Palancas Negras, do lixo ao luxo em meia dúzia de dias

Cruzei hoje com uma publicação no perfil do Instagram do Xé Agora Aguenta que cita um economista que terá estimado que o PIB angolano poderá experimentar um crescimento extraordinário entre 0,3% e 0,5% em 2024 “com o desempenho positivo da selecção de futebol angolana” porque “a felicidade geral gerará uma sensação de bem-estar que irá proporcionar um maior consumo privado das famílias, das empresas financeiras e não financeiras, e do próprio Estado”. Sem prejuízo das minhas reservas sobre tão auspiciosa estimativa cujos detalhes desconheço, a mim agrada particularmente testemunhar esta onda de apoio aos Palancas Negras pelo desempenho que surpreendeu grande parte dos angolanos cuja relação com a selecção tem sido marcada pela indiferença e pelo escárnio, nos últimos anos.

Para muitos, o ponto de inflexão terá sido o famoso 4-4 contra o Mali registado no primeiro jogo da primeira fase do CAN de 2010 no estádio 11 de Novembro em Luanda. Na verdade é que por mais traumático que tenha sido, o dito jogo não ditou o fim da campanha e sequer impediu que Angola se classificasse em primeiro lugar no grupo, a nossa participação terminou na fase seguinte em jogo contra o Gana que acabou por ser o finalista vencido, precisamente a mesma selecção do Gana que no mesmo ano fez história no mundial da África do Sul. Ainda assim, o tal 4-4 é apresentado por muitos angolanos como razão suficiente para ditar um divórcio com a selecção nacional, a mesma selecção que apenas 4 anos antes (2006) se tinha juntado ao exclusivo grupo de selecções africanas com participação em mundial. Contudo, é verdade que depois do CAN angolano foram realizados mais 6 torneios e Angola falhou 3 destes torneios e nos outros 3 em que participou não passou de fase, incluindo em 2012 quando Manucho foi um dos melhores marcadores.

O alegado trauma dos angolanos com o futebol nacional combinado com a gestão pouco inspirada da federação e com o período prolongado de decréscimo económico, contribuíram para uma redução dos apoios ao futebol nacional (e ao desporto como um todo) e tornou ainda mais difícil obter sucesso e inclusive para FAF reunir as condições necessárias para atrair os atletas de origem angolana que actuam lá fora que representam um potencial reforço para nossa selecção. Os traumatizados do futebol angolano ignoraram inclusive as participações positivas recentes do Primeiro de Agosto e do Petro de Luanda nas principais competições de clubes da CAF e nas redes sociais o futebol angolano não passava de uma fonte para produção de memes, os mesmos que se foram reproduzindo dias antes da estreia de Angola neste CAN da Côte D’Ivoire e felizmente o tom mudou totalmente nos últimos dias.

How it started, how it’s going

Após o empate contra Argélia na estreia a selecção deu seguimento com duas vitórias que elevaram a selecção para o topo do grupo e para o topo das fontes de alegria dos angolanos. O entusiamo continuou em crescendo e teve o ápice com a vitória contra os nossos vizinhos namibianos que revelou para muitos a qualidade do treinador com a ousada substituição de um médio-centro após a expulsão do guarda-redes para manter intacto o trio de ataque. Aquele jogo revelou também o apoio material que a FAF dias antes andou a reclamar e de forma espontânea diferentes instituições e entidades se perfilaram a oferecer apoio pecuniário aos jogadores como forma de incentivo para que a delegação tenha mais uma razão para manter a chama viva.

Por um lado, é bom ver os nossos jogadores com a visibilidade que uma selecção que representa Angola merece e a serem premiados pelo seu bom desempenho. Contudo, não deixa de ser notado um perfume de oportunismo para muito deste apoio que efectivamente tem o potencial para produzir os efeitos esperados dos incentivos e ser o empurrão necessário para selecção alcançar níveis nunca atingidos numa fase final do CAN de seniores. A desorganização da FAF é histórica e com potencial para alimentar o conteúdo de vários livros, desde o incumprimento contratual com treinadores e atletas à incapacidade de colocar no mercado material de merchandising para quem pretende estar devidamente equipado para apoiar a selecção, mas não deixa de ser intrigante que a nossa federação que nos últimos anos aparece constantemente nas notícias a reclamar por apoios para todas as suas tarefas (desde o suporte para as selecções de formação aos meios necessários para as campanhas das competições da CAF e da FIFA) vê hoje um grupo de entidades não patrocinadoras a surfar a onda do sucesso da selecção que a FAF montou com uma série de dificuldades precisamente – diz a FAF – porque poucos se disponibilizaram para associar a sua marca à selecção nacional a troca de exposição para sua marca.

O desporto para ter sucesso precisa que a organização e o meios financeiros andem de mãos dadas e para que isto aconteça é necessário que haja cooperação e confiança mútua num processo que busca um resultado satisfatório para parte desportiva e para os patrocinadores, o que não é comum é termos “patrocínio ex-post” ou prémios de desempenho desconhecidos no ponto de partida como estamos a assistir agora. Ainda que seja plausível que estas manifestações estejam a ser alimentadas por sentimentos positivos, ninguém ficará perplexo se for apontado algum oportunismo como motivação relevante para esta repentina descoberta de amor pelos Palancas Negras que deixaram de ser um meme ambulante para propulsores do crescimento do PIB.

Instagram

O desporto angolano padece de dois males principais: (i) a baixa qualidade da gestão desportiva (com raras excepções) e – de certa forma conectada com a primeira – e (ii) a sistemática falta de patrocínios. Estas makas existem desde o atletismo a canoagem e o talento desportivo dificilmente se desenvolve sem o suporte consistente e comprometido das estruturas que governam desporto, sejam elas públicas ou privadas. Assim, a FAF vai continuar a ter muitos desafios pela frente e seria importante que os apoios de agora sejam convertidos em compromissos de longo prazo com contratos entre as partes com objectivos claros e com avaliação periódica dos resultados. A selecção principal vai ter nos próximos tempos muitos desafios, que inclui a classificação para o CAN 2025 (sim, próximo ano) e para o mundial de 2026 que começou já com dois empates fora contra Cabo Verde e Ilhas Maurícias com alguns problemas organizacionais pelo meio que a FAF diz ser alheia. O meu desejo mais do que o melhor resultado possível para o CAN em curso é mesmo que permaneça o interesse e apoio incondicional (mas não cego) aos nossos representantes porque apenas desta forma é possível obtermos mais resultados satisfatórios do que negativos, porque da mesma forma que é certo que o trabalho organizado e devidamente suportado gera bons resultados, existem sempre momentos menos bons e apesar do divórcio ser um desfecho possível de qualquer relação, o que se quer é que o casamento seja na alegria e na tristeza, no sucesso e no fracasso.

Girabola Zap. Porcelana pode ser o primeiro de muitos a afundar

Há algum tempo escrevi aqui sobre a dependência financeira do desporto angolano em relação ao sector público. Este facto colocava o nosso desporto na linha da frente das potenciais vítimas da crise económica.

O Girabola entretanto conseguiu um patrocinador privado que segundo o Jornal dos Desportos (JD) paga USD 5 milhões por ano à Federação Angolana de Futebol (FAF). O contrato com a Zap deu um sobrenome ao Gira que passou a chamar-se Girabola Zap e é válido por cinco anos. A empresa distribuidora de televisão por subscrição e Internet ficou com o direito de transmissão dos jogos do campeonato num canal fechado e prometeu (e cumpriu) melhorar a qualidade das transmissões.

Segundo o JD a FAF irá abocanhar USD 1 milhão para si e distribuirá USD 4 milhões pelos clubes, sendo que USD 1,5 milhões estão reservados para o campeão e os restantes USD 2,5 milhões servem para pagar os direitos de transmissão televisiva a cada um dos dezasseis clubes que disputam a prova.

zap

Na notícia do JD o autor especulou que os USD 5 milhões representariam a tábua de salvação dos clubes mas não poderia estar mais enganado. No dia 29 de Maio na voz da sua presidente da messa da Assembleia Geral, Joana Lina, o Porcelana Futebol Clube do Kwanza Norte anunciou o abandono do campeonato por não ter condições financeiras para continuar a prova. Admitindo uma distribuição equitativa dos USD 2,5 milhões (que poderá não é o caso) o Porcelana receberia da FAF (via Zap) cerca de 156 mil dólares este ano que seriam provavelmente a maior receita do clube. Segundo Joana Lina, o clube acumula dívidas com colaboradores (três meses sem pagar salários aos jogadores) e com fornecedores, entre eles a própria FAF.

A direcção do Porcelana falou em dívidas mas nãos dimensionou, aliás o nosso desporto não goza de boas relações com a transparência e os orçamentos dos clubes são, regra geral, “segredo de estado”. Aferir a gravidade da situação financeira dos nossos clubes e as suas necessidades é um exercício especulativo. A FAF supostamente exigiu aos clubes a apresentação das suas responsabilidades contratuais mas não é do conhecimento público que esta informação tenha sido disponibilizada.

O que se sabe é que o Girabola Zap é competição nacional melhor distribuída geograficamente com a participação de 8 das 18 províncias e num país com custos de transporte proibitivos a “aventura” de participar no Gira pode sair cara.

Regra geral os custos com salários dominam os orçamentos dos clubes, mas neste deserto de informação que é o nosso desporto é difícil aferir. Contudo, segundo uma reportagem de 2013 (no bom tempo) do jornal Agora o Kabuscorp gastava cerca de 133 mil dólares em prémios por cada vitória, sendo que à cada jogador cabiam 5 mil dólares e ao treinador 7,5 mil dólares. Segundo a mesma reportagem o Recreativo do Libolo gastava 128 mil dólares e o Petro de Luanda cerca de 120 mil dólares em prémios por cada vitória, no Primeiro D’Agosto os prémios variavam entre 75 e 100 mil dólares.

Os prémios hoje provavelmente já não são tão expressivos mas é possível perceber que os valores investidos no nosso campeonato não geram retorno, nem em termos da qualidade dos jogos nem em termos financeiros. Os valores vindos do contrato com a Zap são uma gota no oceano de despesas dos clubes e estes precisam de fazer mais para gerar receitas e num momento em que os potenciais patrocinadores vivem também dificuldades o desafio é ainda maior.

O modelo de patrocínio colectivo, como é o caso da Zap, pode ser o melhor caminho neste período de arrefecimento económico. Os clubes e a FAF (que organiza a prova) deveriam apostar em alargar o leque de patrocinadores do campeonato aumentando assim o bolo a distribuir entre todos, sem prejuízo dos clubes aumentarem os esforços na busca de modelos de financiamento para a sua operação, quer sejam sócios ou patrocinadores.

Desporto em Angola: estado-dependente e pouco atractivo (Girabola e BIC Basket)

Ao contrário de muita gente eu sou daqueles que pensa que os atletas ainda são o melhor do desporto angolano, é verdade que a selecção nacional de futebol põe esta minha convicção em causa muitas vezes, mas para mim o problema maior do nosso desporto reside na gestão deficiente das instituições desportivas em Angola, quer as instituições reitoras quer os clubes. Uma das falhas visíveis das nossas federações e dos nossos clubes é a sua incapacidade de atrair patrocinadores privados para financiar as suas actividades e projectos o que torna o nosso desporto dependente do sector público, quer seja a administração pública via ministérios ou as empresas de domínio público.

A situação já foi pior, nas principais competições nacionais – o Girabola e o agora BIC Basket – já é possível vislumbrar muitos logótipos de entidades privadas mas há mais por fazer porque o potencial está longe de ser esgotado. Melhor organização, pessoal melhor formado e maior espírito de sustentabilidade podem gerar resultados no curto prazo.

No mundo moderno, os patrocinadores procuram ser sobretudo parceiros, buscam ser parte de uma associação benéfica para ambas as partes, nesta relação o clube recebe os fundos que serão utilizados na sua actividade corrente ou investimentos e o patrocinador ganha exposição para sua marca e aí reside o maior problema; não conseguimos transformar os nossos eventos desportivos em produtos suficientemente apelativos e não temos uma organização de eventos que prime pelo conforto e segurança dos adeptos e que valorize o papel da comunicação social, em particular da televisão. Com melhor espectáculo, melhores arbitragens, melhores recintos e maior segurança o produto melhora e a cobertura mediática melhora em seguida. Um bom produto nos jornais, rádios e, sobretudo, televisão torna-se rapidamente num íman para os anunciantes. Todos estes passos podem ser dados com melhor gestão, visão e capacidade de realização.

Na era da Internet é inexplicável a pouca visibilidade virtual dos clubes e das federações. O BIC Basket, por exemplo, não tem um website e o website da FAB não é actualizado desde 2012.

FUTEBOL

É inadmissível que a FAF retire a selecção nacional de uma competição regional por falta de fundos “por causa da crise económica”. Se quisermos fazer uma comparação, seria o mesmo que a Federação Portuguesa de Futebol desistisse de uma competição por causa da crise económica em Portugal. Uma federação não pode estar tão dependente do dinheiro público, é preciso criar formas alternativas para obtenção/geração de mais fundos assim como gerir melhor os recursos disponíveis. Uma selecção mundialista que não tem uma loja e cujos produtos oficiais não são visíveis em lado nenhum? Uma entidade com patrocinadores que não realiza eventos para os mesmos? Em 2015 temos que fazer mais.

O ideal para o Girabola seria provavelmente as partes interessadas juntarem-se em torno de um objectivo comum e criar uma liga moderna como fizeram os clubes ingleses no início da década de 1990 quando criaram a Premier League, mas se olhassem para sul e tentassem aprender com a experiência sul-africana já seria óptimo. Hoje existem empresas em Angola com alguma dimensão que estariam disponíveis para aumentar a sua exposição ao desporto se este fosse um produto melhor, uma liga moderna hoje tem que ter uma bola oficial, um naming sponsor, uma água oficial, um banco oficial, uma cerveja oficial e o nosso Girabola não tem nada disto.

É preciso entender o fenómeno de crescente desinteresse dos jovens pelos nossos clubes. O clubismo tem muito de bairrismo e algo vai mal quando um puto do Mártires de Kifangondo diz que o seu clube é o Real Madrid e que não tem clube em Angola. Uma terra com tantos jovens deveria ser um paraíso para os clubes se estes soubessem aproveitar o potencial do que têm a mão. Por mais paixão que os dirigentes tenham pelo desporto é preciso juntar uma dose de racionalidade e ver o desporto como um negócio. Não é concebível contratarmos o melhor futebolista do mundo se não temos uma loja e para quê pagar salários tão altos para um espectáculo tão baixo?

BASQUETEBOL

Angola nunca teve um jogador a participar em jogos oficiais da NBA ao contrário de muitos países africanos mas poucos são os países africanos que se podem gabar de ter tantos jogadores que saíram das suas ligas domésticas para testar na NBA, rapidamente lembro-me de Gerson Monteiro, Olímpio Cipriano, Vítor Muzadi e Carlos Morais. Apesar das limitações, existe qualidade no nosso basquetebol que está patente no domínio exercido sobre o continente mas o potencial não está a ser totalmente aproveitado, a nível desportivo e comercial. Contudo, comparando ao futebol, o basquetebol está uns passos a frente como, por exemplo, o campeonato sénior masculino já vai no segundo naming sponsor (o Banco BIC depois do BAI) mas pode-se fazer mais.

Uma das falhas do BIC Basket é a sua pouca expressão fora de Luanda. No campeonato actual participam apenas Luanda (8 equipas), Kwanza Sul (1 equipa) e Benguela (1 equipa) sendo que o campeão nacional – Recreativo do Libolo – tem sede no Kwanza Sul mas disputa os jogos em “casa” no Kikuxi. É preciso alargar a geografia do campeonato aproveitando as infraestruturas existentes em Cabinda, Huíla, Malange, Namibe, Benguela, Huambo e no Kwanza Sul (porque não o Libolo fazer jogos no pavilhão recentemente renovado no Sumbe? Não é Calulo mas pelo menos é na mesma província). É necessário arranjar uma estratégia que envolva empresários locais para que o basquetebol cresça fora de Luanda, no imediato seria importante recuperar as províncias de Cabinda e da Huíla para o BIC Basket sem perder de olho as outras localidades para o médio prazo.

É igualmente necessário melhorar a organização dos jogos e tornar este desporto com muitas paragens num produto de entretenimento (o show do Toy Limpa Chão não chega). A realidade económica de Espanha é diferente da nossa mas se olharmos para a evolução da Liga ACB em termos desportivos e de entretenimento vemos que é possível fazer mais pelo produto.

Assim como no futebol é necessário associar mais marcas e produtos oficiais ao campeonato nacional (bola, bebidas, carro, banco, etc.) e estes patrocinadores têm que ver o retorno desta relação.

Os clubes também têm que fazer mais. Eu vou muitas vezes assistir jogos de basquetebol e quase não vejo produtos oficiais a serem vendidos. As poucas lojas que existem estão no centro da cidade e nas novas zonas de desenvolvimento urbano os adeptos são alimentados exclusivamente por produtos falsos e os clubes não vendem para outras lojas – nunca vi nada no Belas Shopping ou supermercados – uma situação caricata é ver tantas camisolas do Carlos Morais dos Toronto Raptors e não ver nenhuma do Petro, do Libolo ou da selecção nacional. Outro exemplo é a secção no Kero com produtos oficiais do Sport Lisboa e Benfica, com direito a cachecol com os dizeres “ser benfiquista cuia” mas não se vê lá nada dos clubes nacionais.

O merchandising pode ser aproveitado para os atletas de hoje e para os de ontem. Com efeito, se existir a venda uma camisola da selecção angolana de basquetebol com #15 e com o nome “Conceição” eu compraria sem pestanejar.

Para não alongar mais este post gigante, deixo para outra oportunidade a listagem das várias formas de fontes de receitas para clubes e federações.