do que noutras – designadamente em África – se as vidas valem o mesmo? Aparentemente, o mundo continua a ser eurocêntrico ou, se quisermos ser mais realistas, centrado no “ocidente”. Esta realidade associada a maior cobertura mediática de ataques no ocidente pode explicar hashtags como #JeSuisCharlie e a inexistência de campanhas semelhantes para vítimas de terrorismo na Nigéria, Iraque ou Afeganistão. Estas manifestações de solidariedade selectivas, naturalmente, geram também protestos sob acusação de insensibilidade para casos semelhantes em geografias menos “privilegiadas”.

O poderio económico construído ao longo de séculos, incluindo episódios pouco abonatórios para história das potências do atlântico que incluíram exploração de escravos e uma colonização marcada pela brutalidade, criaram um mundo europeizado que inclui transferência cultural por assimilação e por força que tornaram os hábitos e línguas europeias globais.

O mundo colonial que em África vigorou até ao último quarto do século XX criou relações de dependência metropolitana que acabou por separar afectivamente povos e criou “relações especiais” entre colónia e potência colonizadora que até hoje são visíveis, desde “clubes de futebol do coração” ao local preferido para férias dos colonizados. Há uns meses abordei a questão da nossa fraca interacção com outros povos africanos em oposição da nossa relação com cidadãos de outros continentes quando falava sobre os ataques xenófobos na África do Sul.

Tenho a impressão (e temo estar certo) que as organizações regionais e continentais em África servem apenas para banquetes periódicos dos líderes enquanto que os cidadãos africanos pouco ou nada  beneficiam das relações institucionais intra-africanas.

O sistema colonial terminou mas a herança continua presente. Tipicamente, os países africanos têm maiores (e por vezes melhores) relações com a antiga potência colonial ou com “irmãos do mesmo colono” (Angola, Moçambique, Cabo Verde, Brasil, Portugal | Ghana, Nigéria, Uganda, Reino Unido | Benin, Senegal, Mali, França). No caso de Angola, vivem entre nós muitos imigrantes africanos, europeus, americanos e asiáticos e é perfeitamente palpável a diferença das nossas relações pessoais com europeus e com africanos. Nas nossas festas mais facilmente encontramos um amigo francês ou português do que um congolês ou nigeriano eventualmente porque estamos cercados de preconceitos que só poderão ser resolvidos com maior interacção e a cultura pode jogar um papel importante já que é igualmente palpável uma afinidade com as cores e sons de outros países do continente porque nenhum ouvido africano é indiferente ao batuque.

O poder económico implica maior capacidade de produção e difusão de conteúdos culturais cuja aceitação beneficia da proximidade afectiva criada ao longo de séculos de relações comerciais e culturais como força dominadora e produzem um mundo altamente influenciado pelas tendências que nascem nos países desenvolvidos do ocidente, facto que na visão de algumas pessoas trata-se de um movimento de imposição cultural que deve ser combatido.

Para algumas pessoas, o distanciamento dos que nos são geograficamente próximos foi promovido por séculos de colonização que nos aproximaram da potência colonizadora à milhares de quilómetros e moldaram a nossa relação com outros países africanos.

Defendendo maior distanciamento ou não, a verdade é que a nossa vida está cercada pelo que vem do G-7 e seus amigos. O que vestimos, boa parte do que comemos, os carros que conduzimos, os telefones que usamos, os filmes  e séries que assistimos, parte relevante da música que ouvimos e muito mais. As referências desportivas que temos actuam naqueles palcos, quer sejam de lá, de cá ou de acolá o Steph Curry, LeBron James, Luol Deng e o Serge Ibaka actuam na NBA e a liga dos campeões que nos faz adiar compromissos inadiáveis é a europeia e não a africana, conheço inclusive pessoas que nem a selecção nacional seguem mas conhecem as estrelas das selecções mais esquisitas da Europa. Esta afectividade cria a tal proximidade que gera reacções mais fortes quando acontecem ataques terroristas em Paris do que em Maiduguri (aliás, quantos sabem onde fica “isto”?, thank you Google). Se um amigo meu contar-me que um vizinho seu que não conheço foi assaltado e agredido a minha reacção será menor do que se porventura o assaltado for o meu amigo. Portanto, as reacções não podem ser dissociadas da proximidade, seja ela geográfica ou sentimental. A meio do século XVIII Adam Smith explicou magistralmente a dinâmica das nossas relações com os outros no livro “The Theory of Moral Sentiments”.

Por outro lado, fruto de maior capacidade económica, os meios de comunicação com alcance global são essencialmente dos Estados Unidos ou da Europa ocidental (CNN, BBC, Euronews, France 24) apesar dos esforços recentes do Qatar (Al Jazeera) e da Rússia (RT). Estando as pessoas expostas mais tempo à certas realidades a tal relação de proximidade torna-as mais sensíveis – para o bem e para o mal – às questões que afectam as regiões com as quais têm maior “contacto”.

O estudo “Why do we see what we see” de Michelle Henery  demonstra que no período de observação para realização do estudo que analisou a cobertura da CNN International, BBC World News e Al Jazeera English (AJE), as cadeias ocidentais ocuparam grande parte da sua grelha com acontecimentos na Europa ocidental e América do Norte (BBC 73% e CNN 65%) enquanto que a Al Jazeera dedicou 45% da sua programação às mesmas regiões, contudo a cadeia do Qatar não goza da mesma audiência global que as concorrentes e apesar de cobrir menos a Europa ocidental e América do Norte que as outras cadeias, estas duas regiões combinandas continuam a ser as que merecem maior cobertura na grelha da AJE. Ponto comum nas três cadeias é a fraca cobertura de África e Ásia. Em breve o continente africano vai ganhar o Africanews, um serviço noticioso baseado em Ponta Negra no Congo que pertence à Euronews, sedeada em França.

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Fonte: “Why do we see what we see”, Reuters Institute/Oxford

Acresce ainda, que a cobertura desigual não pode ser alheia à frequência dos eventos nas regiões em causa, ou seja, se os ataques de terrorismo se tornam frequentes em Bruxelas como são em Bagdad, o interesse jornalístico diminui, da mesma forma que um assalto a mão armada em Lisboa gera mais notícias do que um assalto equivalente em Luanda. Como é óbvio, este factor não explica tudo porque a Costa do Marfim não tem sido fustigada com frequência por ataques terroristas mas o ataque que matou mais de 22 pessoas em Grand-Bassam não gerou tantas notícias como o que matou 14 pessoas na Califórnia.

Em suma, sendo válidas as manifestações de indignação pela disparidade na cobertura de ataques terroristas equivalentes, os nossos protestos não se podem esgotar em situações de tragédia. A grande tragédia na realidade é falta de interesse por estas geografias quando não existem questões de insegurança em jogo. Este desinteresse não produz a afectividade necessária para mobilizar a solidariedade geral em tempos de aflição, ficando esta a mercê dos que ainda que sem a dita relação de proximidade sentem-se moralmente dissuadidos por qualquer situação trágica, estes aparentemente são uma “imensa minoria”.

No caso de África, felizmente, a tecnologia está a nosso favor e a explosão de meios de difusão cultural (sobretudo música) que procuram uma audiência pan-africana tem feito aumentar o consumo de manifestações culturais intra-africanas e esta aproximação pode ajudar a construir a necessária proximidade afectiva que gera as reacções por muitos reclamada.

Autoritarismo, trungunguice e golpes de estado. Isto é África.

Bujumbura, Burundi (Reuters)

A história contemporânea de África é marcada por pobreza, autoritarismo, corrupção, golpes de estado e guerras.

Quando em 1910 a União da África do Sul “desenvencilhou-se” do Reino Unido e iniciou o processo de agudização de um regime segregacionista o futuro de África independente adivinhava-se difícil. Com as independências pós-segunda guerra mundial (o Egipto tornou-se independente antes, em 1922) renasceu a esperança mas, as primeiras independências assumiram um padrão cujas consequências continuam a ser sentidas hoje.

Muitos dos líderes dos movimentos independentistas, infelizmente, fizeram lembrar os porcos do “Animal Farm” de Geroge Orwell (“A quinta dos animais” ou “O triunfo dos porcos”). A inclinação para o marxismo e a relação de proximidade com a União Soviética podem ajudar a explicar a viragem para o autoritarismo mas não explica tudo, a incapacidade de perceber os méritos da democracia nos primeiros anos de independência e a não compreensão do princípio de separação de poderes alimentaram regimes ditatoriais e contestação bélica do poder, que conduziu o continente a uma série de golpes de estado seguidos de guerras civis sangrentas que foram adiando o progresso e as promessas de paraíso feitas ao povo.

A quantidade de líderes da primeira legislatura pós-independência que foram afastados por via de golpes de estado é impressionante: 26! Depois da primeira onda de golpes surgiram outros (golpe de estado ou golpe constitucional) e hoje continuam, o caso mais recente foi no Burundi. Eventualmente porque a inclinação para o autoritarismo continua viva.

Muitos dos líderes africanos recusavam-se a partilhar o poder, muitos chegaram ao ponto de declarar-se “presidente para sempre”, incluindo Kwame Nkrumah do Gana e Hastings Banda do Malawi. Houve ainda quem extrapolou na extravagância, como Idi Amin que se auto-proclamou “Imperador do Uganda e Rei da Escócia” ou Jean-Bédel Bokassa que se auto-proclamou imperador do “Império Centro Africano” (Republica Centro Africana). O exotismo das lideranças africanas poderia causar fascínio a distância, mas na verdade os anos sucessivos de défice democrático e má governação plantaram a instabilidade política e insucesso económico que ainda se vivem hoje, a teoria alternativa diz que os males de África foram exclusivamente criados “no Ocidente” quase que desculpabilizando as escolhas erradas feitas internamente e ilibando as lideranças africanas das decisões descabidas que adiaram o progresso do continente.

O velho hábito africano de lideranças prolongadas continua bem vivo hoje, ignorando a longa tradição democrática de limitação de mandatos que visa mitigar os riscos inerentes às lideranças muito alongadas no tempo que Eça de Queirós, no século XIX, resumiu dizendo “políticos e fraldas devem ser trocados de tempos em tempos pelo mesmo motivo”.

A liderança longa pode debilitar a qualidade e a independência exigida entre os poderes de um país, criando potenciais problemas de estabilidade no médio prazo, conduzindo muitas vezes os países a longos períodos de instabilidade política depois da saída do “velho líder”.

Recentemente, assistimos a três episódios de revolta popular porque os líderes resolveram prolongar o seu mandato para além do que permitem as constituições: Blaise Compaoré no Burkina Faso, Joseph Kabila da República Democrática do Congo, Pierre Nkurunziza do Burundi.

A luta de interesses de potências externas em África teve uma influência negativa inegável ao longo da história de África mas ignorar o papel desempenhado pelas lideranças africanas no pós-independência é fingir que não vemos o elefante a nossa frente. O continente tem história suficiente para aprender que a limitação de mandatos e separação de poderes são a chave para uma governação equilibrada e inclusiva. O continente tem de ser o primeiro a condenar tentativas de subversão constitucional por parte do incumbente e não apenas condenar golpes, é necessário definir regras e limites para o exercício do poder executivo. Temos que ter coragem para assumir que todos os homens são substituíveis e que não existe nenhuma razão para mandatos muito alongados e aceitar que a democracia real é o principal garante de estabilidade política.

No mundo moderno , o poder é contestado em processos eleitorais livres e justos. Enquanto não for assumido um compromisso continental com a governação inclusiva e sistemas de justiça independentes e equilibrados, o risco de golpes de estado não desaparecerá.

O acordo ortográfico luso-brasileiro

O acordo ortográfico luso-brasileiro – também conhecido como Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (AO) – assinado em 1990, entrou em vigor no Brasil e em Portugal em 2009 e passará a ser a única forma correcta de escrever nestes países este ano, em Portugal passa a ser obrigatório amanhã, 13 de Maio. Assim, a partir do “dia de Fátima” de 2015 escrever “directo” passa a ser um erro ortográfico em Portugal.

Sou contra este acordo, não apenas por diminuir a influência africana na construção da língua portuguesa mas, sobretudo, porque empobrece a própria língua. A ideia de unificar a grafia de todas as variantes de uma língua falada em diferentes pontos do globo é ambiciosa e, de certa forma, arrogante.

Uma das teorias de defesa do AO é que para se tornar uma língua mundial é preciso unificar a grafia. Um princípio que é um autêntico disparate uma vez que o inglês domina a comunicação global apesar de conviver com várias grafias da mesma língua quer sejam falantes sul-africanos, norte-americanos, escoceses ou neo-zelandeses. Ao fim de tantos anos sem ser uma língua mundial e vivermos bem com esta situação porquê que foi agora inventado este “objectivo”?

Acresce que o AO não gosta da letra “k”, tal como o nosso Ministério da Administração do Território (MAT) que defende que “Kwanza” deve ser escrito “Cuanza” (!) e isto não posso aceitar, assim como não concordo com a “aportuguesação” de nomes africanos como “Ginga” em vez de “Nzinga” (ou “Njinga”). Será que o acordo ortográfico exigirá que passemos a escrever “quizomba” no lugar de “kizomba” e “cuduro” no lugar de “kuduro”?

O AO não cumpre com a missão de simplificação porque é confuso. Pode-se escrever “espectador” ou “espetador”  porque é permitida a dupla grafia em algumas palavras e os conterrâneos do faraó Faruk continuam a ser “egípcios” apesar do seu país passar a ser “Egito”.

Este acordo demonstra uma certa pequenês dos seus proponentes porque estes não entendem que a diversidade dentro da língua não gera confusão se existir interacção entre os falantes, a diversidade enriquece a língua. Porquê que os franceses, canadianos, suíços e belgas vivem bem com as suas diferenças e nós não podemos? Como é possível um falante de Coimbra afirmar que um “c” ou “p” é mudo para um falante de Quelimane? Como é possível unificar a grafia se existem pronúncias tão díspares pelas influências fonéticas de línguas autóctones como as línguas africanas?

Ademais, o acordo luso-brasileiro lembra-me o período em que Portugal e Brasil eram duas cabeças do mesmo império que via África como um actor secundário, muito necessário mas sem capacidade de decidir por si, pelo que, as suas decisões deveriam ser tomadas ou influenciadas pelos seus “pais”. Acho bem que Angola resista a assinatura deste acordo apesar de não compreender a posição “anti k” do MAT que acaba por contradizer alguns dos princípios da luta pela independência de Angola, designadamente a valorização da cultura africana.

As diferenças na grafia são tão leves e charmosas que não compreendo o esforço por detrás do desastre que é o AO. O português não será mais global pela simples razão de ter uma grafia única, é antes preciso divulgar a cultura dos povos falantes e aumentar o nível de interacção económica com não falantes, quando os não falantes forem aprendendo a língua descobrirão as pequenas diferenças entre as geografias assim como existe com o inglês britânico e o americano e neste caso não se coloca a teoria da dimensão populacional que é usada por alguns para justificar o domínio da variante brasileira.

Como disse Miguel Tamen, professor de literatura da Universidade de Lisboa:

[O Acordo Ortográfico] é um desastre linguístico, porque foi feito de uma forma inepta. É um desastre jurídico, porque ninguém tem a certeza se está em vigor. É um desastre político, porque cede a interesses espúrios. É um desastre intelectual, porque não é, muito simplesmente, eficaz.

Como sou tolerante quanto a existência de variantes dentro da mesma língua, hei de conviver com a nova versão da língua portuguesa e espero que respeitem a minha decisão de não fazer parte dos aderentes.

A África do Sul contra si mesma

SABookHá algum tempo li “A History of South Africa” de Leonard Thompson e fiquei impressionado pela história de sofrimento das comunidades negras da África do Sul desde o momento em que se começaram instalar colonatos europeus no século XVII.

Os povos da África do Sul sempre lutaram contra o regime segregacionista e com as independências africanas na segunda metade do século XX ganharam novos aliados. Os vizinhos independentes da África Austral, em particular Moçambique e Angola, tornaram-se alvos do regime do apartheid. Líderes como Jacob Zuma e Oliver Tambo refugiaram-se em Angola e Moçambique, vários artistas encontraram paz noutros países africanos como Miriam Makeba que viveu na Guiné-Conacry. Este particular período da luta dos sul-africanos, cujo rosto e guia moral foi Nelson Mandela, é que torna as explosões de xenofobia inexplicáveis – em particular para os africanos que são os mais visados da fúria. Jacob Zuma, que viveu na pele a solidariedade do continente nos momentos difíceis, disse que é “inaceitável”, pese o facto do seu filho apoiar a posição do rei zulu, Goodwill Zwelithini, contra a permanência de imigrantes na África do Sul (o rei diz ter sido mal traduzido).

Os episódios de violência xenófoba perpetrados sobretudo por camadas mais pobres não são um fenómeno exclusivamente sul-africano. Historicamente as tensões anti-imigrantes aumentam em períodos de fraco desempenho económico e muitas vezes os estrangeiros servem de bode-expiatório. No caso sul-africano, a postura contra migrantes de outros países, especialmente africanos e asiáticos, não é exclusiva das camadas mais pobres (apesar de serem estas que executam as barbaridades); uma pesquisa da Southern African Migration Project revelou que 90% dos sul-africanos considera que existem imigrantes a mais no seu país e recentemente políticos destacados pronunciaram-se contra o número de estrangeiros no país, como a ministra para o Desenvolvimento de Pequenos Negócios, Lindiwe Zulu que disse que “os estrangeiros têm que perceber que estão aqui por cortesia e a nossa prioridade são as pessoas deste país… (os empresários estrangeiros) não podem barricar-se e escusar-se de partilhar as suas práticas com empresários locais”.

A teoria dos estrangeiros estarem a roubar os empregos dos sul-africanos é contrariada pelos números da organização Migrating Work Consortion, que demonstra que apenas 4% da força de trabalho na África do Sul é estrangeira.

The Migrating for Work Research Consortium (MiWORC), an organisation that examines migration and its impact on the South African labour market, released two studies last year that drew on labour data collected in 2012 by Statistics South Africa.

They found that 82% of the working population aged between 15 and 64 were “non-migrants”, 14% were “domestic migrants” who had moved between provinces in the past five years and just 4% could be classed as “international migrants”. With an official  working population of 33 017 579 people, this means that around 1.2-million of them were international migrants. (link)

O que mais choca África é ver a última fronteira da luta contra o racismo no continente tornar-se num ingrato centro de xenofobia, que, como disse o histórico do ANC Ahmed Kathrada: “xenofobia é racismo”.

Podemos partir para teoria que anos de “separação” do continente num ambiente em que o africano era reduzido a lixo contribuíram para as relações difíceis entre sul-africanos e outros africanos, mas parece que o problema das relações entre povos de África é continental e não apenas de um país. Tenho a impressão (e temo estar certo) que as organizações regionais e continentais em África servem apenas para banquetes periódicos dos líderes enquanto que os cidadãos africanos pouco ou nada  beneficiam das relações institucionais intra-africanas.

O sistema colonial terminou mas a herança continua presente. Tipicamente, os países africanos têm maiores (e por vezes melhores) relações com a antiga potência colonial ou com “irmãos do mesmo colono” (Angola, Moçambique, Cabo Verde, Brasil, Portugal | Ghana, Nigéria, Uganda, Reino Unido | Benin, Senegal, Mali, França). No caso de Angola, vivem entre nós muitos imigrantes africanos, europeus, americanos e asiáticos e é perfeitamente palpável a diferença das nossas relações pessoais com europeus e com africanos. Nas nossas festas mais facilmente encontramos um amigo francês ou português do que um congolês ou nigeriano eventualmente porque estamos cercados de preconceitos que só poderão ser resolvidos com maior interacção e a cultura pode jogar um papel importante já que é igualmente palpável uma afinidade com as cores e sons de outros países do continente porque nenhum ouvido africano é indiferente ao batuque.

Os sul-africanos estão a atacar os pequenos negócios dos etíopes carregados de concepções erradas. Em Angola é frequente ouvir teorias conspiratórias e de certa forma preconceituosas sobre os “Mamadus” que operam as cantinas. Os sul-africanos hoje discriminam e agridem os moçambicanos que há algumas décadas atrás chegaram-se a frente para combater o apartheid e nós temos hoje uma relação apática com os nossos vizinhos congoleses que outrora acolheram (nem sempre com a hospitalidade devida, é verdade) muitos angolanos.

Apesar de tudo, o batuque é tão familiar a todos nós que o kuduro do Cabo Snoop faz furor no continente inteiro, como faz sucesso o som do congolês Fally Ipupa ou a batida do azonto do Gana e do Afrobeat feito na África do Sul, aliás o Uhuru mais famoso de África não é o presidente do Quénia mas sim o grupo musical sul-africano.

Não bastará os africanos não serem agredidos na África do Sul, é preciso criar espaço para troca de experiências e intercâmbio cultural entre os povos. É preciso entender as razões por detrás do fluxo de migrantes africanos para os países do continente (e não só) que apresentam mais oportunidades, é preciso elucidar as pessoas para os factos para abater falsidades e é preciso tornar a solidariedade africana num conceito abrangente e não apenas num escudo de defesa de lideranças duvidosas.

De todo modo, os problemas económicos da África do Sul não podem apagar a sua história recente e não  podem guiar o país que ambiciona ser a “nação arco-íris” para a falência moral. Depois dos acontecimentos de 2008 torna-se ainda mais inaceitável assistir tanta barbaridade pelas mesmas razões, desta vez é preciso um diálogo franco e abrangente porque uma repetição de tais acontecimentos poderá ser fatal para a reputação da nação.