Donald Trump e o esoterismo económico pro max

O presidente do Estados Unidos, Donald Trump, repetiu durante a campanha nas eleições que resultaram na sua vitória em Novembro de 2024 que “ama as tarifas”. O presidente Trump tem uma visão muito peculiar sobre o comércio internacional e entende que os impostos a importação (tarifas) são a ferramenta ideal para “equilibrar” o comércio entre nações. Para Trump, o défice na balança comercial entre dois países significa que o país que mais exporta está a explorar quem mais importa o que não só não é verdade como assume a premissa errada que o comércio moderno funciona na base de permuta bilateral.

Para calcular o “nível de barreiras” ao comércio livre que obrigam à aplicação de pesadas tarifas a equipa de Donald Trump recorreu a uma fórmula que não se reconhece em nenhum manual de economia para um tema que é discutido de forma estruturada desde os primórdios da ciência económica no final do século XVIII e início do século XIX, altura em que David Ricardo destacou que comércio baseado na exploração das qualidades de cada parceiro comercial produzia melhores resultados económicos para todos os envolvidos.

Donald Trump entende que a desindustrialização dos Estados Unidos é, na essência, o resultado de políticas desleais dos seus parceiros comerciais (em particular a China) que bloqueiam a entrada de produtos americanos com barreiras alfandegárias e não-alfandegárias que criam vantagens artificiais para as suas indústrias. Ainda que seja inegável que muitos países usaram e usam mecanismos de protecção da indústria doméstica esta realidade não explica a deslocação de grande parte da produção industrial para o Oriente onde foi possível combinar qualidade industrial com custos de mão-de-obra muito mais baratos do que nos países desenvolvidos que, na generalidade, viram a sua economia crescer mais na prestação de serviços e desenvolvimento de tecnologia, inclusive muitas empresas dos Estados Unidos escolheram voluntariamente produzir na Ásia os produtos que desenvolveram no seu país, sendo a Apple o exemplo mais visível.

No seu diagnóstico sobre os resultados da desindustrialização Trump ignora o crescimento do sector dos serviços, o aumento contínuo da produtividade e da prosperidade dos Estados Unidos que nas últimas décadas distanciaram-se dos seus pares do mundo desenvolvido e mantiveram relativamente intacta a posição de maior potência económica mundial. Pelo contrário, Trump partilha a fotografia de um país vítima de aproveitadores e em decadência, aludindo que o mundo a sua volta está a experimentar um crescimento invejável às custas dos americanos e a “prova científica” desta realidade é o défice comercial observado com cada país individualmente e deste princípio surgiu a fórmula que acusa economias muito menores de estarem a explorar os Estados Unidos sem avaliar particularidades de cada país e o tipo de trocas que existem entre estes países e os Estados Unidos.

A imprensa americana destacou o absurdo da situação do Lesotho, um pequeno país encravado na África do Sul que é exportador nato de diamantes e tem um PIB de USD 2,1 mil milhões. Por ser um país relativamente pobre e geograficamente cercado pela África do Sul o Lesotho importa grande parte dos seus produtos da África do Sul  (~80%), por esta razão importam muito pouco do resto do mundo e por exportarem diamantes para os Estados Unidos têm um superavit comercial os Estados Unidos o que na “fórmula trumpista” de cálculo do abuso comercial resultou numa tarifa geral para as importações do Lesotho de 50% que de forma alguma irá contribuir para aumentar as exportações americanas para o Lesotho.

A situação do Lesotho é equiparável a de Angola que tem em termos globais uma balança comercial positiva porque apesar de importar muitos bens de consumo continua a ter o valor das exportações superior ao das importações. Por exemplo, Angola tem um superavit comercial com os Estados Unidos e na leitura de Trump andamos a abusar da benevolência americana e por isso os importadores americanos que comprarem produtos comprados em Angola terão de pagar uma tarifa de 32% o que, presumindo a descontinuidade de programas como AGOA na administração Trump inviabiliza o potencial de exportações agrícolas para os Estados Unidos. Na lógica de Trump, o facto dos americanos comprarem petróleo bruto angolano força os angolanos a comprar mercadorias de igual valor a fornecedores americanos.

New York Times

O “dia de libertação” prometido por Donald Trump revelou-se a confirmação dos piores medos uma vez que na sua tentativa mal informada de reformar o sistema comercial global o presidente dos Estados Unidos criou condições para o encolhimento da economia global e injectou uma dose violenta de pessimismo e incerteza nos mercados organizados.

Para piorar, o nível de incoerência a volta das medidas de Trump e o seu histórico de mudanças bruscas de direcção agudizam os piores sentimentos o que congela decisões de investimento e impacta a confiança dos consumidores que está na contramão da aparentemente inabalável confiança de Trump nas suas decisões, por mais esquisitas e idióticas que possam parecer.

As exportações agrícolas com alguma materialidade, no momento, são sobretudo aspiracionais e no médio prazo poderão de ser um tema se Trump revisitar as suas posições ou se o pr´óximo ciclo eleitoral americano devolver a normalidade a Casa Branca. Contudo, no curto prazo, a expectativa de desaceleração económica global já está a empurrar os preços do petróleo para baixo e o nível de preocupação em Angola segue no sentido inverso.

Proibir importações não resolverá o défice de produção de carne

Mapa do mundo de acordo com tarifas aduaneiras médias (Banco Mundial via Wikipedia)

O mapa acima apresenta um trabalho do Banco Mundial de 2021 com uma gradação de cor que indica o nível médio de direitos aduaneiros cobrados pelos diferentes países e como é possível constatar Angola está no grupo de países com carga fiscal à importação mais elevada do mundo.

Repetidas vezes os governantes e parte do empresariado angolanos, que têm sido consistentemente os proponentes de uma abordagem aduaneira proteccionista, apresentam tais políticas como mecanismo de fomento da produção nacional ou a tábua de salvação dos nossos produtores que estão sob ataque de importadores imbuídos de ganância e desapego pelo interesse nacional.  

Em 2015, escrevi sobre uma decisão governamental para destruição de ovos importados com uma justificação pouco clara para o público em geral e o reforçar de pedidos de protecção aduaneira como política de fomento da avicultura, com foco na produção de ovos e naquela altura, apesar dos problemas a produção nacional de ovos conseguiu consolidar a sua posição na oferta de ovos e hoje sustenta a quase totalidade do consumo nacional com algumas excepções, sobretudo em regiões fronteiriças e/ou remotas. Contudo, persistem os problemas relacionados com insumos e infra-estruturas que encarecem o produto final e retiram competitividade ao ovo nacional e o problema maior é que os elementos que afectam negativamente a nossa capacidade produtiva não têm merecido a necessária atenção.

Ao longo destes 50 anos de independência Angola tem tido quase sempre uma postura proteccionista com muito poucos resultados e a mais recente medida encabeçada pelo Instituto de Serviços de Veterinária (ISV) que deixará de emitir nos próximos meses licenças de importação de diferentes tipos de proteína de origem animal é mais uma manifestação da regra do que uma excepção. A medida é bastante abrangente e tanto visa partes menos nobres da carne bovina ou suína como inclui na lista das proibições as coxas de frango.

Para além de ignorarem a nossa própria experiência, um erro comum destas medidas é a assunção que o produtor é o único elemento importante no mercado e é o único cuja actividade gera emprego. Os empregos gerados pelos distribuidores (quase sempre importadores na nossa realidade) e os custos e benefícios para o consumidor são, por norma, subalternizados apesar dos últimos constituírem sempre a maioria.

A avicultura merece especial atenção porque é a principal fonte de proteína animal em Angola tanto na forma de ovo (quase sempre produzido em Angola) como de carne (quase sempre importada). As estimativas de agentes do sector agro-pecuário angolano indicam que os produtores nacionais respondem apenas por 10% da oferta de carne de frango de um consumo total estimado em cerca de 300 mil toneladas por ano o que implica que a interrupção abrupta da importação de carne de frango irá causar um choque na oferta que irá causar escassez da proteína mais consumida em Angola e, consequentemente, uma subida acentuada nos preços.

Independentemente da nobreza da parte do frango de que estamos a falar, a abrangência da medida, o nível de consumo dos produtos e incapacidade da produção local colmatar a ausência da oferta de origem externa no médio prazo, vai significar não apenas um produto mais caro como a redução na ingestão de proteínas de uma população que já tem estado a ser fustigada pelo aumento do custo de vida, inclusive por via dos preços do frango e do ovo. Com efeito, apesar de Angola consumir essencialmente ovo nacional e existirem operadores com grande capacidade, o nosso consumo per capita anual de ovo anda a volta de 80 ovos que compara com cerca de 240 do Brasil.

O objectivo do Ministério da Agricultura e Florestas (MINAGRIF) que tutela o ISV é nobre e louvável, mas penso que temos provas suficientes na literatura económica e na história de Angola que o caminho escolhido não irá criar uma classe de produtores de carne do dia para noite com foco quase exclusivo na protecção aduaneira de uma classe pequena na esperança do seu rápido crescimento em eficiência, número de produtores e produção total. Ademais, as medidas parecem ignorar os danos colaterais que, na minha opinião, são bastante superiores aos benefícios antecipados.

O desejado crescimento da produção local poderá ser orgânico e de forma acelerada se forem atacadas as principais fragilidades como a oferta limitada de genética (quantidade e qualidade), produção reduzida e cara de insumos para ração (milho, soja, suplementos e outros), custos com vacinas e infra-estruturas de base cuja disponibilidade e baixa qualidade podem encarecer a actividade económica (acesso a àgua, electricidade, estradas, comunicações, etc.).

Efectivamente, em Março de 2022 a responsável pela gestão da Fazenda Pérolas do Kikuxi – Elizabeth Dias dos Santos – partilhou com o jornal Expansão uma avaliação da queda na produção de ovos no país que se estava a acentuar naquela altura e apontou como principais problemas a (i) qualidade da genética e capacidade de substituição atempada dos bandos, (ii) a quantidade e qualidade da ração e (iii) a qualidade da água. Na mesma peça, a produtora de ovos questionava a não priorização da importação de inputs para a indústria avícola e os seus impactos na produção doméstica de ovos. O diagnóstico parece-me bastante assertivo e simples, com dicas de como a intervenção pública poderá apoiar a produção nacional sem grande impacto na disponibilidade da oferta, designadamente promovendo programas de fomento de produtores de pintos, inputs agrícolas e químicos para produção de ração e concertando diferentes organismos públicos no sentido de melhorar as infra-estruturas com impacto positivo nos custos operacionais dos nossos empresários. 

Como é óbvio, um programa nacional para melhorar e manter infra-estruturas é mais desafiante, mas deve ser o foco da intervenção pública e não a insistência na “solução” rápida da protecção aduaneira como política de fomento industrial. Os produtores nacionais continuam a necessitar de quadros melhor formados, infra-estruturas de melhor qualidade e financiamento menos caro e a proibição isolada de importações não resolve nenhum destes problemas e a prazo vamos criar uma classe ineficiente e dependente de favores legislativos e com tendência para se transformarem nos maiores advogados da não formalização da entrada na Zona de Comércio Livre da SADC, limitando o seu próprio potencial para exportação enquanto contribuem para perpetuação da nossa dependência da exportação de petróleo como fonte dominadora de moeda forte que precisamos para importar bens e serviços.

Contrastando o mapa apresentado acima com o mapa seguinte, podemos observar que Angola não integra o grupo de países com o nível de riqueza per capita mais elevada como é comum entre os países com maior carga fiscal aduaneira. Podemos sempre usar a máxima muito apreciada na estatística e econometria que diz que “correlação não é necessariamente casualidade”, mas também não podemos ignorar que os países mais prósperos tendem a caminhar no sentido contrário da protecção aduaneira como medida isolada para o fomento industrial doméstico. O fomento industrial costuma ser mais eficaz com programas de subsidiação bem desenhados e controlados do que imposição de bloqueios aduaneiros, sem considerar possíveis contenciosos a nível da Organização Mundial do Comércio ou medidas de retaliação como tem anunciado o novo presidente dos EUA, Donald Trump, que claramente também é céptico sobre as observações que David Ricardo fez no início do século XVIII e até hoje se mantêm como quase unanimidade entre economistas: o comércio internacional, quanto mais livre for melhor será para todas as partes.