E se Angola fosse uma democracia de facto?

Luanda, 1961

Hoje é dia 4 de Fevereiro, uma das datas mais importantes da história recente de Angola e homenageada com feriado nacional, menção no hino nacional e nome do principal aeroporto do país. Em 1961 quando um grupo de angolanos decidiu rebelar-se contra o poder colonial e mais uma vez ensaiar uma alteração estrutural por via da força, com o fim último de acabar com o colonialismo começando pela libertação de presos políticos em Luanda, não existia um grande plano sobre como uma Angola mais justa deveria estar organizada, o que se queria a todo custo era pôr termo ao regime colonial sustentado numa hierarquia racial humilhante para a maioria dos cerca de 5 milhões de habitantes da altura.

Se em 1961 a implantação de uma democracia não centrava o debate, no presente é uma solução indicada por boa parte das pessoas para que Angola finalmente realize o seu potencial. Neste blogue que discute questões económicas de Angola, em diferentes ocasiões defendi que mais do que um problema económico, Angola tem um problema político que limita a capacidade do país crescer mais e de forma mais harmoniosa.

Apesar de vivermos num país nominalmente democrático, com um governo eleito por sufrágio universal e com um parlamento, um olhar mais apurado (ou nem isso) permite concluir que o funcionamento das nossas instituições não se coadunam com o de uma democracia real, desde a quase inexistência de contrapeso ao poder executivo ao modelo de governação local centralizado. A minha questão é: e se fossemos uma democracia?

  • A comunicação social não estaria refém de decisões arbitrárias do governo que recentemente nacionalizou ou retirou de circulação todos os canais de televisão relevantes que não estavam sob seu controlo e isto iria permitir que tivéssemos o “4.º poder” a operar como fiscal adicional dos outros poderes e com a sua pressão forçar melhorias com impacto na vida da maioria;
  • Ainda sobre a comunicação social, a presença da oposição nos meios de comunicação não deveria ser um tema ao ponto de ser necessário o maior partido da oposição elaborar uma “lista de pedidos” para remediar a situação actual em que o líder do principal partido da oposição não merece uma ou várias entrevistas;
  • O responsável pela governação da minha província e/ou município seria eleito por mim e teria uma prazo para demonstrar se merece ter o mandato renovado ou se os eleitores dariam lugar à outro. Este exercício forçaria o governante a alinhar ao máximo os seus interesses com os do eleitor e disto resulta, regra geral, um governo mais eficiente cuja incompetência é punida nas urnas;
  • Se Angola fosse uma democracia real, o processo eleitoral que já era deficiente jamais seria alterado para um modelo de apuramento centralizado num país tão grande e com tantas limitações logísticas;
  • Tenho poucas dúvidas que numa Angola mais democrática a definição de prioridades para aplicação dos fundos públicos seria muito melhor que a actual que nos deixa sem uma rede viária nacional e local que cumpra com os mínimos olímpicos, com escolas públicas destruídas, com falta do mais básico nos hospitais enquanto são gastos milhões em benesses para um grupo restrito às custas de fundos públicos;
  • Tenho igualmente poucas reservas que se estivéssemos alinhados com as melhores práticas democráticas não existiram um clima de tensão em ano eleitoral porque estaríamos confiantes no sistema, inclusive que uma eventual contestação de resultados seria natural e competentemente resolvida pelos órgãos responsáveis para resolver disputas que naturalmente emergem numa sociedade.

Angola de 2022 é certamente muito pior do que os heróis do 4 de Fevereiro sonharam e acredito que um sistema com mais equilíbrio entre os poderes e com o voto a gozar do seu completo valor a nossa sociedade (e economia) estaria num estado mais avançado. O nosso sistema de educação seria maior, melhor e mais consequente, assim como teríamos infra-estruturas melhores e apontadas para o futuro com vias para acesso mais democrático aos confins do país e com telecomunicações mais modernas, abrangentes e acessíveis em termos de preços para que a nova economia pudesse florescer entre nós como já tem acontecido em outros países africanos.

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Israel e Palestina

Em Fevereiro de 2020, antes da pandemia de COVID se ter tornado realmente global, tive a oportunidade de visitar Israel e a Palestina, a região com um conflito intermitente e, infelizmente, cada vez mais previsível e com poucos avanços reais para aquele que entendo ser o sentido certo.

O conflito entre israelitas e palestinos é complexo e sobre o qual aprendo todos os dias, mas não vejo outra solução a não ser a de dois estados. Contudo, com o avançar dos anos parece ser mais difícil implementar tal solução porque (i) os colonatos judeus na Cisjordânia ocupam grosseiramente o território de um futuro estado palestino e (ii) o minguar da Autoridade Palestiniana e ascensão do Hamas deixa o povo palestino sem um representante fiável aos olhos da generalidade.

A iconografia do conflito pode deixar a ideia que em Israel vive-se em constante tensão mas nos dias que fiquei em Telavive fui surpreendido por uma calma “assustadora” porque apesar de ser comum vermos mancebos adolescentes fardados e de metralhadora a tiracolo e gelado na mão a passear em centros comercias, não me lembro ter visto polícias a patrulhar as ruas, aliás polícias em operação só me lembro de os ter visto a assegurar o desenrolar de uma manifestação de trabalhadores do sexo contra regras restritivas à sua actividade que estavam em discussão no parlamento.

Telavive, Israel

Na verdade, a maior parte dos israelitas tem uma vida normal apesar das circunstâncias e suposta ameaça constante de ataque, o poderoso estado de Israel criou ao longo dos anos condições para que a sua população conseguisse levar uma vida com relativa normalidade e prosperidade cercada de muros e tecnologia de ponta que reduz a quase insignificância o impacto dos ataques episódicos da resistência palestina nas suas diferentes versões.

Contudo, o “sucesso” impressionante de Israel foi conseguido com a imposição de grandes custos à população árabe palestina que habitava a região sob gestão britânica antes da criação do estado de Israel no final da década de 1940.

As sucessivas guerras ao longo dos anos e a visível incapacidade dos diferentes movimentos palestinos em vergar Israel são mais do que indicativos que a solução militar só facilita os extremistas de ambos os lados. O cerco a Gaza é grosseiro e é natural que alimente o ódio visceral de palestinos contra Israel, mas ter o Hamas como defensor da causa cria ao mesmo tempo um argumento para as posições extremas de Israel.

Por outro lado, o PM Netanyahu é cada vez menos popular e cada vez tem mais dificuldades em formar governo sem recurso a coligações heterogéneas que invariavelmente incluem judeus radicais abertamente pró-colonatos e defensores da expansão do poder israelita em Jerusalém oriental, a revelia do mapa globalmente aceite e que não reconhece soberania israelita naquela parte da cidade.

Aliás, sobre Jerusalém tenho que dizer que é de longe a cidade mais intrigante e fascinante que alguma vez visitei. A cidade é considerada sagrada pelas três maiores religiões monoteístas e ao mesmo tempo um palco de conflito constante.

Transeunte muçulmano e igreja cristã em Jerusalém

A pobreza da parte oriental sob constante ameaça da expansão judia em território historicamente muçulmano contrasta com a modernidade e riqueza do lado ocidental onde está o parlamento e a casa oficial do primeiro-ministro de Israel, onde curiosamente não se vê um aparato de segurança relevante.

Aliás, quando se passa para o lado palestino em Belém o controlo é quase nenhum para quem é turista e foi mais uma surpresa. Os palestinos não disfarçam a raiva contra Israel que exerce um poder avassalador nas suas vidas mas para um forasteiro não deixa de ser visível a semelhança entre os povos, nomeadamente na culinária. Belém é mais uma cidade com longa história e significado religioso para os cristãos, apesar de estar sob gestão de um governo marcadamente muçulmano, o respeito pelos sítios marcantes do cristianismo que garantem milhões de turistas anualmente contrasta com a visão generalizada de intolerância associada à alguns governos muçulmanos.

Belém, Palestina

Parece ser mais um local em que as pessoas se acomodaram com a situação que anda longe do ideal, com muros e controlos de fronteia humilhantes para palestinos que os israelitas defendem como necessários para reduzir a vulnerabilidade do seu lado. Ramallah, mesmo ao lado de Belém é uma cidade relativamente moderna onde não se vislumbra um ambiente ameaçador, pelo contrário, as ruas estão cheias de comerciantes e é visível algum entusiasmo do sector imobiliário com prédios a crescerem de todos os lados. Curiosidade, nas caixas ATM as notas que retiras com teu cartão de crédito são de dólares dos Estados Unidos.

Gostaria imenso de voltar àquela região não apenas para explorar melhor Ramallah, mas também para visitar Sderot e Hebron como sugeriu-me o guia palestino-cristão em Jerusalém que na visão dele, sobretudo Sderot, são o exemplo acabado de normalização da situação absurda que se vive naquela região com dois arqui-inimigos que estão condenados a entender-se mas sustentam com posições utópicas que impossibilitam qualquer entendimento.  Os anos passam e estes momentos de tensão são apenas uma excepção de um normal que não deveria ser porque apesar de ser geralmente pacífico para israelitas, impõe custos sociais enormes aos palestinos e impossibilita a paz permanente na região.

Black Lives Matter, estátuas, contexto e novas perspectivas

Estátua do rei belga Leopoldo, fundador do infame Estado Livre do Congo cujas políticas de domínio levaram à morte de cerca de 10 milhões de autóctones

Uma das guerras de muitas populações injustiçadas por regimes políticos do passado, com impacto no presente, são as homenagens toponímicas e estátuas que representam figuras controversas pelo papel que tiveram no comércio e exploração de escravos, sobretudo, enquanto vigorou o comércio transatlântico de escravos e noutros episódios dolorosos da história da humanidade. As estátuas e as referências toponímicas são normalmente homenagens ao passado feitas por pessoas do presente e, como tal, o sentimento sobre o dito passado que é afectado por subjectividades, muda e esta mudança acompanhada por dinâmicas políticas e sociais poderá desembocar em movimentos contra o passado que o “presente do passado” em algum momento homenageou.

As manifestações massivas que espontaneamente levaram centenas de milhares de pessoas em todo mundo a meio de uma pandemia a protestar estruturas sociais opressivas para as populações de afrodescendentes, sobretudo, nas Américas e Europa ganharam um novo alvo: estátuas de “heróis coloniais”. Assim, no mesmo sentido do movimento #RhodesMustFall na África do Sul e a luta do movimento Black Lives Matter nos Estados Unidos contra estátuas de líderes da confederação do sul dos Estados Unidos que lutou pelo “direito” de ter escravos na guerra civil americana, jovens europeus começaram a derrubar estátuas de figuras ligadas ao comércio de escravos em diferentes cidades do velho continente de Bristol à Antuérpia, alegando que estas homenagens perpetuam um passado repreensível.  

Este movimento choca muita gente que defende se tratar de um revisionismo empobrecedor, considerando as estátuas um elemento essencial para se contar a história, ignorando que ela se mantém lá, essencialmente, porque alguém em algum momento decidiu homenagear uma figura que pessoas da nova geração entendem não ser merecedora de homenagem. A contextualização é fundamental para se contar a história mas não deve ser usada como um instrumento para construção de narrativas que servem sobretudo interesses do presente. A questão das sociedades do passado terem sido erguidas num contexto próprio obriga-nos  a fazer algum exercício de ajustamento e evitar olhar o passado exclusivamente com óculos do presente e esta tentação explica em parte a não homenagem da Njinga Mbandi com uma rua num bairro de Berlim porque a soberana do Ndongo foi partícipe do comércio de escravos, que a partida é um acto abominável mas carece de contextualização como escrevi aqui. As homenagens à Njinga em Angola e noutras geografias não buscam perpetuar uma agente activa no comércio de escravos no século XVII mas a soberana guerreira na memória colectiva de africanos e seus descendentes, alguns deles pessoas escravizadas nas Américas. O mesmo argumento pode ser usado pelas pessoas que acham que Cecil Rhodes mais do que um defensor da estruturação racial de uma sociedade já no final do século XIX que coloca o negro na base e o branco no topo foi um empresário e político brilhante que ajudou a construir a África do Sul e merece ser homenageado.

A história como ciência procura relatar o passado com distanciamento mas contextualização e suporte. Contudo, a história não estará nunca isenta de interpretação e como tal poderá sempre ser utilizada como pedra basilar para construção de certas narrativas. A única forma que conheço para evitar o ruído das narrativas é a maturidade para discutir abertamente o passado desconfortável no presente e só assim a abordagem primordial nestes diálogos será a busca da justiça e compreensão e nunca a busca da vingança, por maior que seja a tentação.

A defesa da manutenção de homenagens a figuras controversas por norma é sustentada por ideias que defendemos no presente e não necessariamente algum apego pela divulgação da história uma vez que esta é, sobretudo, contada em livros e não com monumentos artísticos que poderão de facto representar uma afronta para muitas pessoas.

Um dos elementos que coloca muitos dos monumentos em cheque é que servem essencialmente para homenagear e celebrar a vida de alguém que representa o sofrimento de um grupo específico. O facto de uma posição aceitável no passado não encontrar enquadramento no presente obriga a reconsideração de posições. Neste blogue defendi a manutenção da rainha Njinga como símbolo de resistência e afirmação do poder africano e critiquei a reintrodução do nome Moçâmedes na toponímia angolana mas consigo conciliar com a eventual satisfação de um português com os feitos do Barão de Moçâmedes em nome da coroa do império luso. Contudo, as sociedades etnicamente heterogéneas criadas pela colonização nas Américas e pela imigração na Europa confrontaram certas certezas das classes dominantes nestas regiões como heróis nacionais que assumem o papel de vilão para outras pessoas, por exemplo: será que um cidadão português nascido e criado em Moçambique celebra as vitórias de Mouzinho de Albuquerque? Será que os feitos do comandante Roçadas ao serviço das tropas de Portugal devem ser celebrados por portugueses de origem angolana que sabem que Roçadas foi o algoz do herói angolano e namibiano Mandume? Parece natural que os heróis da guerra de uma nação celebrados por vitórias militares representem vilões no lado oposto e este conflito de posições (ou opiniões) é muitas vezes inevitável.

O que é facto é que as histórias destas figuras controversas não se resume à existência de estátuas em sua homenagem, esta seria talvez uma boa oportunidade para revisão da forma que se ensina história e apoiar os museus que procuram contar de forma condensada e acessível a história, os museus aliás seriam um bom local para parquear e contextualizar estátuas que se entendem agora como desenquadradas. O artista Banksy sugeriu uma alternativa à estátua do filantropo e antigo comerciante de escravos Edward Colston que foi derrubada e atirada ao rio em Bristol na Inglaterra, que passa pela recuperação da estátua e uma nova colocação artística que integra os manifestantes a derrubar a estátua como uma forma de contar a história de forma mais completa.   

Ilustração de Banksy

A alteração de valores ou aceitação de ideias antes negligenciadas ou oprimidas podem provocar mudanças na aceitabilidade de certas práticas ou monumentos, este facto está na base, por exemplo da alteração do nome de ruas e localidades em Angola no período pós colonial ou mesmo a passagem do nome da ponte sobre o rio Tejo em Lisboa de “Ponte Salazar” para “Ponte 25 de Abril”. O nível de aceitação destas mudanças muitas das vezes não está ligado à nenhum apego a preservação ou transmissão da história mas é sobretudo uma manifestação de resistência à mudança de algumas pessoas e questões do âmbito racial deixam muitas pessoas brancas na defensiva e este posicionamento é muitas vezes bloqueador da necessária empatia para melhor compreender as feridas que alguns símbolos e práticas ainda causam hoje.

Angola e o seu património imaterial

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Máscaras konguesas na exposição Kongo: Power and Majesty do Metropolitan Museum of Art de Nova Iorque

Em Dezembro de 2018 a ministra da cultura Carolina Cerqueira  anunciou que o estilo musical angolano semba será candidato a Património Imaterial da Humanidade da UNESCO.  As palavras da ministra foram recebidas com entusiasmo e reticências.

Entre os menos entusiasmados ouviram-se diferentes razões, desde críticas ao tratamento que os fazedores do Semba têm recebido do Ministério a alegada existência de estilos musicais nacionais com maior potencial para tal candidatura, como a Tchianda que segundo o músico Jorge Mulumba “tem mais força que o Semba  porque nos países vizinhos como o Congo, Gabão, Zâmbia e Namíbia toca-se e dança-se este género das Lundas”.

Ao contrário do que se possa pensar, o reconhecimento internacional não é condição necessária para que uma prática cultural seja elevada a património imaterial, mas sim todas as manifestações com valor cultural e social de um povo, cujo valor é reconhecido a nível nacional e nesta categoria encontram-se práticas mundialmente famosas como o reggae jamaicano ou mais obscuras e locais como o português “cante alentejano”.

É missão do Ministério da Cultura garantir a protecção e divulgação da cultura nacional nas suas mais distintas manifestações e as evidências apontam para um trabalho com muito espaço para melhorar por parte do MINCULT mas candidatar uma das faces da música urbana moderna angolana é um passo no caminho certo.

Ainda que existam outros estilos entre nós com mais notoriedade – local ou externa – não existe regra nenhuma que imponha limite ao acervo patrimonial de um país e de forma alguma Angola deveria abdicar da ambição de ver outras manifestações culturais dos povos de Angola reconhecidas como Património Imaterial da Humanidade e a lista de candidatos é longa, na minha modesta opinião, e no caso de Angola a influência destas práticas na cultura de outros povos é uma mais-valia.

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Mapa do comércio transatlântico de escravos (dimensão das setas indicativa da movimentação de escravos por origem e destino)

Como várias vezes escrevi neste espaço (aqui, aqui, aqui, aqui e aqui) a história dos povos de Angola foi muito marcada pelo cruzamento com o período de expansão europeu iniciado no século XV e capitaneado pelos portugueses. O desenvolvimento da economia globalizada da época e as relações existentes entre Portugal, soberanos e comerciantes do nosso lado da costa colocaram os escravizados angolanos no centro do sistema comercial triangular e, como tal, por terem formado comunidades muito expressivas no Novo Mundo a sua influência cultural globalizou manifestações culturais angolanas, sendo que algumas destas manifestações foram já elevadas a Património Imaterial da Humanidade pela UNESCO como o Espaço Cultural da Cofradía del Espíritu Santo de los Congos de Villa Mella da República Dominicana que foi erguido por descendentes de escravos embarcados essencialmente do norte de Angola para as Américas ou mesmo a Roda de Capoeira brasileira que tem na sua génese a arte marcial do sul de Angola ngolo (ou engolo) e esta prática ainda viva em comunidades do sul de Angola (como na Huíla e Namibe) seria um bom candidato nacional.

Angola deveria igualmente submeter como candidatos a património imaterial da humanidade algumas línguas angolanas que merecem ser protegidas não só pela sua importância local mas também pela influência no exterior como kikongo, kimbundu e umbundu que dominam o mosaico linguístico angolano entre as línguas africanas que falamos e estão ainda hoje presentes nos falares de outros países, designadamente a nível da culinária e música.

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Músicos da corte de Njinga Mbandi (por Giovanni A.Cavazzi de Montecúccolo)

Existem ainda entre nós uma série de manifestações culturais com pouca visibilidade nacional que merecem ser abraçadas, primeiro localmente e a seguir ser analisado o seu potencial para o reconhecimento da UNESCO como (i) alguns dos diferentes rituais de iniciação ainda existentes, (ii) a antiquíssima arte de esculpir materiais sólidos que nos trouxe até hoje o trabalho de artesãos que trabalham sobretudo a madeira, muito presentes nas regiões que foram no passado integrantes do Reino do Kongo e na região Côkwe, assim como deveríamos tomar iniciativa em reclamar para Angola o património cultural que representa a marimba que é um dos instrumentos centrais da cultura musical do antigo Reino do Ndongo que é hoje um instrumento global, sobretudo de grande valor identitário nas Américas, aliás, a Colombia e o Equador têm registado junto da UNESCO a “expressão cultural marimba” como património imaterial da humanidade pelo valor que esta manifestação composta por cânticos acompanhados pela marimba representa para os povos de origem africana de regiões da Colombia e do Equador.

Temos um longo caminho para andar na protecção e divulgação interna da nossa cultura mas o objectivo de obter o reconhecimento internacional deve fazer parte de qualquer plano que vise honrar a história e a cultura dos povos de Angola.

Njinga Mbandi e o tráfico de escravos

Há umas semanas um amigo enviou-me uma notícia da Deutsche Welle dando conta que o nome da Rainha Njinga Mbandi do Ndongo e Matamba tinha sido rejeitado para integrar a toponímia do bairro africano de Berlim porque a soberana do Ndongo do século XVII participou no comércio transatlântico de escravos que vigorou entre o final do século XV e o final do século XIX.

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Curiosamente, por desconhecimento da história, muitas pessoas ficam chocadas quando tomam conhecimento que soberanos e comerciantes africanos tiveram um papel activo no comércio de pessoas que levou milhões de africanos como escravizados para as Américas. Este desconhecimento, naturalmente estende-se ao modelo organizacional e político das sociedades da altura e como a expansão do comércio de escravos entre as duas costas do Atlântico alterou estas sociedades, alimentando guerras e destruição de nações e reinos africanos. Contudo, o processo de produção de escravos (na linguagem historiográfica) não se resumiu a guerras de iniciativa europeia associadas aos planos de instalação colonial nas terras que são hoje Angola mas também por via da colaboração entre comerciantes europeus e africanos, representantes da realeza europeia, a igreja católica e soberanos africanos.

O infame comércio que levou milhões de pessoas da costa ocidental africana para o sul da Europa no final do século XV ganhou dimensão apenas no segundo quarto do século XVI quando as relações de Portugal com o Reino do Kongo, sedeado em Mbanza Kongo, se foram cimentando a medida que Portugal expandia a colonização do Brasil, processo que foi o principal indutor da procura por escravos africanos. As relações diplomáticas estabelecidas entre os soberanos do Kongo com o Reino de Portugal abriram o caminho para  a maior presença de comerciantes portugueses na costa angolana que trocavam manufacturas europeias e asiáticas por pessoas e produtos africanos (como marfim e peles).

Joseph Miller no seu influente livro “Way of Death – Merchant Capitalism and The Angolan Slave Trade 1730-1830” tenta desmistificar o choque das sociedades modernas quando se deparam com o facto de existirem africanos envolvidos no comércio de escravos, apresentando o papel que os escravos representavam nas sociedades africanas e como poderiam chegar à tal condição. Miller defende que na África centro-ocidental da altura (essencialmente no que é hoje Angola) o poder dos soberanos assentava na capacidade de controlar os bens e na quantidade de pessoas sob sua dependência, quer fossem livres ou escravos, sendo que a fluidez da condição de escravo permitia a ascensão social e não implicava limitações extremas à sua interacção com a sociedade alargada.

Miller afasta a noção do comércio de pessoas ser inerente à sociedade africana da altura: O historiador defende que a noção de comércio de produtos era estranha a sociedade africana que seguia um modelo de produção comunitário e sem a busca pelo o excedentário. No entanto, o triunfo do comercialismo com a chegada dos europeus alterou a abordagem dos africanos, em particular os seus soberanos.

[…] before the advent of slaving ad commercialism, goods were not generally viewed as made for exchange. The purpose of production was for use within community , with the ordinary distribution of products handled under the rubrics of inheritance, redistribution, or sharing.

“Way of Death – Merchant Capitalism and The Angolan Slave Trade 1730-1830” – Joseph C. Miller

É importante acrescentar que os comerciantes lusitanos e a coroa portuguesa souberam habilmente tirar proveito e manipular a seu favor conceitos existentes na sociedade africana para desenvolver a sua actividade, nomeadamente explorando a escravização por via judicial (punição por dívidas, furtos, homicídios e feitiçaria) e iniciando ou apoiando guerras entre territórios rivais uma vez que era cultura local transformar prisioneiros de guerra em escravos.

O modelo judicial foi crescendo a medida que o Reino de Portugal foi instalando feitorias no território que é hoje Angola e o Brasil se tinha tornado na jóia da coroa do Império colonial portugês com uma procura insaciável por mão-de-obra escravizada que era maioritariamente originária de Angola. A historiadora brasileira Mariana Cândido evidencia no livro “An African Slaving Port and the Atlantic World: Benguela and Its Hinterland” como o comércio de escravos afectou as instituições africanas, tornando as armas de fogo e produtos manufacturados trazidos por europeus em meios essenciais para manutenção do poder, o que levou muitos reinos africanos a busca desenfreada por produtos trazidos pelos europeus (e brasileiros) que eram trocados por escravos.

Scholars have pointed to the use of judicial litigation as an example of African agency and resistance to enslavement. José Curto and Roquinaldo Ferreira, for example, have identified cases where captives relied on relatives to challenge their enslavement. Curto and Ferreira failed to recognize , however, that despite their agency, litigants reinforced the role of Portuguese colonial officials as arbitrators of their fate. West Central Africans were compelled to accept that Portuguese agents could decide who was “legally” or “illegally” enslaved, revealing the compliance of all involved with the system and the notion of slavery as a legal institution. In the process of fighting for their freedom, litigants accepted and reinforced the legality of slavery. Victims of the expansion of the trans-Atlantic slave trade, through their resistance, contributed to legitimizing slavery.

“An African Slaving Port and the Atlantic World: Benguela and Its Hinterland” – Mariana P. Cândido

Existe igualmente a ideia relativamente recente de “denunciar” o facto de “negros escravizarem negros” que é factual do ponto de vista das concepções raciais modernas mas que não encontra sustento na construção social africana da altura uma vez que as guerras entre territórios não tinham uma base racial e não existia a lógica de “africanos” uma vez que um habitante do Ndongo não era necessariamente amistoso para um habitante do Mbailundu simplesmente por ter a mesma tez de pele. O amalgamento do negro africano numa única categoria – negro/preto/africano/escravo – é uma construção do colonialismo europeu, que como consequência do processo de desumanização com base na cor da pele gerou solidariedade entre pessoas negras e seus descendentes nas colónias europeias, criando assim a noção de solidariedade africana e pan-africanismo, derivadas do processo de colonização.

A participação de locais no processo de escravização e posterior deportação de pessoas para as Américas foi um elemento central durante todo o período do comércio transatlântico de escravos, com diferentes níveis de envolvimento ao longo dos anos. Contudo, é útil fazer uma distinção entre o modelo de tratamento e regulação da vida dos escravos nas Américas do seu tratamento em África.

Os historiadores contam que os escravos na África centro-ocidental estavam sujeitos a limites à sua liberdade, incluindo a possibilidade de poderem ser enviadas para as Américas por decisão exclusivamente de terceiros, mas também reconhecem a fluidez que possibilitava a mobilidade social e ascensão à liberdade, por exemplo, a mãe de Njinga Mbandi era uma escrava do rei.

Ademais, não existia em África a exploração industrial da mão-de-obra escrava que está na base das altas taxas de mortalidade dos africanos nas primeiras décadas da colonização do Brasil, que por algumas vezes levou a protestos de soberanos africanos depois de reportes que recebiam, sobretudo, de religiosos com visitas aos dois lados do Atlântico.

As imagens chocantes normalmente associadas à este período da história marcadas pelo transporte em parcas condições, trabalho e punições extremas são sobretudo uma realidade colonial das Américas, uma vez que não sendo uma diferença de água para o vinho, a interacção dos europeus com os africanos em África era menos excessiva e esta realidade passou a ser do conhecimento geral em Angola – sobretudo onde existiam feitorias europeias enraizadas – como evidencia o facto da deportação para o Brasil para os escravizados ser vista como a maior das punições a seguir a morte (para escravos trazidos do interior, a associação do mar à morte era igualmente um factor de desespero).

Os soberanos africanos que se tornaram dependentes de produtos trazidos pelos comerciantes para manterem ou expandirem o seu poder, tornaram-se numa peça fundamental para geração de escravos muito procurados para a colonização das Américas, com destaque para o sul e para as ilhas caribenhas. O aumento das áreas cultivadas e exploração mineira nas Américas reduziram o continente africano a fornecedor de escravizados no modelo comercial triangular.

O escravo era tão central para a presença europeia em África que a relação comercial e fiscal entre africanos e europeus, sempre que implicasse transacções pecuniárias o meio de troca eram escravos. Os soberanos africanos pagavam impostos aos portugueses com escravos, ofereciam escravos e armavam-se trocando escravos por armas de fogo, que eram usadas para manter e expandir o seu poder. Neste contexto, a Rainha Njinga Mbandi, descrita como política astuta que soube navegar as idiossincrasias do seu tempo como nenhum outro líder da época, também ofereceu escravos à religiosos e nas várias negociações que fez com portugueses e holandeses, liderou batalhas que geraram escravos, vendeu escravos para armar-se e defender a independência dos seus territórios das investidas dos portugueses e de líderes africanos hostis ao seu reinado.

A Njinga Mbandi inteligente, valente e defensora do território que defendia ser legado dos seus antepassados é que foi transportada para as Américas pela vasta Diáspora de povos  oriundos de territórios que hoje formam Angola. Os escravizados africanos levados para as Américas, independentemente da forma em que acabaram na condição de escravo que antecedeu o seu transporte para a dura vida nas plantações e minas das colónias europeias, não construíram uma imagem negativa de Njinga Mbandi, pois na memória colectiva da Diáspora africana a Rainha do Ndongo e Matamba é vista como um exemplo de bravura e genialidade, Njinga Mbandi viveu na memória daqueles escravos como um exemplo de liderança africana num mundo alterado pela presença de forasteiros e não como uma traficante de escravos oportunista.

A negação do nome de Njinga Mbandi na toponímia de Berlim embora que em certa medida seja justificável, parece desinformada e vítima de descontextualização. A decisão parece ter sido afectada por um olhar do passado com óculos do presente sem que se tenham sido consideradas questões básicas como o modelo de geração de escravos em África no século XVII, o papel que os escravos tinham na sociedade africana pré-contacto com europeus, diferenças no modelo de exploração e tratamento de escravos em África e nas Américas, a forma de comunicação e disponibilidade de informação à época.

A complexidade das sociedades da época em que viveu a Njinga Mbandi tem sido descodificada nas últimas décadas por vários académicos que têm uma visão do lugar ocupado por Njinga Mbandi na história de África muito diferente daquela que sustentou a decisão das autoridades de Berlim, como demonstram os diferentes comentários feitos ao livro de Linda Heywood que é amplamente tido como a melhor e mais completa biografia de Njinga.

Njinga’s time has come. Heywood tells the fascinating story of arguably the greatest queen in sub-Saharan African history, who surely deserves a place in the pantheon of revolutionary world leaders, male and female alike.

Henry Louis Gates, Jr. sobre “Njinga of Angola – Africa’s Warrior Queen” de Linda Heywood

Um paralelo poderia ser feito com Thomas Jefferson que foi co-autor do marco intelectual que é a constituição dos Estados Unidos que em 1788 defendia que  “todos os homens nascem iguais” mas seguindo a lógica de desumanização do escravo africano, os Estados Unidos continuaram a considerar a escravatura legal porque teoricamente não havia contradição. Thomas Jefferson, embora não tenha participação no tráfico de escravos (que chegou a criticar) foi ao longo de toda sua vida (1743-1826) proprietário de escravos e continua presente na toponímia de vários países, incluindo na Alemanha.

Nos Estados Unidos ao longo dos anos, muitas localidades têm estado a derrubar estátuas de líderes da Confederação de estados que lutou contra a união, essencialmente, pelo direito de ter escravos já no final do século XIX mas não é expectável que Jefferson seja retirado do Mount Rushmore ou mesmo veja o seu nome removido da Thomas Jefferson Straße (rua Thomas Jefferson) em Mannheim no estado Baden-Württemberg na Alemanha. Por outro lado, também não é expectável que a estátua da Rainha Njinga Mbandi seja retirada em Jamestown nos Estados Unidos.

Popularidade da kizomba? O mundo gosta do som angolano há séculos

No dia nacional da cultura, 8 de Janeiro, a ministra Carolina Cerqueira anunciou um projecto de “actualização, ainda este ano, do registo dos instrumentos musicais tradicionais de cada província do país e a constituição de uma banda musical deste género”. Uma ideia interessante, na minha modesta opinião, que exigirá investimento em pesquisa e formação e espero que a iniciativa não esbarre nas restrições financeiras que têm estado a afectar a implementação de muitos programas públicos.

Para qualquer pessoa atenta é bem visível a popularidade global de alguns estilos de música urbana moderna criados em Angola como kizomba e kuduro. O site Festivalsero tem catalogados cerca de 50 eventos internacionais, entre festivais e congressos, dedicados inteiramente ou em parte a kizomba agendados para 2017 em diferentes países desde Israel à China, números indicativos da popularidade do estilo de música e dança que inspirados no semba e na música antilhana Eduardo Paím e seus pares criaram nos anos 1980 em Luanda. Contudo, a kizomba e o kuduro não são os primeiros sons angolanos que conquistaram o mundo. Na era da expansão colonial europeia os instrumentos musicais e sons levados por escravizados do nosso actual território deixaram a sua marca no Novo Mundo.

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Fonte: Festivalsero

Phillip Effiong, académico nigeriano que tem o mesmo nome que o seu pai, o general do exército secessionista que assinou o acordo que pôs termo à guerra civil da Nigéria (aka guerra do Biafra), publicou há tempos um trabalho sobre a origem do banjo, o instrumento de cordas popularizado no século XX por artistas de blues  e jazz cuja origem africana é quase uma unanimidade entre historiadores e estudiosos dos instrumentos musicais. É um facto que em diferentes regiões de África podem ser encontrados instrumentos de corda semelhantes à uma guitarra rudimentar mas terão sido os escravos angolanos levados para o sul dos Estados Unidos que deram a conhecer “o pai do banjo” aos americanos.

*The gourdbodied instruments that eventually emerged as the banjo in the US were thus fashioned by slaves mostly in the American South and Appalachia, and would go through a process of being defined variously as bangie, bangoe, banjar, banjil banza, banjer and banjar.

Another theory cites the Quimbundo (also spelled Kimbundu) word m’banza, which means city or town, as another possible source of the word banjo. Quimbundo is the language spoken by one of the largest ethnic groups in modern Angola. When Portuguese colonizers and North American slave owners began calling the instrument banjo, they may have been influenced by the word m’banza. They may also have been influenced by the word banzo, which Brazilian slaves generated as an expression of the grief they felt for being held in bondage. Interestingly, Brazilian slaves typically expressed banzo when they played the banjo. The word banzo may have also come from the word m’banza.

In “African Origins of The Banjo” de Philip Effiong

Philip Effiong menciona que mbanza quer dizer cidade em kimbundo (e kikongo) mas não diz que também é o nome que os angolanos chamam à uma guitarra de fabrico artesanal com materiais rudimentares como atestou Assis Júnior no seu dicionário kimbundu-português. O bandolim rudimentar angolano também é conhecido como cambanza como refere Oscar Ribas no seu “Dicionário de regionalismos angolanos”.

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In “Dicionário Kimbundu-Português” de A. de Assis Júnior

No texto que acompanha a imagem (abaixo) do jovem negro com um “cordofone de formato arredondado como o do banjo” do livro “O rasga: uma dança negro portuguesa” o autor José Ramos Tinhorão aborda a origem kimbundu da palavra e refere que banza era também usada até ao princípio do século XX para designar a guitarra usada para tocar o fado português.

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In “O Rasga: uma dança negro-portuguesa” de José Ramos Tinhorão

A generalidade dos instrumentos e ritmos africanos entraram na cultura do Novo Mundo por via de rituais religiosos e outras cerimónias sociais levadas pelos africanos para as Américas como mostra o desenho do século XVII do soldado e artista alemão Zacharias Wegener – “Negertanz” – que retrata uma cerimónia espiritual africana numa fazenda brasileira que o historiador James Sweet descreveu como sendo uma cerimónia de escravos de origem angolana que no Brasil (e posteriormente em Portugal) popularizou-se com o nome calundu (lundu) que é uma corruptela da palavra kilundu do kimbundu. O calundu é um ritual que envolve música tocada com instrumentos africanos (angolanos no caso) como, ngomapuíta e dikanza. Esta cerimónia semelhante ao ritual do xinguilamento  foi uma das mais relevantes fontes das danças e música de origem africana presentes hoje nas Américas e parte importante desta música são os instrumentos que os africanos construíram na outra margem do Atlântico com base nas referências que levaram de África.

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“Negertanz” de Zacharias Wagener

A cultura afro-brasileira foi enormemente influenciada pelos escravos de origem angolana e hoje é impossível imaginar a música brasileira sem a cuíca (puíta em Angola), sem o canzá (que nasceu da dikanza) e a capoeira, que também foi levada ao Brasil por angolanos, não pode ser praticada sem o inconfundível som do berimbau que é o nome brasileiro para o hungu tocado em Angola.

No Brasil de hoje os tambores que os angolanos chamam ngoma os praticantes do jongo – os jongueiros – chamam de angoma ou de tambu, palavra que poderá estar ligada a tambo ou tambi que são os rituais associados aos óbitos, uma vez que tais batuques estavam muito presentes nas cerimónias fúnebres. Reza a história que o jongo actual teve origem num jogo de adivinhação e cerimonias de divindade angolanas e o ritmo é da responsabilidade de batuques previamente consagrados (ngoma e tambu), da puíta, do berimbau e do luso-árabe pandeiro.

No presente, muitos dos estilos musicais reconhecidos como brasileiros são uma evolução de expressões culturais africanas (notavelmente angolanas) e tal como o jongo o samba também tem na sua génese manifestações religiosas levadas para o Brasil por escravos e tem o som da ngoma, da puíta, da dikanza e de instrumentos de corda rudimentares na sua base.

a definição de samba como “dança de negros”, seguida da explicação de que “hoje é termo bem vivo no sentido de composição musical”. A palavra samba, do étimo quimbundo/quicongo kusamba, significa rezar, orar para os deuses e ancestrais, sempre festejados com danças, cânticos e músicas, celebrações que certamente eram vistas com estranheza e de caráter lúdico pela sociedade católica circundante. Contagiado pela cadência rítmica e gestual da dança, o que antes era dança de negros foi esvaziado do seu conteúdo religioso original e o samba-oração negroafricano foi apropriado na categoria de gênero musical-dançante para se tornar mundialmente reconhecido como a mais autêntica e representativa expressão da musicalidade brasileira.

In “A Influência Africana no Português do Brasil” de Yeda Castro

Outra antiga sociedade escravocrata com grande tradição de música de origem africana é a cubana e lá, tal como no Brasil, os filhos dos reinos do Ndongo e Kongo levaram os seus instrumentos para acompanhar as suas cerimónias socioculturais e a manifestação religiosa de origem bakongo Regla de Congo** (ou Palo Monte ou Palo Mayombe) introduziu o tambor de makuta (ou tumba ou tumbadora) aos cubanos que depois de muitos anos pariu a moderna conga, um batuque de produção industrial que herdou a expressividade do seu antepassado de produção artesanal. As congas estão presentes na constituição rítmica da congada, a expressão cultural cubana que tem equivalentes no Brasil e em outros países caribenhos com origem conguesa. Outro nome para o tumbadora em Cuba é tambó, cuja etimologia tanto pode originar da palavra tambor (ou latim tamburro) como pode ser equivalente ao tambú brasileiro e esteja ligado aos rituais fúnebres comuns no território que é hoje Angola (tambo/tambi).

Antes de Cuba receber grandes quantidades de escravos os principais receptores de escravos africanos nas colónias espanholas das Américas eram o que são hoje o México e o Peru e ambos os países receberam muitos escravos vindos do que é hoje Angola. No Peru, o landó e samba landó são versões do que no Brasil chamou-se de lundu, isto é, uma dança originária de cerimónias religiosas de escravos mundongo e bakongo naquelas terras onde também existe a conga, semelhante às comparsas cubanas e congadas do Brasil.

Na Costa Rica, país vizinho de Cuba, existe um instrumento musical que é património daquele país cuja origem ainda é controversa em alguns círculos que argumentam ser de origem ameríndia. Contudo, muitos estudiosos consideram o quijongo costa-ricense um instrumento de origem africana, provavelmente bakongo ou mundongo. Com efeito, o arco que integra uma cabaça como caixa de ressonância da corda que liga os dois extremos do arco é o irmão gémeo do hungu e naquela ilha caribenha foram importados muitos escravos de origem angolana pelos colonos espanhóis. A palavra quijongo poderá estar relacionada com kinjongo que em kimbundu quer dizer gafanhoto.

A difusão do hungu não se limitou às colónias europeias nas Américas, no século XVIII o mesmo instrumento era ouvido nas ruas de Lisboa quando escravos africanos e afro-brasileiros se juntavam a lisboetas para celebrar interpretando o que se chamava na altura de “modinhas do Brasil” que incluía o lundu e segundo José Ramos Tinhorão estas celebrações foram o embrião da dança portuguesa rasga.

Entre os instrumentos levados por angolanos para outras terras durante o período do comércio transatlântico de escravos o que obteve maior notoriedade e presença geográfica é provavelmente a marimba. O instrumento levado pelos naturais das terras do Ngola e do Reino do Kongo para a outra margem do Atlântico é hoje tocado em quase todos os países das Caraíbas e América Central e está presente na cultura sonora de todas as regiões do continente americano. A marimba é o instrumento nacional da Guatemala, é indispensável para identidade cultural da Costa Rica e está entre os mais tradicionais instrumentos dos sons afro-descendentes das Américas.

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As marimbas modernas de produção industrial assim como as artesanais presentes hoje nas Caraíbas e na América Central são diferentes das mais tradicionais marimbas nacionais. A estrutura do instrumento foi sofrendo alterações ao longo dos anos nas Américas como demonstram as diferenças evidentes entre a ilustração do padre Giovanni Antonio Cavazzi do século XVII feitas aquando da sua visita à Angola e a pintura do artista peruano Pancho Fierro representando tocadores de marimba afroperuanos na segunda metade do século XIX.

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In “Istorica descrittione de Regni Congo, Matamba, et Angola” de Giovanni Antonio Cavazzi da Montecuccolo (esquerda) | obra de Pancho Fierro (direita)

Em Cuba e noutras partes das Caraíbas  e da América Central (Porto Rico, Honduras, Dominicana, Venezuela, México) toca-se também a marímbula (ou marimból), que apesar do nome assemelha-se sobretudo a um kissanji gigante constituído por uma caixa com teclas metálicas. Por seu turno, o kissanji ou piano de dedo (conhecido noutras partes de África como mbira) era tocado em vários territórios africanos  e foi efectivamente um dos instrumentos mais utilizados pelos escravos nas Américas.

Com efeito, na região do Rio de la Plata (Urugai e Argentina) para onde foram levados muitos escravos angolanos o piano de dedo também é conhecido como quisanche e a fonética e a forma não escondem a origem no kissanji angolano. Foram esses africanos que lançaram as bases da cultura candombe presente nos dois países e os movimentos do candombe rio platense constituem a célula estaminal do tango, símbolo cultural mais facilmente associado à Argentina. O tango afroportenho de Buenos Aires difere do cubano tango congo, assim como da versão moderna do tango mas a sua raiz africana é inegável como mostra a ilustração de 1882 abaixo.

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“Do Congo ao Tango” de Leonardo A. M. Pereira

O icónico músico mexicano Carlos Santana disse uma vez que “a música que chamam de latina ou hispânica é na verdade africana. Por isso, os negros têm que receber os louros”, certamente é uma simplificação mas não é muito longe da verdade e não é pretensão nenhuma os angolanos reclamarem uma quota de influência significativa na formação da cultura musical não apenas da América Latina como também da música afro-americana do norte do continente americano e da música afro-caribenha uma vez que muitos dos instrumentos e ritmos que estão na base da música crioula do Novo Mundo foram levados para lá pelo filhos das vilas costeiras e interior da Angola contemporânea embarcados nos portos de Luanda, Benguela, Kakongo, Mpinda, Ambriz e Angra do Negro.

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*[Tradução]

Os instrumentos com forma de cabaça que eventualmente transformaram-se no banjo nos EUA foram desenvolvidos por escravos na maior parte no sul dos Estados Unidos e Appalachia, e pelo processo tiveram diferentes designações como bangie, bangoe, banjar, banjil banza, banjer e banjar.

Outra teoria considera a palavra do Quimbundo (ou Kimbundu) m’banza, que significa cidade ou vila, como outra possível fonte da palavra banjo. Quimbundo é a língua falada por um dos maiores grupos étnicos da moderna Angola. Quando os colonizadores portugueses e os proprietários de escravos norte-americanos começaram a chamar o instrumento banjo, eles podem ter sido influenciados pela palavra m’banza. Poderão igualmente ter sido influenciados pela palavra banzo, que os escravos brasileiros geraram como uma expressão da dor que sentiam por serem mantidos em cativeiro. Curiosamente, escravos brasileiros tipicamente expressavam banzo quando tocavam banjo. A palavra banzo também pode ter originado da palavra m’banza.

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** [sobre “congo” antigo e actual] Vale recordar que o antigo Reino do Kongo não deve ser confundido com a R.D. Congo ou com a República do Congo (Brazzaville) e é uma confusão muitas vezes feita com as referências à “Congo” (ou “Kongo, “congo”, “conga”, “congada”, etc.) que aparecem na história (e presente) do Novo Mundo e da África pré-conferência de Berlin uma vez que o Reino do Kongo era centrado em Angola e, embora fossem muitas vezes catalogados como “congos” escravos originários do Reino do Loango (Congo Brazzaville) e à norte do Lago Malebo  (actual R.D. Congo) a grande maioria dos “congos” levados para o novo mundo não só embarcaram de portos na costa da actual Angola como foram capturados em territórios que hoje fazem parte de Angola. Assim, sendo uma simplificação, chamar os escravos congos de angolanos olhando para as fronteiras actuais não é nenhum erro grosseiro até mesmo porque segundo estimativas de Nathan Nunn Angola exportou para o Novo Mundo 4,2x mais escravos que a RDC e o Congo combinados

Halloween e a origem angolana do zombie

No próximo fim de semana, que antecede o dia 31 de Outubro, muitas pessoas por cá vão participar em “festas das bruxas” reproduzindo a tradição celta do Halloween na sua versão americana. Uma das figuras centrais do Halloween dos tempos modernos é o zombie, o morto-vivo popularizado por Hollywood cuja construção mística tem supostamente raízes no Haiti, ênfase em “supostamente” porque na verdade a figura do zombie foi introduzida ao Novo Mundo por escravizados africanos, em particular os falantes de kikongo e seus vizinhos a sul falantes de kimbundu que tiveram grande representatividade nos escravos levados para as colónias francesas no Novo Mundo em que se inclui o Haiti.

In the period 1711-1800, the proportion of French slave exports from Angola increased steadily from 6.9% of the total in the first decade to 65.1% in the last, accounting for 35.8% for the period as a whole. +

in “Africanisms in Afro-American Languages Varieties” de Salikoko S. Mufwene

A palavra zombie deriva da palavra nzumbi*  do kimbundu e kikongo que tem vários significados relacionados com misticismo, como fantasma e espírito. No seu ensaio de dicionário de Kimbundu-Português (1893), Joaquim Dias Cordeiro da Matta diferencia o nzúmbi do ndéle, sendo o primeiro a alma da pessoa morta que vem em paz e o segundo a alma da pessoa morta que tem como missão atormentar os vivos (curiosamente a palavra kimbundu e kigongo para pessoa de raça branca é mundele). A definição de Cordeiro da Matta do nzumbi pacífico alinha-se com o que canta Carlos Burity no clássico “Nzumbi Dia Papa”, canção que fala da saudade deixada pela partida da alma do pai.

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Fonte: “Ensaio de Diccionario Kimbúndu – Portuguez”, J.D. Cordeiro da Matta

Numa das versões mais populares em Angola o nzumbi (também conhecido como zumbi ou cazumbi) é o espírito ou a alma de um indivíduo morto que se aloja no corpo de uma pessoa viva. Numa versão alternativa o nzumbi é mesmo constituído pela alma e pelo corpo de uma pessoa morta, o que a torna “num morto-vivo” e é esta a versão mais facilmente reconhecida na versão ocidental do zombie. No livro “Recreating Africa” James Sweet reproduz o seguinte relato do padre José Modena explicando o que é um zumbi em 1721.

Zumbi é uma doença que vem naturalmente [mas que] o feiticeiro atribui à artes diabólicas, dizendo que a pessoa doente está a sofrer pela alma de um dos seus familiares já falecido. O doente oferece várias coisas comestíveis ao feiticeiro, que diz que a alma da pessoa morta requisita as tais coisas e porque não lhe foram dadas as tais coisas, a pessoa morta entra no corpo do vivo causando a doença. O feiticeiro é chamado para curar o Zumbi, e dão-lhe banquetes e festas com a comida que ele pede.

in “Recreating Africa – Culture, Kinship, and Religion in the African-Portuguese World, 1441-1770”, James H. Sweet

A narrativa que sustenta a figura agora popular do zombie, ao contrário do que defendem algumas versões, não tem origem no Haiti mas sim na mitologia africana que os haitianos herdaram dos seus antepassados que foram levados de África durante o período do comércio transatlântico de escravos entre os séculos XVI e XIX e tudo indica que no caso particular do zombie a origem é angolana, apesar da ideia da interferência espiritual e física dos mortos na vida dos que deixou na terra ser transversal na generalidade das crenças africanas. Vale notar que na tradição mitológica da Europa Oriental existe a figura do vampiro, que partilha algumas semelhanças com o nzumbi. Contudo é pouco provável que as superstições dos Balcãs e da Europa Oriental sejam a base das crenças sobre mortos-vivos que hoje conhecemos como zombies.

Assim, os morto-vivos que protagonizam vários filmes e séries popularizados pela indústria do entretenimento americana como “Walking Dead”, “Eu Sou A Lenda”, “World War Z” ou o videojogo “Resident Evil” incorporam hoje o imaginário popular por influência directa do misticismo e crenças dos povos de Angola que foram levados para “viagem de não retorno”. A versão hollywoodesca do zombie como morto-vivo com apetite canibalesco não é totalmente fiel às crenças angolanas mas as semelhanças da narrativa, da fonética e da grafia da palavra são inegáveis. Os mbundu e bakongo carregaram o legado dos seus ancestrais como línguas, manifestações culturais e práticas religiosas que hoje constituem a cultura de outros povos.

Carlos Burity – “Nzumbi Dia Papa”

+[Tradução livre] “No período 1711-1800, a proporção das exportações de escravos franceses de Angola aumentou de forma constante de 6,9% do total na primeira década para 65,1% na última, respondendo por 35,8% para o período como um todo”

*Alguns académicos atribuem a origem da palavra zombie à palavra Nzambi que significa Deus, mas é mais provável que a origem seja mesmo nzumbi que ainda hoje em Angola correntemente se usa na versão aportuguesada zumbi.

Namibe, Cecil Rhodes, descolonização e o Barão de Moçâmedes

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Cecil Rhodes é uma das mais visíveis figuras da história recente de África e um dos ícones do imperialismo britânico. O empresário, político e colonialista que nasceu em Inglaterra fundou a empresa mineira De Beers com Charles Rudd e tornou-se no fim do século XIX num dos homens mais ricos do mundo. Rhodes foi primeiro-ministro da Colónia do Cabo e usou o seu dinheiro para perseguir o sonho de expandir a presença britânica pelo mundo começando pelo sul de África onde criou a Rodésia no território que hoje é o Zimbabwe que passou à Rodésia do Sul depois da fundação de outro protectorado britânico a norte com o nome Rodésia do Norte, hoje Zâmbia. Como o nome indica, Rodésia deriva do sobrenome de Cecil John Rhodes (Rhodesia em inglês) mas o fim do colonialismo ditou o fim desta homenagem toponímica, não simplesmente por pueril fervor revolucionário mas sobretudo pelo lado tenebroso da história de Cecil Rhodes.

Cecil Rhodes defendia a superioridade dos europeus (sobretudo dos britânicos) e considerava os africanos bárbaros, no seu consulado como líder executivo da Colónia do Cabo esforçou-se na implementação do Glen Grey Act que forçou a saída de populações africanas das suas terras e procurava forçar os homens xhosa a trabalhar nas propriedades comerciais de europeus na região do Cabo Oriental. A implementação desta política que tem uma base filosófica racista implicava a utilização de métodos violentos e humilhantes cuja aceitabilidade nas elites coloniais da época chocaria qualquer pessoa com bom senso nos dias de hoje. A mudança do mundo obrigou o fim do nome Rodésia e os zimbabweanos resolveram homenagear o Grande Zimbabwe para baptizar o seu país enquanto que os zambianos homenagearam o rio Zambeze (“rio de Deus”).

Em Angola, o fim do domínio colonial português em 1975 ditou a alteração do nome de várias localidades e ruas e até da grafia de algumas localidades passando a reaparecer o K no lugar de C e sendo privilegiado o W em detrimento de U a luz das convenções para as línguas africanas que precederam o aportuguesamento da toponímia e de palavras africanas. A alteração dos nomes era vista como uma forma de marcar a vitória pela a independência e como afirmação da identidade africana dos angolanos independentes há muito oprimida institucionalmente pelo colonialismo, este era também um dos objectivos de movimentos como “Vamos Descobrir Angola” onde participaram figuras como Viriato da Cruz, António Jacinto e Luandino Vieira. Contudo, recentemente o Ministério da Administração do Território (MAT) oficializou o re-aportuguesamento dos nomes das localidades (e alguns rios) angolanos em perfeito contraste com os ideais de outrora.

Com efeito, o MAT pretende “deskapalizar” o nosso mapa e assim Kuando Kubango dá lugar à Cuando Cubango e as províncias separadas pelo rio que deu nome à nossa moeda passam a ser Cuanza Sul e Cuanza Norte (aparentemente a moeda mantém o nome Kwanza). Mas uma das mais espectaculares curiosidades da recente alteração toponímica promovida pelo MAT foi o reaparecimento de Moçâmedes no mapa de Angola, regressando assim a cidade do Namibe ao nome que ostentava no período colonial.

O nome Moçâmedes é uma homenagem ao antigo governador-geral de Angola José de Almeida e Vasconcelos Soveral e Carvalho, o Barão de Moçâmedes (ou Mossâmedes). Quando ordenou a exploração de terras à sul de Benguela em 1785, o Barão despachou o tenente-coronel Luís Cândido Cordeiro Pinheiro Furtado e o sargento-mor Gregório José Mendes e quando chegou à Angra do Negro – o nome pelo qual os portugueses conheciam a zona do porto do Namibe por ser um local de embarcação de escravos – rebaptizou o local como Porto de Moçâmedes em homenagem a José de Almeida e Vasconcelos.

José de Almeida e Vasconcelos que antes de cumprir a missão em Angola foi um capitão-mor de sucesso na capitania de Goiás no Brasil, para onde foi enviado pelo Marquês de Pombal, chegou a Angola em 1784 e tinha entre as suas prioridades retomar o controlo metropolitano do comércio de escravos e das receitas aduaneiras inerentes ao comércio de pessoas que estava a ser dominado por comerciantes baseados no Brasil, ao Barão foi requerida a imposição de barreiras à navios brasileiros em favor dos navios oriundos de Portugal mas cedo percebeu que a sua missão poderia comprometer a dinâmica económica da colónia uma vez que a implementação de medidas limitativas da actividade dos comerciantes brasileiros poderia afectar o volume de trocas e, consequentemente, as receitas aduaneiras da colónia. Assim, o governador-geral tentou uma abordagem mais flexível das instruções que recebeu da metrópole e entre 1780 e 1790 (José de Almeida e Vasconcelos governou entre 1784 e 1790) o tráfico de escravos atingiu níveis recorde na colónia como contou Joseph Calder Miller no livro “Way of Death: Merchant Capitalism and the Angolan Slave Trade, 1730-1830”

Contudo, sob seu comando, foram reorganizadas as feiras no interior destinadas ao comércio de bens e pessoas, foi reformulada  a máquina burocrática da colónia e foram posteriormente impostas restrições à importação de produtos ingleses que os brasileiros usavam nas suas trocas com o intuito de proteger a da produção portuguesa. Terão sido estes os maiores feitos do consulado de José de Almeida e Vasconcelos como governador-geral em Angola.

Assim, retomar o nome de Moçâmedes (que curiosamente nunca abandonou os caminhos-de-ferro) é efectivamente homenagear um servidor diligente do colonialismo. Sendo certo que a tolerância ao comércio de pessoas na época não é comparável com que vivemos hoje e que o Barão de Moçâmedes é amplamente considerado como um servidor público de qualidade pelos serviços prestados para o império português, a causa que serviu jogou em muitos aspectos contra a causa dos povos de Angola.

Cecil Rhodes continua presente na toponímia da África Austral apesar do combate ao seu legado ter-se iniciado nos anos 1950 com protestos de Afrikaners e ainda hoje largas franjas da sociedade sul-africana, com maior expressão para os negros, pedem a eliminação de todas as referências ao seu nome e exigem a retirada das suas estátuas como já o fez a University of Cape Town. O movimento #RhodesMustFall é um dos rostos do que na África do Sul chamam de “descolonização da universidade” que visa retirar traços de práticas negativas do antigo regime que prevalecem no presente. Por outras palavras, a sul de Angola é quase impossível pensar-se numa “recolonização toponímica” como promoveu o MAT, que na minha modesta opinião é desnecessária e vazia de razão.

Com o regresso ao nome colonial, Moçâmedes – salva melhor informação – passa a ser a única capital de província angolana cujo nome homenageia uma pessoa, curiosamente uma pessoa ligada à administração colonial em pleno período de vigência do comércio transatlântico de escravos, a principal actividade comercial e principal fonte de receitas para administração colonial em Angola. A vila costeira no sul de Angola passou a ser conhecida como Moçâmedes (Mossâmedes) unicamente porque o administrador colonial que ostentava o título nobiliárquico de Barão de Moçâmedes, recém chegado à Angola ordenou uma missão exploratória à região e não necessariamente por algum feito especial do Barão de Moçâmedes que na altura em que se realizou a missão estava em solo africano há menos de um ano, depois de uma experiência governativa na Capitania de Goiás, hoje um estado brasileiro que tem um município com o nome Mossâmedes, antes Aldeia São José e rebaptizada pelo Barão com o nome de São José de Mossâmedes, de má memória para os índios ali escravizados no âmbito de uma política de integração da população autóctone na vida económica e social da capitania.

Pelas questões apresentadas acima, fica a ideia que a decisão de passar o nome da cidade do Namibe para Moçâmedes foi baseada em informação frágil uma vez que representa efectivamente uma homenagem à um homem cujas acções, por iniciativa própria ou por inerência das funções que desempenhava, o desqualificam para qualquer tipo de homenagem toponímica na Angola de hoje. Para já, parece ser um caso arrumado mas espero que um dia seja corrigido.

Luanda, 440 anos

No dia 25 de Janeiro de 1576 Paulo Dias de Novais fundou a vila de Luanda com o pomposo nome de São Paulo de Assunção de Loanda. Paulo Dias de Novais fundou a vila que se transformou na actual capital de Angola na sua segunda visita depois de ter regressado à Portugal e solicitado ao rei D. Sebastião a doação de uma capitania nas margens do rio Kwanza, onde se acreditava existirem grandes depósitos de metais preciosos.

Doação a Paulo Dias de Novais

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Fonte: Carlos Alberto Garcia (Revista Militar)

No fim do século XVII a procura por mão de obra escrava continuava a crescer com o aumento da exploração colonial nas Américas e o domínio de Portugal no comércio de escravos colocou Luanda na posição de principal porto africano de embarque de escravos. A vila tornou-se numa povoação portuária cercada de bairros mal estruturados (musseques) e barracões para embarque de escravos e recepção de mercadoria diversa para cobrir necessidades, vícios e para trocar por escravos. O porto de Luanda era tão importante para o funcionamento da economia global do século XVII que os holandeses ocuparam-na em 1641 para garantir o fornecimento de mão-de-obra escrava para as terras que haviam ocupado no norte do Brasil. Luanda era tão relevante no infame comércio que o mundo conhecia o escorbuto como “mal de Loanda” uma vez que muitos escravizados mal alimentados desenvolviam a doença antes ou pouco depois de embarcar em Luanda.

Há séculos que a cidade de Luanda pode ser caracterizada como uma pequena vila urbanizada cercada por bairros desorganizados onde habitam a maioria dos seus habitantes. Segundo o INE 88% das famílias em Angola vive em habitações inadequadas, sendo que nas áreas urbanas este valor é de 79%  (IBEP 2011), segundo o Plano Director Geral Municipal de Luanda (PDGML) “actualmente 49% da área urbana de Luanda é composta por (…) musseques”. Pela realidade exposta, a questão urbana é um dos principais problemas da cidade e o PDMGML promete resolver parte importante destes problemas nos próximos quinze anos, assim como procura arranjar uma solução para preservação e reabilitação do património histórico. O prazo proposto parece-me optimista mas espero ser positivamente surpreendido.

Infelizmente, como em outras partes de Angola, por priorização da resolução de problemas mais urgentes e/ou por falta de sensibilidade o património arquitectónico de Luanda tem sido maltratado, quer por abandono ou por excessos do sector imobiliário como a construção do Shopping Fortaleza que esconde atrás de si a Fortaleza de São Miguel e a demolição do mercado do Kinaxixi. O mercado integra um conjunto de obras de arquitectura moderna erguidas nas décadas de 1950 e 1960 registadas no projecto modernidad ignorada que em breve se poderá tornar em modernidade desaparecida.

Por outro lado, Luanda continua a ter um rico património imaterial. Sendo uma cidade portuária e um grande centro de trocas comerciais e um porto relevante para o embarque de escravizados a cidade cedo se tornou num centro de confluência de culturas diferentes de cá e de acolá. Luanda é uma cidade crioula que mistura com mestria várias culturas que suportam uma cultura urbana que deu ao mundo o semba, a kizomba e o kuduro e uma língua portuguesa enriquecida pelos encontros das diferentes línguas nacionais e até forasteiras (como lingala) em solo kaluanda.

A vibrante cultura urbana de Luanda cresce vagabunda, sem travões, absorve tudo e serve como fusão o que alguns chamariam de confusão, se calhar não há que colocar travões neste movimento frenético, a liberdade pode ser a chave dos frutos da criatividade kaluanda. Mas para os inúmeros problemas de Luanda, serão certamente necessários alguns travões e novas ideias, sobretudo a nível do modelo de governação local que grita por descentralização há anos. Ademais, é preciso renegociar o contrato entre o governante e os governados e iniciar uma nova era que privilegie a eleição dos governantes locais em detrimento do modelo da nomeação.

Os grandes problemas da cidade precisam da contribuição de todos, individual e colectivamente mas é preciso que as pessoas que moldam o sistema de interacção entre pessoas e instituições cedam mais espaço aos governados. Muitas vezes – independentemente do sistema – as soluções apresentadas agudizam ou criam novos problemas. Os mecanismos de correcção do sistema actual são lentos, muito dependentes do governo central que resolveu parte dos problemas de habitação com as novas zonas habitacionais na periferia (Zango, Kilamba, Sequele) mas cujos problemas de mobilidade está há anos por solucionar. Os populares não têm espaço para pressionar os decisores de forma consequente e as soluções são continuamente adiadas como se vê na recolha de resíduos sólidos e recuperação de estradas.

Centralidade do Sequele – Cacuaco, Luanda

Nova Centralidade de Cacuaco

(Fonte: Flickr)

A cidade foi crescendo ao longo dos anos de forma pouco disciplinada, ao ritmo das necessidades e das urgências da maioria dos seus habitantes que foram chegando de todos os lados por diferentes motivos e com as mais variadas aspirações. O PDGML propõe-se disciplinar este crescimento urbano o que potencialmente resolverá outros problemas sociais (segurança, saúde pública, etc.). Luanda vê sistematicamente a população crescer mais rápido que as infra-estruturas, piorando problemas cujas soluções esbarram num modelo político-administrativo anacrónico. Mas está viva a esperança num futuro que Luanda merece, melhor que o passado e certamente melhor que o presente. Para o curto prazo, o meu desejo seria ver o 25 de Janeiro feriado provincial de novo.

O desafio reside na diversificação das exportações

O maior desafio da economia angolana é a diversificação. Mais do que fazer crescer e diversificar o tecido produtivo, Angola precisa de diversificar as suas exportações.  Antes do fim do tráfico de escravos na segunda metade do século XIX, o comércio de pessoas escravizadas dominava as exportações angolanas, onde figuravam igualmente alguns metais e marfim. No século XX o Estado Novo português comprometeu-se com uma nova abordagem colonial apostando primeiro na agricultura e, depois do extremar de posições em 1961 , apostou na indústria transformadora e extractiva com forte participação de investimento externo.

A nova abordagem da política colonial que visava contrapor algumas revindicações que conduziram à guerra de libertação nacional significou o levantamento de barreiras que protegiam a economia da metrópole que permitiram o fomento industrial em Angola. A política do Estado Novo falhou o objectivo desejado pela maioria (autodeterminação política, integração económica e melhor distribuição das oportunidades e da riqueza) mas o aumento do investimento na indústria transformadora, indústria extractiva, sector financeiro e crescimento do consumo suportaram um período de crescimento económico apreciável entre 1961 e 1974.

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Fonte: “A evolução económica de Angola durante o segundo período colonial – uma tentativa de síntese” (de Nuno Valério e Maria Paula Fontoura in ‘Análise Social’)

Durante a década de 1960 as exportações angolanas eram dominadas por produtos agrícolas (café, algodão, sisal) sendo que os investimentos no sector extractivo começaram a alterar a estrutura do PIB e das exportações apenas no final da década. Com efeito, em 1969 os diamantes já valiam 20% da carteira de exportações, o petróleo representava 5% e o café ainda dominava com 35%.

O reinado do petróleo começou a ganhar forma pouco antes da independência nacional sendo que em 1974 já representava 51% das exportações. Em 1979, quatro anos após a independência as exportações de petróleo ocupavam 72% da carteira do que vendíamos para o exterior, quando a guerra civil e o modelo de economia centralizada estavam já a produzir os seus efeitos nocivos na indústria transformadora e na agricultura.  14 anos após à independência, em 1989, as exportações de petróleo já representavam 94% das exportações totais de Angola.

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Desde 1984, as exportações de petróleo têm representado de forma sistemática mais de 90% das exportações de Angola, ou seja, há mais de 3 décadas que diferentes iniciativas e intenções têm fracassado o objectivo de diversificar as nossas fontes de divisas.

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Fonte: ONU, International Trade Statistics, INE

Ao longo da sua história como nação independente, Angola não tem conseguido diversificar a sua economia. O país é praticamente refém de um sector cuja produção e preço são dependentes de factores externos. Nos últimos anos, vários sectores têm vindo a apresentar interessantes taxas de crescimento, como comunicações e serviços financeiros mas a produção de bens continua a ser baixa e as exportações tanto de serviços como de bens feitos em Angola fora do sector petrolífero é quase zero.

Todos os sectores continuam muito colados à saúde do sector petrolífero. Por isso, falar em “economia não-petrolífera” em Angola é um exercício exótico porque a economia continua a ser rebocada pelo ouro negro. Quando o preço do petróleo baixa para níveis indesejados para as nossas aspirações reduz-se o influxo de divisas que implica menos capacidade para gestão da taxa de câmbio por parte do BNA, as importações ficam mais caras, o Estado arrecada menos receitas fiscais e, consequentemente, vê diminuída a sua capacidade de realizar despesa pública incluindo despesa de capital. Com menos dinheiro na economia, os bancos emprestam menos, as empresas vendem e investem menos e reduzem o seu pessoal, com menos emprego e rendimentos nas mãos dos angolanos o consumo privado retrai. A redução do consumo privado é igualmente afectada pela saída em massa de estrangeiros, sectores como imobiliário, hotelaria e restauração são particularmente afectados pelo “êxodo de expatriados” porque a triste estrutura da nossa economia implica que os rendimentos de grande parte dos nacionais não combinam com os níveis de preço dos hotéis e restaurantes.

Angola precisa de maior abertura, atacar os problemas que fragilizam o ambiente de negócios como a burocracia, o proteccionismo, a corrupção, os oligopólios apadrinhados pelo Estado, o sistema de justiça pouco confiável e as debilidades a nível da formação de pessoas. Ademais, é urgente repensar e acelerar a integração regional e criar um espaço mais saudável para o debate de ideias, não só as internas como as externas.

As reformas que precisamos para crescer e diversificar a economia são essencialmente políticas. Temos que abandonar o modelo de partidarização extrema da vida económica e social do país, privilegiar a formação e as políticas que afectam positivamente as famílias e as empresas. É necessário dar mais espaço ao mérito e à criatividade e investir menos energia na mediocridade. Desenvolver um país não é fácil e as várias versões do modelo que temos adoptado desde 1975 têm fracassado, é preciso mudar.