Como a guerra na Ucrânia afecta Angola

Os alertas dos serviços secretos dos Estados Unidos que Vladmir Putin e Sergei Lavrov apressaram-se a chamar de “histeria ocidental” ganharam forma quando em 24 de Fevereiro os russos invadiram a Ucrânia e instalaram o caos no país vizinho e na economia global, cujo impacto foi agudizado pelas sanções impostas à Rússia pelos Estados Unidos, União Europeia e outros países.

Angola não deixará de sentir o impacto da guerra no leste da Europa e neste artigo tentarei destacar os principais efeitos do conflito na nossa economia e sociedade.

Petróleo

O preço do petróleo já estava a apresentar uma trajectória crescente com o aumento da tensão em Janeiro e o início do conflito fez disparar o preço do petróleo bruto com expectativa de redução significativa das exportações de petróleo (e gás) da Rússia. O aumento dos preços são boas notícias para as finanças públicas angolanas uma vez que o OGE considera um preço médio de 59 dólares quando o preço actual (11 de Março) anda a volta dos USD 110.

A ministra das finanças comunicou no entanto que os acordos com credores obrigam o Estado angolano a aumentar o ritmo dos reembolsos sempre que o preço do petróleo ultrapassar os USD 65, num mecanismo que em finanças se costuma chamar de “cash sweep“. Contudo, é expectável que o diferencial do preço orçamentado e do real não seja totalmente consumido com o serviço da dívida externa e é recomendável que parte sirva para liquidação de dívidas à fornecedores locais e para financiamento de diferentes programas de infra-estruturas.

Custo dos alimentos

A Rússia e a Ucrânia são ambos produtores relevantes de cereais, em particular de trigo. As sanções contra Rússia e a exclusão da Ucrânia, por força da guerra, do comércio internacional vão reduzir a oferta deste produto e, consequentemente, conduzir ao aumento do preço dos produtos derivados do trigo, em particular o pão. Sendo o trigo uma matéria-prima transaccionada globalmente, o efeito será sentido no mundo todo e não há muito que se possa fazer para reduzir o impacto da diminuição da oferta. O tombo na oferta de cereais não impacta apenas o pão, produtos como cerveja deverão também experimentar aumento dos preços ou reformulações para redução da incorporação de trigo ou cevada.

O preço dos alimentos poderá ser igualmente influenciado pela redução da oferta de fertilizantes de que a Rússia é igualmente um fornecedor global relevante. Em 2019 o empresário russo Dmitry Mazepin, pai do piloto de Fórmula 1 recentemente forçado a abandonar a Haas na sequência da invasão russa, visitou Angola na qualidade de líder da Uralkali que é um player mundial e que também fornece fertilizantes aos produtores angolanos. Uma redução na fertilização implica menor produtividade e com menos colheita o resultado é o aumento de preços.

Dmitry Mazepin recebido pelo presidente João Lourenço em 2019 em Luanda

Diamantes

As sanções à Rússia limitam grandemente a capacidade de realização de transacções financeiras com entidades residentes na Rússia e com alguns cidadãos ou empresas daquele país. A multinacional Alrosa é um dos maiores produtores de diamantes do mundo e tem participação na Sociedade Mineira do Catoca, asa sanções impostas à empresa pelos Estados Unidos e o boicote crescente à compra de diamante russo podem afectar o negócio da Sociedade Mineira do Catoca a prazo e de outras empresas com participação russa ou relação relevante com a Rússia. Por outro lado, a proibição de importação em mercados relevantes ou boicotes podem diminuir a oferta de diamantes no mercado e inflacionar o preço do produto, efeito que poderá beneficiar as exportações angolanas de diamantes em termos nominais.

Estudantes angolanos

A comunidade de estudantes angolanos na Rússia e na Ucrânia será afectada por razões distintas. Os angolanos na Ucrânia viram a sua vida interrompida e estão impossibilitados de dar o seguimento normal às suas vidas naquele país, tendo já alguns destes estudantes regressado à Angola num voo de repatriamento organizado pelas autoridades diplomáticas nacionais. Por outro lado, os estudantes angolanos residentes na Rússia dependentes de fundos vindos de Angola terão muita dificuldade em ver estas transacções realizadas com a exclusão do sistema financeiro russo do SWIFT e da descontinuação dos serviços de empresas como a VISA e Mastercard na Rússia.

Partindo do pressuposto que grande parte dos formandos regressam ao país após a formação, Angola perde potencialmente um grupo relevante de pessoas formadas em unidades de qualidade, pelo menos no prazo inicialmente antecipado.

Taxa de câmbio

Algumas pessoas têm estado a manifestar excitação com a possibilidade do aumento do preço do petróleo acelerar a tendência de apreciação do kwanza. Contudo, o aumento da receitas públicas pode levar ao aumento do consumo público e da procura por divisas, quer por parte do governo como por parte das empresas e famílias que podem passar a ter maior disponibilidade para consumir bens e serviços do exterior (importações e viagens) como aproveitar o momento para constituir poupanças em moeda forte. Caso se verifique o aumento da procura por moeda externa, a tendência apreciadora do kwanza poderá ser atenuada (ou revertida) e não acelerada.

Banca

As limitações impostas ao sector financeiro russo dificultam a realização de qualquer operação bancária que tenha como parte envolvida um banco russo. Assim, as transferências para aquele país estão extremamente limitadas porque a exclusão destas instituições do SWIFT deixa apenas como alternativa real o sistema chinês CIPS que não goza da mesma profundidade. Por outro lado, opera em Angola o banco VTB África que integra o grupo financeiro russo VTB que foi alvo de sanções e a liderança do banco em Angola aconselhou os clientes a se absterem das transferências segundo noticiou o jornal Expansão.

Comércio com a Rússia

Angola exporta essencialmente petróleo bruto e a Rússia sendo um dos maiores produtores de petróleo do mundo não é cliente relevante de Angola. O nosso país é contudo importador de bens da Rússia, nomeadamente equipamento militar e produtos químicos e estas compras passam a estar comprometidas com a impossibilidade de realizar pagamentos à entidades residentes na Rússia. Contudo, a Rússia não consta entre os 12 maiores fornecedores de Angola, conforme quadro abaixo.

Estatísitcas do Comércio Externo – 4.º Trimestre de 2020, INE – 20221

Longo prazo

Os efeitos no curto e médio prazo da guerra na Ucrânia são mais visíveis, sobretudo a inflação global criada pelo aumento dos custos com energia mas a guerra trará igualmente efeitos no longo prazo que serão sentidos em Angola e o principal está relacionado com as energias renováveis. A dependência europeia do gás russo vai acelerar o processo de transição energética e reduzir a quota dos combustíveis fósseis na oferta de energia global o que reduzirá o preço do “ouro negro” no longo prazo e se Angola não acelerar o processo de diversificação e manter a dependência de exportações de petróleo dentro de 30 anos, o nosso país será mais pobre.

A possibilidade dos principais consumidores de energia acelerarem o processo de adopção em massa de energias alternativas implica não apenas a produção de mais energia de fontes não esgotáveis como a alteração tecnológica que reduzirá a necessidade de produção de petróleo e gás no futuro e poderá obrigar Angola não apenas a diversificar a sua economia como a investir na conversão das suas infra-estruturas nas próximas 4 à 5 décadas e este desafio exige melhor qualidade nos investimentos e na condução da vida económica e social do país.

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COVID, vacinas e falhas morais

Li há uns dias um artigo de Simon Allison no The Continent do Mail & Guardian em que o autor chamava de falha moral o momento actual de escassez de vacinas para imunização da população mundial. O autor levantou basicamente duas questões que concorrem para uma repreensível falta de solidariedade e, eventualmente, racionalidade: (i) as encomendas excessivas de doses de vacinas por parte dos países mas ricos que limitam a possibilidade de acesso a curt prazo por parte de outros países as tão desejadas vacinas num contexto de incapacidade da oferta responder à procura e (ii) irredutibilidade das farmacêuticas e seus parceiros na cedência da propriedade intelectual e levantamento dos direitos conferidos pelas patentes para que mais antidates possam produzir as vacinas com provas dadas.

«Canada, the worst offender, has pre-ordered so many vaccines that it will be able to vaccinate each of its citizens six times over. In the UK and US, it is four vaccines per person; and two each in the EU and Australia.» Simon Allison in The Continent

A pandemia de COVID-19, pelo seu carácter disruptivo, tem vindo a gerar muito pânico que tem efeito nas decisões políticas o que poderá estar na base das encomendas excessivas de alguns países. Por outro lado poderá ser a antecipação da possibilidade da COVID-19 tranformar-se numa espécie de gripe sazonal que obrigue a campanhas de vacinação anuais. Contudo, pese o facto de alguns países terem reagido tarde na corrida a aquisição de vacinas, é difícil defender encomendas que superam múltiplas vezes a população de alguns países quando outros penam por falta de doses.

Por outro lado, existem questionamentos sobre a não liberação da produção da vacina por outras farmacêuticas para atender à crise global causada pela pandemia. Alguns países como a África do Sul e Índia estão a solicitar a isenção do pagamento de direitos às entidades que desenvolveram vacinas para usarem a sua capacidade produtiva para mais rapidamente acabar-se com a situação actual de escassez de vacinas.

Compreendo a posição de alguns líderes políticos que buscam um atalho para mais rapidamente utilizarem soluções já existentes, mas confesso que também compreendo a relutância das empresas que criaram as vacinas em ceder a sua propriedade intelectual sem a possibilidade de maximização dos seus proveitos. Por mais bonito que seja, não podemos esperar viver num mundo em que o investimento em biomedicina não mereça o lucro, os efeitos da gratuitização do medicamente, a longo prazo, limitará o desenvolvimento de medicamentos. A função mais relevante das patentes é criar um sistema de incentivo que garanta o investimento futuro em tecnologia.

A solução do licenciamento mediante o pagamento de direitos parece ser o mais indicado para atacar a maka da escassez, desde que sejam garantidas as condições da produção genérica sem redução da qualidade do produto. A outra maka prende-se com a capacidade destes países de pagarem os direitos que eventualmente sejam cobrados pelas Pfizer, Moderna, AstraZeneca ou Johnson & Johnson. Mas para isso poderá ser montado um fundo global que ajude os produtores de genéricos a cumprir com as exigências dos dos proprietários das patentes e assim fica assegurado o pagamento aos proprietários das vacinas e aumenta a oferta deste produto necessário e, por agora, extremamente escasso.

A defesa desta alternativa poderia ser encabeçada pela OMS ou representantes da iniciativa COVAX, mas sabemos que os maiores financiadores destas organizações são os países desenvolvidos ou instituições como a fundação Bill & Melinda Gates cujo patrono já se mostrou céptico sobre a capacidade deste caminho solucionar a escassez no curto prazo assim como possíveis impactos negativos a longo prazo de um tratamento displicente da propriedade intelectual associada às vacinas. Por outro lado, a administração Biden avançou recentemente que a produção das vacinas vai aumentar significativamente nos próximos dias, começando pela Pfizer sem recurso ao licenciamento ou suspensão de direitos sobre propriedade intelectual.

Por outro lado, existe outra falha moral sem visibilidade aparente com forte impacto em todos os problemas causados pelas escassez de vacinas: a governação inadequada que caracteriza os países menos desenvolvidos. Como defendi aqui várias vezes, a qualidade das instituições define o nível de prosperidade das nações e desta disponibilidade económica deriva a capacidade de investir em ciência e de aquisição dos resultados da ciência que é um “desporto muito caro”.

A incapacidade de muitas nações garantirem hoje o acesso às melhores ferramentas para combater a pandemia de COVID-19, em particular nações africanas, não pode ser dissociada do negligenciamento crónico dos políticos pelas práticas governativas que concorrem para expansão do acesso à educação de qualidade e criação de ambiente propício à criação de riqueza por meio do empreendedorismo meritocrático visível nas nações mais ricas. Não basta apontar o dedo aos países com mais meios pelas sua óbvia falta de solidariedade, é igualmente necessário reconhecer que a melhor opção é garantirmos que os nossos cidadãos conseguem ter bases para desenvolver e participar na criação de soluções tecnológicas para combater a pandemia ou, na pior das hipóteses, assegurar que as nossas nações têm meios próprios para adquirir as vacinas que resultam do investimento de outros.

Governantes que dedicam muito do seu tempo em mecanismos para extorquir os erário público dos seus países enquanto criam condições para que estes crimes se mantenham impunes para as pessoas do seu interesse, não deveriam dar lições de moral à quem governa nações que operam dentro de regras que conduzem à melhoria contínua que acabam por ser evidenciadas em momentos como o que o mundo vive hoje. Assim, não é surpresa nenhuma que as soluções tecnológicas estejam a emergir de grandes economias ocidentais como Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha. Por outro lado, existem nações autocráticas que nunca descuraram da importância da capacidade técnica que mostram-se igualmente capazes de estar na linha da frente do desenvolvimento de soluções técnicas como a China e a Rússia. A tragédia africana é que o comportamento predatório dos seus governantes não deixam espaço para qualquer tipo de avanço social.