A economia angolana 50 anos depois | A nostalgia e a busca pelo passado glorioso [Parte 3]

Luanda, Angola

O ser humano tipicamente carrega consigo memórias traumáticas e excepcionalmente positivas. No caso da economia, as memórias de momentos de crescimento económico costumam deixar marcas profundas. Ainda hoje, é comum encontrarmos em Angola gente a falar de forma nostálgica sobre a diversidade e pujança da economia colonial que é na verdade uma realidade que começou a tomar forma apenas após a segunda guerra mundial, sobretudo a parte da diversidade.

O mesmo sentimento nostálgico é visível na forma que a maior parte das pessoas fala sobre a década de 2000 e início da década de 2010 com o alcance da paz, o crescimento económico vertiginoso e o famoso “câmbio de 10”, a taxa de câmbio artificial que o momento financeiro permitia e convidava os angolanos a consumir desalmadamente e como sabemos, consumir kuya.

O início do século XXI (2000-2015) está relativamente próximo para os dias de hoje assim como a década de 1960 é uma lembrança próxima para quem em 1975 assistiu a um corte abrupto com o passado e na década de 1980, para além da guerra civil, começou-se a assistir à degradação do tecido produtivo em Angola e a não realização de expectativas sobre ganhos sociais materiais e generalizados.

Contudo, muitos anos precedentes destes dois períodos “gloriosos” (1955-1970 e 2000-2015) foram marcados por grandes planos com resultados pouco satisfatórios ou agridoces. Por exemplo, o ímpeto desenvolvimentista de Norton de Matos nos anos 1920 foi suportado por crédito que tornou a Província de Angola mais vulnerável e acabou por dar lugar a anos de anemia económica no período entre guerras, apesar do legado das infra-estruturas ter contribuindo para o período de crescimento retomado na década de 1950.

De igual modo, os anos de forte crescimento económico após a paz de 2002 ajudaram os angolanos a esquecer do período difícil que teve início com o fim do colonialismo com anos de destruição da economia, sobretudo, pela combinação da economia planificada com a guerra civil que impôs extremas limitações a movimentação de pessoas e bens e inutilizou parte importante das infra-estruturas existentes.

Entre 1975 e 2002 a economia angolana assistiu ao declínio do seu tecido industrial que progressivamente viu desaparecer a agro-indústria, as fábricas têxteis, a transformação mais complexa de madeira, produção de pneus, a montagem de motorizadas e bicicletas, etc. Praticamente toda indústria transformadora desapareceu e ficaram com capacidade limitada algumas excepções como a produção de cimento e bebidas, sobretudo a cerveja.

A indústria extractiva manteve alguma pujança, sobretudo o petróleo, mas também os diamantes que suportaram a economia da guerra com complemento de comerciantes que asseguravam o fornecimento de bens de primeira necessidade importados para consumo nos principais centros com acesso pelo mar e com desafiante distribuição para o interior. O desaparecimento da capacidade produtiva (agrícola e industrial) construída nas últimas décadas do colonialismo criou a oportunidade para comerciantes estrangeiros que se instalaram em Angola e desenvolveram a máquina importadora que continua a ocupar um lugar de relevo na nossa economia apesar da recuperação progressiva da produção agrícola e industrial dos últimos anos, parte desta suportada por empresários que no passado se dedicavam exclusivamente a importação de bens para consumo final.

Malanje, Angola

Com a transição para uma economia mais aberta iniciada em parte em 1988 com os acordos de Nova Iorque, a importação de bens de primeira necessidade passou a estar cada vez mais dependente de empresários (normalmente associados a classe política baseada em Luanda) que eram primeiramente portugueses e libaneses tendo emergido mais tarde os indianos, eritreus, oeste-africanos e, ainda mais recentemente, os chineses. A classe empresarial nascida da necessidade de importar tudo para colmatar a inexistência de produção doméstica conta hoje com alguns dos principais actores de investimentos na agricultura e indústria, dando corpo ao sonho de regresso ao “passado industrial glorioso” que muitas das vezes é identificável nos discursos políticos e de empresários com memória do período pré-independência.

A busca pelo passado glorioso, mais ou menos explicitamente, tem sido o cavalo de batalha tanto do sector público como o do privado e, muitas das vezes, o passado que se busca são os longínquos anos 1960 que até hoje continuam a ser vistos como o pico da diversidade económica apesar do regime político impor extremas restrições ao progresso da maioria para benefício desigual da minoria.

Luanda, Angola

Como é comum na classe política dirigente em Angola, que desde 1975 tem sido o MPLA quase de forma exclusiva, os planos são caracterizados por extremo optimismo, execução deficiente e inexplicável desprezo pelo poder da formação consequente. Entre erros e alguns acertos, a economia nacional vai tentando libertar-se da dependência do petróleo virando-se para produção agro-pecuária e indústria mais voltada para substituição de importações e sem grande complexidade e muito pouca inovação, o que na verdade seria um caminho surpreendente se considerarmos que sistematicamente o país tem estado a investir muito abaixo do necessário na formação dos seus quadros.

Em 1975 os angolanos receberam um país com número reduzido de quadros, mas com um conjunto de infra-estruturas bastante decente para construção de um caminho de prosperidade económica caso tivesse sido evitada a guerra fratricida e a escolha de orientação política e económica tivesse sido diferente, designadamente mais inclusiva e menos centralizadora.

Porto Amboim (Kwanza-Sul), Angola

O principal empecilho ao progresso económico e social abrangente em Angola continua a ser mais um tema político do que económico. Contudo, há sinais de termos uma classe política mais aberta aos contributos dos “civis” mas continua a ser necessário criar mais espaço para os empreendedores operarem e impõem-se a retracção do Estado na direcção da economia enquanto se assume um papel de principal facilitador para realização da actividade económica privada. O futuro glorioso continua a ser uma possibilidade mas sem grandes mudanças na forma que estamos a construir a nação será impossível.

A economia angolana 50 anos depois | O que era pouco antes da independência [Parte 1]

Largo da Mutamba na década de 1960, Luanda

Os primeiros contactos entre portugueses e povos que séculos depois passaram a ser colectivamente conhecidos como angolanos, começaram em 1482 quando uma expedição comandada por Diogo Cão chegou a foz do rio Zaire no Soyo. A relação evoluiu ao longo dos anos tendo sido dominada nas primeiras décadas pela diplomacia entre os reinos de Portugal e do Congo, sendo que este acabou por ser absorvido pelo que se tornou na Colónia de Angola, período em que a relação entre os reinos já tinha passado a ser caracterizada pelo domínio indirecto e exploração. A colónia começou a sua longa consolidação em Janeiro de 1576 com a fundação de Luanda por Paulo Dias de Novais. Quase 400 anos depois, do dia 11 de Novembro de 1975 três movimentos que combateram com armas o colonialismo português declararam separadamente a independência de Angola.

Em Novembro de 2025 serão celebrados 50 anos de independência de Angola e com este artigo (primeiro de três), em jeito de reflexão, buscarei avaliar a evolução da economia de Angola nos últimos 75 anos, começando por apresentar uma fotografia do que era esta circunscrição 15 anos antes da independência e o que é o estado da economia angolana em 2025.

No final da década de 1940 e início da década de 1950 vários movimentos culturais e sociais começaram a politizar as suas intervenções públicas no que era na altura a colónia de Angola, advogando pela revisão das relações entre africanos e pessoas de origem europeia que persistentemente não evoluíam para um plano de igualdade de tratamento e oportunidade. A ausência de respostas das autoridades sedeadas em Luanda e Lisboa alimentaram o extremar das posições que culminou com o início da luta armada do período pós segunda guerra mundial.

O sector agrário, que na primeira metade do século XX experimentou um forte crescimento com sisal, algodão, café e outros produtos de exportação era igualmente palco para contínuos abusos contra trabalhadores rurais africanos e revelou-se num espaço fértil para reivindicações contra o poder colonial, sendo que o ano de 1961 acabou por ser o mais consequente com eventos que cumulativamente despoletaram a guerra pela independência de Angola, referida na historiografia portuguesa como “guerra colonial”. 

Em Janeiro de 1961 as reivindicações na Baixa de Cassange acabaram em massacre de milhares de produtores agrícolas que protestaram contra os preços baixos impostos pelo comprador único de algodão (COTONANG), mas no quarto dia do mês seguinte Luanda testemunhou uma revolta que buscava a libertação de presos políticos, em particular os condenados no “Processo dos 50”. Após dois meses com eventos explosivos em Malanje e Luanda as autoridades portuguesas foram surpreendidas por ataques violentos às fazendas no norte de Angola que tiveram início a 15 de Março e António de Oliveira Salazar ordenou uma resposta extrema e rápida com a frase “para Angola, rapidamente e em força”. 

Paralelamente a resposta militar aos pedidos de reforma e justiça das populações africanas, o governo metropolitano em Lisboa deu início a uma era de maior abertura ao investimento estrangeiro em indústrias-chave, incluindo a exploração e refinação de petróleo, e expandiu a produção agrícola e transformação de alimentos primários. O crescimento económico foi o resultado imediato e na década de 1960 Angola vivia em guerra mas experimentava igualmente a aceleração do desenvolvimento económico que seguia o mesmo padrão dos quatro séculos antecedentes: aumento da riqueza e melhoria da condição social da classe minoritária (europeus e brancos euro-descendentes) às expensas da maioria (africanos) que embora tenham registado melhorias sociais, continuavam em grande medida a ser tratados como cidadãos de segunda classe na sua própria terra, uma dinâmica que de forma alguma reduzia a aspiração de viver numa Angola independente do poder colonial e mais inclusiva.

Com efeito, a década de 1960 (como escrevi aqui em 2015) foi aquela em que a então colónia de Angola registou o maior crescimento no longo e transformador século XX com destaque para o crescimento exponencial da indústria extractiva que por ser intensiva em capital esteve refém da incapacidade financeira de Portugal e dos princípios do Acto Colonial de 1930 que priorizavam a produção de matérias-primas para alimentar as indústrias da metrópole e limitavam a importação de manufacturas e o investimento de países terceiros.

Fonte: “Pacto colonial e industrialização de Angola (anos 60-70)” de Adelino Torres

A economia herdada pelos movimentos independentistas, em particular o MPLA, que a meio da década de 1970 assumiu os destinos de Angola como país independente, começou a ser construída em 1960 e combinava um consolidado sector agrícola, indústria transformadora em expansão contínua e afirmação da indústria extractiva. Com os primeiros sinais na década de 1950, o país também experimentou na década de 1960 um boom imobiliário nas principais cidades como Luanda, Huambo (Nova Lisboa), Benguela e Lubango (Sá da Bandeira) que ajudou a sustentar o crescimento da banca e também de indústrias associadas a construção civil que beneficiou igualmente da expansão da rede de infra-estruturas.

O petróleo começou a assumir algum protagonismo no final da década de 1960, mas Angola conservava ainda um tecido produtivo diversificado com vários sectores em consolidação ou com produção em expansão como era o caso da agricultura, pescas, produção de bebidas e alimentos, tabaco, exploração florestal, papel e derivados, cimento, produtos químicos e o nascer de indústrias anteriormente bloqueadas para benefício da produção de Portugal como têxteis e calçados.

Fonte: “A evolução económica de Angola durante o segundo período colonial” de Nuno Valério e Maria Paula Fontoura

O fomento industrial em Angola da segunda metade do século XX resultou da necessidade de resposta a diferentes fenómenos, como o fim do condicionamento industrial na colónia que foi desenhado para proteger as indústrias da metrópole, mas acabou por ter um efeito nefasto na balança de pagamentos da colónia que levou à adopção de uma política de industrialização para substituição das importações. Com o eclodir da guerra a necessidade de aceleração do desenvolvimento e criação de emprego na colónia como contrabalanço das revindicações da maioria colocou o fomento industrial no centro da política colonial. Contudo, com a abordagem de substituição de importações, a indústria transformadora local servira essencialmente as necessidades internas uma vez que os bens primários continuaram a dominar as exportações, com crescimento exponencial do petróleo que em 1969 representava apenas 5% das exportações e na véspera da independência em 1974 já era responsável por 51% das exportações.

Fonte: “Pacto colonial e industrialização de Angola (anos 60-70)” de Adelino Torres

A característica de exportações dominadas por matérias-primas e quase sem qualquer produto transformado em Angola prevalece ainda hoje, com a agravante de ser quase tudo petróleo bruto como já acontecia 10 anos após a independência com mais 90% das exportações que resulta da combinação do aumento da produção de petróleo com a destruição quase absoluta da capacidade de produção agrícola orientada para a exportação como é o caso do café e do algodão. A produção agro-pecuária, pelas suas características é particularmente difícil de ser executada com sucesso em tempos de instabilidade e a combinação de centralismo político e guerra civil que se seguiram após a independência ditaram o declínio da generalidade da indústria transformadora angolana, com a excepção da produção de cerveja que manteve considerável resiliência ao longo de todo período pós-independência incluindo os anos de guerra.

Em resumo, Entre 1950 e 1960 a economia da Angola colonial experimentou alguma expansão com o aumento de exportações agrícolas e viu – na primeira parte da década de 1960 – o ritmo do crescimento acelerar com a adoptação de algumas políticas económicas mais liberais no seguimento do agudizar da luta contra o colonialismo e em 1973, apesar do crescimento da representatividade do petróleo nas exportações, a colónia tinha uma economia diversificada com indústria ligeira e pesada em consolidação e com maior robustez do sector financeiro e de seguros.  Apesar dos 14 anos de guerra, do ponto de vista económico, os guerrilheiros que deixaram Angola na primeira metade da década de 1960 encontraram em 1974 uma Angola melhor estruturada para construir prosperidade no pós-independência, mas como sabemos as infra-estruturas são apenas uma parte da equação que demanda muitas outras variáveis para que se alcance o resultado desejado e por melhor que seja o hardware o bom desempenho é função da qualidade do software que potencia a estrutura física. 

Portugal deve compensar as ex-colónias pela ocupação e escravatura?

Segundo foi reportado, o presidente de Portugal – Marcelo Rebelo de Sousa – num encontro com representantes da imprensa estrangeira em Portugal sugeriu que o seu país deveria pagar reparações às antigas colónias pela ocupação e pela escravatura. Desconheço a profundidade em que abordou o tema, mas segundo uma peça da Reuters o presidente Rebelo de Sousa sugeriu que a implementação da sua sugestão poderia passar pelo perdão da dívida de antigas colónias ou mesmo a concessão de financiamentos.

A compensação ou reparação associada a escravatura é um tema muito discutido em alguns países da Europa com passado colonial e sempre circundados de polémica e reconhecendo a diversidade da história de exploração dos países africanos, sempre achei a intenção de difícil execução tão simplesmente porque o prazo para uma execução satisfatória está vencido há mais de 100 anos no caso da escravatura e algumas décadas no caso da ocupação colonial pós Conferência de Berlim.

Ainda vamos a tempo?

Quando a escravatura foi abolida no Brasil, em 1888 a discussão a volta das indemnizações tinha como sujeito os detentores de escravos para quem foram previstas medidas compensatórias que passavam por indemnizações ou a extensão do período de usufruto da mão-de-obra escrava dos filhos de “ventres livres”. O que não aconteceu naquele momento foi a compensação dos escravos libertos ou dos descendentes de escravos e aquele era o momento mais fácil para executar (pelo menos localmente) qualquer reparação directa às vítimas vivas da escravatura.

E os outros envolvidos no comércio de escravos?

As sociedades escravocratas africanas do período do comércio transatlântico eram complexas com envolvimento de vários actores na comercialização desumana de pessoas, incluindo soberanos e comerciantes africanos e esta realidade cria espaço para que se questione quem deverá compensar quem, ainda que seja óbvio que em sociedades ocupadas a responsabilidade pelas decisões governativas recaem sobre maioritariamente sobre a força ocupante.

Que camisola vestirá o Brasil?

Admitindo um possível programa de reparação liderado por Portugal é igualmente legítimo ser discutido se o Brasil deverá ser colocado no lugar de vítima a compensar ou se será um compensador com Portugal, porque o Brasil pós independência se manteve como principal sociedade escravocrata da época e tinha em Angola a sua principal fonte de mão-de-obra escrava e, por esta razão, o território que é hoje Angola foi o que mais gente viu partir para as Américas entre os seus pares africanos e o Brasil foi de longe o maior destino de escravos nas Américas.

E os museus, é tudo a mesma coisa?

Um tema comum na questão das reparações é o espólio dos museus, em particular na Europa, que foram muitas das vezes construídos com a subtração forçada e violenta de artefactos de povos ocupados. Neste campo, o mais avisado é procurar investigar a forma de obtenção dos referidos artigos uma vez que a história colonial dos países (como colono ou colonizado) é diversa e a aplicação uniforme de regras para recuperação ou reparação pode atropelar a história. Por exemplo, existem registos de várias trocas voluntárias entre povos de diferentes nações do que é hoje Angola com portugueses que envolviam artefactos de marfim ou outras peças representativas da arte e riquezas africanas, mas é igualmente conhecida a história do saque violento dos bronzes do Benim por parte de uma “expedição punitiva” britânica naquele território que é hoje parte da Nigéria, boa parte do espólio continua em exibição ou guardado no British Museum em Londres e é fácil defender e até executar o retorno das peças.

E o passado próximo?

Em resumo, montar um modelo de reparação para as vítimas da escravatura no universo da CPLP (ou noutros) é complexo. Contudo, ocorreram alguns eventos bem mais próximos do presente cujo caso para instituição de reparações poderá ser de mais fácil materialização, em particular, acções militares do Estado Novo português na guerra pelas independências que resultaram em massacres e assassinatos cujas vítimas e seus descendentes são muito mais fáceis de identificar.

A sul de Angola, por exemplo, após anos de discussão a Alemanha aceitou em 2021 avançar com reparações ao povo namibiano após reconhecer ter cometido um genocício contra os Hereros e Nama entre 1904 e 1908, uma história magistralmente contada por David Olusoga no livro “Kaiser’s Holocaust: Germany’s Forgotten Genocide and the Colonial Roots of Nazism”.

Será que as reparações terão o impacto desejado?

A maior parte dos países que formam os PALOP vive com grandes insuficiências a nível institucional que resultam em problemas sócio-económicos que não só não serão resolvidos com qualquer acto de reparação de iniciativa portuguesa como podem limitar o impacto de qualquer compensação pecuniária e este é um facto que não pode ser ignorado.

Independentemente de tudo, vale sempre a discussão

No meio da polémica que o tema levantou em Portugal, mais uma vez foi dado algum espaço na comunicação social portuguesa para uma discussão mais aberta sobre o passado colonial português que está longe de ser tão rosado como uma franja da sociedade portuguesa defende, apesar de a mim não ser um choque que continue a ser fonte de orgulho e inspiração para Portugal como defendi no artigo “Portugal e a celebração no presente de um passado complexo” publicado neste blogue.

Portugal e a celebração no presente de um passado complexo

Portugal é um dos países mais antigos da Europa, o continente que se convencionou chamar de “velho mundo” em contraste com o “novo mundo” que é precisamente uma perspectiva Europeia e está intrinsecamente ligada a história de Portugal e a parte desta história mais celebrada pelos portugueses.

Em Portugal, 10 de Junho é o “Dia de Portugal e das comunidades portuguesas” e neste dia para além de se celebrar os portugueses espalhados pelo mundo, é um dia para dar glórias aos protagonistas da história de Portugal, em particular os destacados no Padrão dos Descobrimentos em Lisboa.

Padrão dos Descobrimentos, Lisboa – Portugal (foto de Rui Sérgio Afonso) 

Os navegadores que no século XV iniciaram a empreitada de viagens de exploração para “novos mundos” em nome do Reino de Portugal alteraram a história daquele pequeno território e do mundo. Os sonhos iniciados no sul de Portugal acabaram por ser a génese da colonização brutal de outras regiões do mundo, em particular as Américas e África, sendo que o continente berço serviu de fonte primária de mão-de-obra escravizada para materialização do projecto colonial europeu. O facto da colonização ser indissociável da violência é que suporta nos dias de hoje vários movimentos que defendem a não celebração dos navegadores portugueses e de qualquer resultado do longo processo de colonização europeia.

Na minha perspectiva, a história serve basicamente para os homens entenderem o seu passado, como este pode explicar o presente e impactar o futuro e por esta razão deve ser contada por historiadores sem compromissos com agendas paralelas. Por outro lado, defendo que a história não deve ser usada como um palco para resolução de contendas do presente. Contudo, compreendo que a história pode ser a base para correcção de erros ou compensação de injustiças desde que a “emenda” seja realizável e com benefícios superiores aos custos globais para a sociedade.

Infelizmente, a história é frequentemente usada para encaixar diferentes narrativas de agendas do presente o que tem sido problemático em várias ocasiões, desde versões monodimensionais que mais se assemelham a fábulas de heróis e vilões à simplificações de realidades complexas sem qualquer contextualização que acabam por levar as pessoas a julgar o passado com olhos do presente.

O movimento dos descobrimentos, na terminologia da historiografia tradicional portuguesa, tem uma inegável base empreendedora suportada por liderança ambiciosa, habilidade negocial, coragem, tecnologia e orientação científica. Quando o Infante Dom Henrique se propôs a liderar um movimento de navegadores para revelar aos portugueses mundos que desconheciam, tinha presente que seria necessário envolver os melhores homens (incluindo a Ordem de Cristo) e a melhor tecnologia de construção naval disponível e a consistência das viagens acabou por fazer avançar ainda mais a tecnologia, desde meios e mecanismos de navegação à cartografia e astronomia, tudo isto é fonte de inegável orgulho para o povo que os exploradores representavam e cuja epopeia Camões magistralmente relatou nos “Lusíadas”, obra maior da poesia portuguesa, inspirada em factos mas naturalmente carregada de ficção.

A ficção glorificadora costuma ser uma das fontes do problema com a celebração da história dos navegadores e da colonização portuguesa porque muitas das vezes carece de contextualização e acaba por chocar sensibilidades numa sociedade moderna mais diversa. Neste campo, o destaque particular vai para o papel-chave de Portugal no desenvolvimento do comércio transatlântico de escravos. Como é conhecimento geral, os portugueses não inventaram a exploração escrava, que era um elemento presente na generalidade das sociedades da época, com diferentes graus de violência e distintos processos de escravização. No entanto, o comércio transatlântico na base da exploração industrial moderna da mão-de-obra escrava foi desenvolvido primariamente por Portugal que entre o final do século XV e meados do século XVII foi praticamente a única potência marítima europeia a transportar sistematicamente pessoas escravizadas de África para o sul da Europa e, sobretudo, para as Américas em embarcações de grande porte, o que se poderia considerar uma evolução do tráfico transariano liderado por comerciantes da península arábica que devastou as populações a norte da África Central.

A importância de Portugal no infame comércio era de tal modo central que os holandeses quando ocuparam partes do norte do Brasil para exploração agrícola em grande escala, complementaram a conquista do “modelo português” com a ocupação de feitorias portuguesas na costa do actual território angolano, com destaque para Benguela e – sobretudo – Luanda que já era na altura o maior porto de embarque de escravos para as Américas. As outras potências europeias entraram activamente no comércio de escravos nas rotas transatlânticas com mais de 100 anos de atraso em relação a Portugal que era, naturalmente, a referência para o modelo baseado no engajamento com reinos africanos, estabelecimento de bases na costa de África e mecanismos de acesso à mão-de-obra escrava para venda aos colonos nas Américas que passava pelo aproveitamento de diferenças políticas, fomento de guerras, captura e manipulação de lideranças locais e escravização como punição judicial nos territórios sob seu controlo.

O processo de escravização resultou na exploração extrema dos africanos, que desumanizados eram considerados como mercadoria, de tal forma que estatisticamente eram registados como produto exportado, naquele que foi um dos maiores e mais violentos processos de migração forçada da história da humanidade e era apenas um dos pilares da colonização europeia das Américas e de África, que incluiu genocídios e subjugação violenta durante séculos de pessoas etnicamente diferentes, factor base da construção e estruturação do racismo que até hoje se faz sentir na maior parte das sociedades.

Infelizmente, a história da humanidade está repleta de episódios em que campos opostos se cruzam e objectivos distintos resultam em conflitos violentos que sustentam a construção de lendas de um lado e na secundarização e humilhação dos vencidos. Esta lógica de glorificação de vencedores de contendas para construção da identidade das nações é comum na generalidade das sociedades, desde vikings do norte da Europa que massacraram populações nas ilhas britânicas e na Europa continental aos mongóis, romanos e otomanos que conquistaram vastos territórios de espada em punho.

A dificuldade em conciliar esta lógica antiga com o aceitável nas sociedades modernas leva à várias posições que, na minha modesta opinião, são problemáticas. Se por um lado, existem indivíduos que entendem que os heróis do passado devem ser abertamente celebrados enquanto escolhem deliberadamente destacar os seus feitos omitindo as externalidades negativas das suas acções, existe por outro lado uma posição igualmente maximalista que defende a nulificação de qualquer feito cujo protagonista esteve factualmente envolvido em acções que violentaram grupos de pessoas, sobretudo, as vítimas de migração forçada para escravização e os autóctones violentados em processos de colonização.

O grupo que se opõe a qualquer tipo de celebração dos “descobrimentos portugueses” justifica sempre que deste processo resultou a destruição de um sem número de comunidades e a separação de famílias pela “mercadorização” de seres humanos oficialmente desumanizados com efeitos nas sociedades actuais. Este grupo entende que (i) os avanços tecnológicos, (ii) vitórias impensáveis contra os desafios impostos pelo mar ou (iii) qualquer troca cultural que independentemente da circunstância contribuiu para criação de um novo mundo não são grandes o suficiente para serem celebradas sobre o sofrimento de um sem número de vítimas da globalização iniciada pelos portugueses.

Eu sou natural de Luanda, local do maior ponto de saída de escravos africanos para as Américas e tenho perfeita noção do sofrimento associado a este processo, em particular no outro lado do Atlântico, mas ainda assim penso que é excessivo exigir aos portugueses que não celebrem de forma alguma os protagonistas do movimento dos navegadores que em nome de Portugal ofereceram àquela nação “novos mundos”, a semelhança dos conquistadores do passado que com violência também criaram impérios igualmente celebrados. Contudo, defendo que a fotografia a apresentar tem que incluir mais destaque a todo o processo de expansão português, incluindo a ocupação violenta e o papel de destaque que Portugal teve no comércio transatlântico de escravos.

A história dos povos está repleta destas contradições que aos olhos da sociedade moderna e sem a devida contextualização tornam o passado demasiado pesado para ser celebrado. Em Abril de 2018, escrevi sobre a participação da Rainha Njinga Mbandi no comércio de escravos e porquê que era errado reduzir a soberana do Ndongo e Matamba a uma mera comerciante de pessoas precisamente porque a história sem contexto está destinada a interpretações problemáticas e, nestes casos em particular, a simplificação não contribui para construção de uma posição mais equilibrada.

A contextualização permite-nos, por exemplo, entender as diferenças entre os processos de escravização e o modelo de exploração de escravos nas duas costas do Atlântico e como a procura por escravos africanos para colonização das Américas afectou a política nos reinos africanos. Sendo factual que o nível de tolerância à exploração de seres humanos evoluiu de forma regressiva ao longo de séculos, é entendimento geral que a escravização sempre foi vista como um castigo tanto para derrotados de guerras como punição judicial, extensivamente explorada pelas autoridades imperiais portuguesas da época.

Na questão do passado português, na minha modesta opinião, a abordagem mais equilibrada é dificultada por um duelo de extremos que por um lado tem quem venda a versão de um império pacífico que cresceu na base da diplomacia e engenho e por outro lado temos quem reduz os exploradores a piratas e desclassifica qualquer outra acção que tenha resultado do movimento de exploradores. Tendo presente que os extremos dos dois lados acabam por causar ruído numa conversa que se quer balanceada, a versão glorificadora dos “descobrimentos” temperada com o revisionismo histórico do luso-tropicalismo que vende a versão de um colonizador integrador e criador de sociedades multi-étnicas e quase igualitárias é particularmente problemática porque encontra na maior parte das vezes a oposição tanto da ala que defende a demolição do monumento dos descobrimentos como de quem busca uma abordagem equilibrada do passado.

O cruzamento da história que coloca, por exemplo, angolanos e portugueses em lados opostos na maior parte da história, tem também impacto nas reacções de certas posições sobre eventos da história partilhada, provocando a natural hipersensibilidade de protagonistas da mesma história mas com interesses quase sempre dissonantes. Contudo, o passado problemático é um traço comum para maior parte dos países porque, regra geral, são celebrados líderes conquistadores que na defesa dos seus interesses acabam por atropelar interesses de terceiros e a celebração das suas vitórias naturalmente representa um período traumático do outro lado.

A história quando vista como história, com a maior neutralidade possível e com a noção do tempo em que se desenrolaram os acontecimentos, não é fonte de polémicas. A necessidade quase humana de buscar no passado heróis para celebrar no presente acaba por alimentar a construção de narrativas que sobrevalorizam preferências pessoais e do presente em detrimento da razoabilidade e maturidade necessária para usarmos a história como um veículo de conhecimento que nos ajuda a compreender o presente e não como uma massa manipulável a medida de interesses pessoais.

Em suma, o conceito de celebração do passado é inultrapassável mas é pela sua natureza, problemático. As visões maximalistas que defendem uma versão cor-de-rosa do passado e a visão que defende a não contextualização para análise de acontecimentos de épocas que nos precederam não são de forma alguma o caminho. O que desejo é que Portugal possa celebrar o seu passado sem subordinar a parte menos positiva aos pontos que considera áureos e que todos nós possamos ter maturidade para entender todas as camadas da história e o momento em que certas decisões e acções foram tomadas.

E se Angola fosse uma democracia de facto?

Luanda, 1961

Hoje é dia 4 de Fevereiro, uma das datas mais importantes da história recente de Angola e homenageada com feriado nacional, menção no hino nacional e nome do principal aeroporto do país. Em 1961 quando um grupo de angolanos decidiu rebelar-se contra o poder colonial e mais uma vez ensaiar uma alteração estrutural por via da força, com o fim último de acabar com o colonialismo começando pela libertação de presos políticos em Luanda, não existia um grande plano sobre como uma Angola mais justa deveria estar organizada, o que se queria a todo custo era pôr termo ao regime colonial sustentado numa hierarquia racial humilhante para a maioria dos cerca de 5 milhões de habitantes da altura.

Se em 1961 a implantação de uma democracia não centrava o debate, no presente é uma solução indicada por boa parte das pessoas para que Angola finalmente realize o seu potencial. Neste blogue que discute questões económicas de Angola, em diferentes ocasiões defendi que mais do que um problema económico, Angola tem um problema político que limita a capacidade do país crescer mais e de forma mais harmoniosa.

Apesar de vivermos num país nominalmente democrático, com um governo eleito por sufrágio universal e com um parlamento, um olhar mais apurado (ou nem isso) permite concluir que o funcionamento das nossas instituições não se coadunam com o de uma democracia real, desde a quase inexistência de contrapeso ao poder executivo ao modelo de governação local centralizado. A minha questão é: e se fossemos uma democracia?

  • A comunicação social não estaria refém de decisões arbitrárias do governo que recentemente nacionalizou ou retirou de circulação todos os canais de televisão relevantes que não estavam sob seu controlo e isto iria permitir que tivéssemos o “4.º poder” a operar como fiscal adicional dos outros poderes e com a sua pressão forçar melhorias com impacto na vida da maioria;
  • Ainda sobre a comunicação social, a presença da oposição nos meios de comunicação não deveria ser um tema ao ponto de ser necessário o maior partido da oposição elaborar uma “lista de pedidos” para remediar a situação actual em que o líder do principal partido da oposição não merece uma ou várias entrevistas;
  • O responsável pela governação da minha província e/ou município seria eleito por mim e teria uma prazo para demonstrar se merece ter o mandato renovado ou se os eleitores dariam lugar à outro. Este exercício forçaria o governante a alinhar ao máximo os seus interesses com os do eleitor e disto resulta, regra geral, um governo mais eficiente cuja incompetência é punida nas urnas;
  • Se Angola fosse uma democracia real, o processo eleitoral que já era deficiente jamais seria alterado para um modelo de apuramento centralizado num país tão grande e com tantas limitações logísticas;
  • Tenho poucas dúvidas que numa Angola mais democrática a definição de prioridades para aplicação dos fundos públicos seria muito melhor que a actual que nos deixa sem uma rede viária nacional e local que cumpra com os mínimos olímpicos, com escolas públicas destruídas, com falta do mais básico nos hospitais enquanto são gastos milhões em benesses para um grupo restrito às custas de fundos públicos;
  • Tenho igualmente poucas reservas que se estivéssemos alinhados com as melhores práticas democráticas não existiram um clima de tensão em ano eleitoral porque estaríamos confiantes no sistema, inclusive que uma eventual contestação de resultados seria natural e competentemente resolvida pelos órgãos responsáveis para resolver disputas que naturalmente emergem numa sociedade.

Angola de 2022 é certamente muito pior do que os heróis do 4 de Fevereiro sonharam e acredito que um sistema com mais equilíbrio entre os poderes e com o voto a gozar do seu completo valor a nossa sociedade (e economia) estaria num estado mais avançado. O nosso sistema de educação seria maior, melhor e mais consequente, assim como teríamos infra-estruturas melhores e apontadas para o futuro com vias para acesso mais democrático aos confins do país e com telecomunicações mais modernas, abrangentes e acessíveis em termos de preços para que a nova economia pudesse florescer entre nós como já tem acontecido em outros países africanos.

Israel e Palestina

Em Fevereiro de 2020, antes da pandemia de COVID se ter tornado realmente global, tive a oportunidade de visitar Israel e a Palestina, a região com um conflito intermitente e, infelizmente, cada vez mais previsível e com poucos avanços reais para aquele que entendo ser o sentido certo.

O conflito entre israelitas e palestinos é complexo e sobre o qual aprendo todos os dias, mas não vejo outra solução a não ser a de dois estados. Contudo, com o avançar dos anos parece ser mais difícil implementar tal solução porque (i) os colonatos judeus na Cisjordânia ocupam grosseiramente o território de um futuro estado palestino e (ii) o minguar da Autoridade Palestiniana e ascensão do Hamas deixa o povo palestino sem um representante fiável aos olhos da generalidade.

A iconografia do conflito pode deixar a ideia que em Israel vive-se em constante tensão mas nos dias que fiquei em Telavive fui surpreendido por uma calma “assustadora” porque apesar de ser comum vermos mancebos adolescentes fardados e de metralhadora a tiracolo e gelado na mão a passear em centros comercias, não me lembro ter visto polícias a patrulhar as ruas, aliás polícias em operação só me lembro de os ter visto a assegurar o desenrolar de uma manifestação de trabalhadores do sexo contra regras restritivas à sua actividade que estavam em discussão no parlamento.

Telavive, Israel

Na verdade, a maior parte dos israelitas tem uma vida normal apesar das circunstâncias e suposta ameaça constante de ataque, o poderoso estado de Israel criou ao longo dos anos condições para que a sua população conseguisse levar uma vida com relativa normalidade e prosperidade cercada de muros e tecnologia de ponta que reduz a quase insignificância o impacto dos ataques episódicos da resistência palestina nas suas diferentes versões.

Contudo, o “sucesso” impressionante de Israel foi conseguido com a imposição de grandes custos à população árabe palestina que habitava a região sob gestão britânica antes da criação do estado de Israel no final da década de 1940.

As sucessivas guerras ao longo dos anos e a visível incapacidade dos diferentes movimentos palestinos em vergar Israel são mais do que indicativos que a solução militar só facilita os extremistas de ambos os lados. O cerco a Gaza é grosseiro e é natural que alimente o ódio visceral de palestinos contra Israel, mas ter o Hamas como defensor da causa cria ao mesmo tempo um argumento para as posições extremas de Israel.

Por outro lado, o PM Netanyahu é cada vez menos popular e cada vez tem mais dificuldades em formar governo sem recurso a coligações heterogéneas que invariavelmente incluem judeus radicais abertamente pró-colonatos e defensores da expansão do poder israelita em Jerusalém oriental, a revelia do mapa globalmente aceite e que não reconhece soberania israelita naquela parte da cidade.

Aliás, sobre Jerusalém tenho que dizer que é de longe a cidade mais intrigante e fascinante que alguma vez visitei. A cidade é considerada sagrada pelas três maiores religiões monoteístas e ao mesmo tempo um palco de conflito constante.

Transeunte muçulmano e igreja cristã em Jerusalém

A pobreza da parte oriental sob constante ameaça da expansão judia em território historicamente muçulmano contrasta com a modernidade e riqueza do lado ocidental onde está o parlamento e a casa oficial do primeiro-ministro de Israel, onde curiosamente não se vê um aparato de segurança relevante.

Aliás, quando se passa para o lado palestino em Belém o controlo é quase nenhum para quem é turista e foi mais uma surpresa. Os palestinos não disfarçam a raiva contra Israel que exerce um poder avassalador nas suas vidas mas para um forasteiro não deixa de ser visível a semelhança entre os povos, nomeadamente na culinária. Belém é mais uma cidade com longa história e significado religioso para os cristãos, apesar de estar sob gestão de um governo marcadamente muçulmano, o respeito pelos sítios marcantes do cristianismo que garantem milhões de turistas anualmente contrasta com a visão generalizada de intolerância associada à alguns governos muçulmanos.

Belém, Palestina

Parece ser mais um local em que as pessoas se acomodaram com a situação que anda longe do ideal, com muros e controlos de fronteia humilhantes para palestinos que os israelitas defendem como necessários para reduzir a vulnerabilidade do seu lado. Ramallah, mesmo ao lado de Belém é uma cidade relativamente moderna onde não se vislumbra um ambiente ameaçador, pelo contrário, as ruas estão cheias de comerciantes e é visível algum entusiasmo do sector imobiliário com prédios a crescerem de todos os lados. Curiosidade, nas caixas ATM as notas que retiras com teu cartão de crédito são de dólares dos Estados Unidos.

Gostaria imenso de voltar àquela região não apenas para explorar melhor Ramallah, mas também para visitar Sderot e Hebron como sugeriu-me o guia palestino-cristão em Jerusalém que na visão dele, sobretudo Sderot, são o exemplo acabado de normalização da situação absurda que se vive naquela região com dois arqui-inimigos que estão condenados a entender-se mas sustentam com posições utópicas que impossibilitam qualquer entendimento.  Os anos passam e estes momentos de tensão são apenas uma excepção de um normal que não deveria ser porque apesar de ser geralmente pacífico para israelitas, impõe custos sociais enormes aos palestinos e impossibilita a paz permanente na região.

Black Lives Matter, estátuas, contexto e novas perspectivas

Estátua do rei belga Leopoldo, fundador do infame Estado Livre do Congo cujas políticas de domínio levaram à morte de cerca de 10 milhões de autóctones

Uma das guerras de muitas populações injustiçadas por regimes políticos do passado, com impacto no presente, são as homenagens toponímicas e estátuas que representam figuras controversas pelo papel que tiveram no comércio e exploração de escravos, sobretudo, enquanto vigorou o comércio transatlântico de escravos e noutros episódios dolorosos da história da humanidade. As estátuas e as referências toponímicas são normalmente homenagens ao passado feitas por pessoas do presente e, como tal, o sentimento sobre o dito passado que é afectado por subjectividades, muda e esta mudança acompanhada por dinâmicas políticas e sociais poderá desembocar em movimentos contra o passado que o “presente do passado” em algum momento homenageou.

As manifestações massivas que espontaneamente levaram centenas de milhares de pessoas em todo mundo a meio de uma pandemia a protestar estruturas sociais opressivas para as populações de afrodescendentes, sobretudo, nas Américas e Europa ganharam um novo alvo: estátuas de “heróis coloniais”. Assim, no mesmo sentido do movimento #RhodesMustFall na África do Sul e a luta do movimento Black Lives Matter nos Estados Unidos contra estátuas de líderes da confederação do sul dos Estados Unidos que lutou pelo “direito” de ter escravos na guerra civil americana, jovens europeus começaram a derrubar estátuas de figuras ligadas ao comércio de escravos em diferentes cidades do velho continente de Bristol à Antuérpia, alegando que estas homenagens perpetuam um passado repreensível.  

Este movimento choca muita gente que defende se tratar de um revisionismo empobrecedor, considerando as estátuas um elemento essencial para se contar a história, ignorando que ela se mantém lá, essencialmente, porque alguém em algum momento decidiu homenagear uma figura que pessoas da nova geração entendem não ser merecedora de homenagem. A contextualização é fundamental para se contar a história mas não deve ser usada como um instrumento para construção de narrativas que servem sobretudo interesses do presente. A questão das sociedades do passado terem sido erguidas num contexto próprio obriga-nos  a fazer algum exercício de ajustamento e evitar olhar o passado exclusivamente com óculos do presente e esta tentação explica em parte a não homenagem da Njinga Mbandi com uma rua num bairro de Berlim porque a soberana do Ndongo foi partícipe do comércio de escravos, que a partida é um acto abominável mas carece de contextualização como escrevi aqui. As homenagens à Njinga em Angola e noutras geografias não buscam perpetuar uma agente activa no comércio de escravos no século XVII mas a soberana guerreira na memória colectiva de africanos e seus descendentes, alguns deles pessoas escravizadas nas Américas. O mesmo argumento pode ser usado pelas pessoas que acham que Cecil Rhodes mais do que um defensor da estruturação racial de uma sociedade já no final do século XIX que coloca o negro na base e o branco no topo foi um empresário e político brilhante que ajudou a construir a África do Sul e merece ser homenageado.

A história como ciência procura relatar o passado com distanciamento mas contextualização e suporte. Contudo, a história não estará nunca isenta de interpretação e como tal poderá sempre ser utilizada como pedra basilar para construção de certas narrativas. A única forma que conheço para evitar o ruído das narrativas é a maturidade para discutir abertamente o passado desconfortável no presente e só assim a abordagem primordial nestes diálogos será a busca da justiça e compreensão e nunca a busca da vingança, por maior que seja a tentação.

A defesa da manutenção de homenagens a figuras controversas por norma é sustentada por ideias que defendemos no presente e não necessariamente algum apego pela divulgação da história uma vez que esta é, sobretudo, contada em livros e não com monumentos artísticos que poderão de facto representar uma afronta para muitas pessoas.

Um dos elementos que coloca muitos dos monumentos em cheque é que servem essencialmente para homenagear e celebrar a vida de alguém que representa o sofrimento de um grupo específico. O facto de uma posição aceitável no passado não encontrar enquadramento no presente obriga a reconsideração de posições. Neste blogue defendi a manutenção da rainha Njinga como símbolo de resistência e afirmação do poder africano e critiquei a reintrodução do nome Moçâmedes na toponímia angolana mas consigo conciliar com a eventual satisfação de um português com os feitos do Barão de Moçâmedes em nome da coroa do império luso. Contudo, as sociedades etnicamente heterogéneas criadas pela colonização nas Américas e pela imigração na Europa confrontaram certas certezas das classes dominantes nestas regiões como heróis nacionais que assumem o papel de vilão para outras pessoas, por exemplo: será que um cidadão português nascido e criado em Moçambique celebra as vitórias de Mouzinho de Albuquerque? Será que os feitos do comandante Roçadas ao serviço das tropas de Portugal devem ser celebrados por portugueses de origem angolana que sabem que Roçadas foi o algoz do herói angolano e namibiano Mandume? Parece natural que os heróis da guerra de uma nação celebrados por vitórias militares representem vilões no lado oposto e este conflito de posições (ou opiniões) é muitas vezes inevitável.

O que é facto é que as histórias destas figuras controversas não se resume à existência de estátuas em sua homenagem, esta seria talvez uma boa oportunidade para revisão da forma que se ensina história e apoiar os museus que procuram contar de forma condensada e acessível a história, os museus aliás seriam um bom local para parquear e contextualizar estátuas que se entendem agora como desenquadradas. O artista Banksy sugeriu uma alternativa à estátua do filantropo e antigo comerciante de escravos Edward Colston que foi derrubada e atirada ao rio em Bristol na Inglaterra, que passa pela recuperação da estátua e uma nova colocação artística que integra os manifestantes a derrubar a estátua como uma forma de contar a história de forma mais completa.   

Ilustração de Banksy

A alteração de valores ou aceitação de ideias antes negligenciadas ou oprimidas podem provocar mudanças na aceitabilidade de certas práticas ou monumentos, este facto está na base, por exemplo da alteração do nome de ruas e localidades em Angola no período pós colonial ou mesmo a passagem do nome da ponte sobre o rio Tejo em Lisboa de “Ponte Salazar” para “Ponte 25 de Abril”. O nível de aceitação destas mudanças muitas das vezes não está ligado à nenhum apego a preservação ou transmissão da história mas é sobretudo uma manifestação de resistência à mudança de algumas pessoas e questões do âmbito racial deixam muitas pessoas brancas na defensiva e este posicionamento é muitas vezes bloqueador da necessária empatia para melhor compreender as feridas que alguns símbolos e práticas ainda causam hoje.

Angola e o seu património imaterial

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Máscaras konguesas na exposição Kongo: Power and Majesty do Metropolitan Museum of Art de Nova Iorque

Em Dezembro de 2018 a ministra da cultura Carolina Cerqueira  anunciou que o estilo musical angolano semba será candidato a Património Imaterial da Humanidade da UNESCO.  As palavras da ministra foram recebidas com entusiasmo e reticências.

Entre os menos entusiasmados ouviram-se diferentes razões, desde críticas ao tratamento que os fazedores do Semba têm recebido do Ministério a alegada existência de estilos musicais nacionais com maior potencial para tal candidatura, como a Tchianda que segundo o músico Jorge Mulumba “tem mais força que o Semba  porque nos países vizinhos como o Congo, Gabão, Zâmbia e Namíbia toca-se e dança-se este género das Lundas”.

Ao contrário do que se possa pensar, o reconhecimento internacional não é condição necessária para que uma prática cultural seja elevada a património imaterial, mas sim todas as manifestações com valor cultural e social de um povo, cujo valor é reconhecido a nível nacional e nesta categoria encontram-se práticas mundialmente famosas como o reggae jamaicano ou mais obscuras e locais como o português “cante alentejano”.

É missão do Ministério da Cultura garantir a protecção e divulgação da cultura nacional nas suas mais distintas manifestações e as evidências apontam para um trabalho com muito espaço para melhorar por parte do MINCULT mas candidatar uma das faces da música urbana moderna angolana é um passo no caminho certo.

Ainda que existam outros estilos entre nós com mais notoriedade – local ou externa – não existe regra nenhuma que imponha limite ao acervo patrimonial de um país e de forma alguma Angola deveria abdicar da ambição de ver outras manifestações culturais dos povos de Angola reconhecidas como Património Imaterial da Humanidade e a lista de candidatos é longa, na minha modesta opinião, e no caso de Angola a influência destas práticas na cultura de outros povos é uma mais-valia.

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Mapa do comércio transatlântico de escravos (dimensão das setas indicativa da movimentação de escravos por origem e destino)

Como várias vezes escrevi neste espaço (aqui, aqui, aqui, aqui e aqui) a história dos povos de Angola foi muito marcada pelo cruzamento com o período de expansão europeu iniciado no século XV e capitaneado pelos portugueses. O desenvolvimento da economia globalizada da época e as relações existentes entre Portugal, soberanos e comerciantes do nosso lado da costa colocaram os escravizados angolanos no centro do sistema comercial triangular e, como tal, por terem formado comunidades muito expressivas no Novo Mundo a sua influência cultural globalizou manifestações culturais angolanas, sendo que algumas destas manifestações foram já elevadas a Património Imaterial da Humanidade pela UNESCO como o Espaço Cultural da Cofradía del Espíritu Santo de los Congos de Villa Mella da República Dominicana que foi erguido por descendentes de escravos embarcados essencialmente do norte de Angola para as Américas ou mesmo a Roda de Capoeira brasileira que tem na sua génese a arte marcial do sul de Angola ngolo (ou engolo) e esta prática ainda viva em comunidades do sul de Angola (como na Huíla e Namibe) seria um bom candidato nacional.

Angola deveria igualmente submeter como candidatos a património imaterial da humanidade algumas línguas angolanas que merecem ser protegidas não só pela sua importância local mas também pela influência no exterior como kikongo, kimbundu e umbundu que dominam o mosaico linguístico angolano entre as línguas africanas que falamos e estão ainda hoje presentes nos falares de outros países, designadamente a nível da culinária e música.

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Músicos da corte de Njinga Mbandi (por Giovanni A.Cavazzi de Montecúccolo)

Existem ainda entre nós uma série de manifestações culturais com pouca visibilidade nacional que merecem ser abraçadas, primeiro localmente e a seguir ser analisado o seu potencial para o reconhecimento da UNESCO como (i) alguns dos diferentes rituais de iniciação ainda existentes, (ii) a antiquíssima arte de esculpir materiais sólidos que nos trouxe até hoje o trabalho de artesãos que trabalham sobretudo a madeira, muito presentes nas regiões que foram no passado integrantes do Reino do Kongo e na região Côkwe, assim como deveríamos tomar iniciativa em reclamar para Angola o património cultural que representa a marimba que é um dos instrumentos centrais da cultura musical do antigo Reino do Ndongo que é hoje um instrumento global, sobretudo de grande valor identitário nas Américas, aliás, a Colombia e o Equador têm registado junto da UNESCO a “expressão cultural marimba” como património imaterial da humanidade pelo valor que esta manifestação composta por cânticos acompanhados pela marimba representa para os povos de origem africana de regiões da Colombia e do Equador.

Temos um longo caminho para andar na protecção e divulgação interna da nossa cultura mas o objectivo de obter o reconhecimento internacional deve fazer parte de qualquer plano que vise honrar a história e a cultura dos povos de Angola.

Njinga Mbandi e o tráfico de escravos

Há umas semanas um amigo enviou-me uma notícia da Deutsche Welle dando conta que o nome da Rainha Njinga Mbandi do Ndongo e Matamba tinha sido rejeitado para integrar a toponímia do bairro africano de Berlim porque a soberana do Ndongo do século XVII participou no comércio transatlântico de escravos que vigorou entre o final do século XV e o final do século XIX.

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Curiosamente, por desconhecimento da história, muitas pessoas ficam chocadas quando tomam conhecimento que soberanos e comerciantes africanos tiveram um papel activo no comércio de pessoas que levou milhões de africanos como escravizados para as Américas. Este desconhecimento, naturalmente estende-se ao modelo organizacional e político das sociedades da altura e como a expansão do comércio de escravos entre as duas costas do Atlântico alterou estas sociedades, alimentando guerras e destruição de nações e reinos africanos. Contudo, o processo de produção de escravos (na linguagem historiográfica) não se resumiu a guerras de iniciativa europeia associadas aos planos de instalação colonial nas terras que são hoje Angola mas também por via da colaboração entre comerciantes europeus e africanos, representantes da realeza europeia, a igreja católica e soberanos africanos.

O infame comércio que levou milhões de pessoas da costa ocidental africana para o sul da Europa no final do século XV ganhou dimensão apenas no segundo quarto do século XVI quando as relações de Portugal com o Reino do Kongo, sedeado em Mbanza Kongo, se foram cimentando a medida que Portugal expandia a colonização do Brasil, processo que foi o principal indutor da procura por escravos africanos. As relações diplomáticas estabelecidas entre os soberanos do Kongo com o Reino de Portugal abriram o caminho para  a maior presença de comerciantes portugueses na costa angolana que trocavam manufacturas europeias e asiáticas por pessoas e produtos africanos (como marfim e peles).

Joseph Miller no seu influente livro “Way of Death – Merchant Capitalism and The Angolan Slave Trade 1730-1830” tenta desmistificar o choque das sociedades modernas quando se deparam com o facto de existirem africanos envolvidos no comércio de escravos, apresentando o papel que os escravos representavam nas sociedades africanas e como poderiam chegar à tal condição. Miller defende que na África centro-ocidental da altura (essencialmente no que é hoje Angola) o poder dos soberanos assentava na capacidade de controlar os bens e na quantidade de pessoas sob sua dependência, quer fossem livres ou escravos, sendo que a fluidez da condição de escravo permitia a ascensão social e não implicava limitações extremas à sua interacção com a sociedade alargada.

Miller afasta a noção do comércio de pessoas ser inerente à sociedade africana da altura: O historiador defende que a noção de comércio de produtos era estranha a sociedade africana que seguia um modelo de produção comunitário e sem a busca pelo o excedentário. No entanto, o triunfo do comercialismo com a chegada dos europeus alterou a abordagem dos africanos, em particular os seus soberanos.

[…] before the advent of slaving ad commercialism, goods were not generally viewed as made for exchange. The purpose of production was for use within community , with the ordinary distribution of products handled under the rubrics of inheritance, redistribution, or sharing.

“Way of Death – Merchant Capitalism and The Angolan Slave Trade 1730-1830” – Joseph C. Miller

É importante acrescentar que os comerciantes lusitanos e a coroa portuguesa souberam habilmente tirar proveito e manipular a seu favor conceitos existentes na sociedade africana para desenvolver a sua actividade, nomeadamente explorando a escravização por via judicial (punição por dívidas, furtos, homicídios e feitiçaria) e iniciando ou apoiando guerras entre territórios rivais uma vez que era cultura local transformar prisioneiros de guerra em escravos.

O modelo judicial foi crescendo a medida que o Reino de Portugal foi instalando feitorias no território que é hoje Angola e o Brasil se tinha tornado na jóia da coroa do Império colonial portugês com uma procura insaciável por mão-de-obra escravizada que era maioritariamente originária de Angola. A historiadora brasileira Mariana Cândido evidencia no livro “An African Slaving Port and the Atlantic World: Benguela and Its Hinterland” como o comércio de escravos afectou as instituições africanas, tornando as armas de fogo e produtos manufacturados trazidos por europeus em meios essenciais para manutenção do poder, o que levou muitos reinos africanos a busca desenfreada por produtos trazidos pelos europeus (e brasileiros) que eram trocados por escravos.

Scholars have pointed to the use of judicial litigation as an example of African agency and resistance to enslavement. José Curto and Roquinaldo Ferreira, for example, have identified cases where captives relied on relatives to challenge their enslavement. Curto and Ferreira failed to recognize , however, that despite their agency, litigants reinforced the role of Portuguese colonial officials as arbitrators of their fate. West Central Africans were compelled to accept that Portuguese agents could decide who was “legally” or “illegally” enslaved, revealing the compliance of all involved with the system and the notion of slavery as a legal institution. In the process of fighting for their freedom, litigants accepted and reinforced the legality of slavery. Victims of the expansion of the trans-Atlantic slave trade, through their resistance, contributed to legitimizing slavery.

“An African Slaving Port and the Atlantic World: Benguela and Its Hinterland” – Mariana P. Cândido

Existe igualmente a ideia relativamente recente de “denunciar” o facto de “negros escravizarem negros” que é factual do ponto de vista das concepções raciais modernas mas que não encontra sustento na construção social africana da altura uma vez que as guerras entre territórios não tinham uma base racial e não existia a lógica de “africanos” uma vez que um habitante do Ndongo não era necessariamente amistoso para um habitante do Mbailundu simplesmente por ter a mesma tez de pele. O amalgamento do negro africano numa única categoria – negro/preto/africano/escravo – é uma construção do colonialismo europeu, que como consequência do processo de desumanização com base na cor da pele gerou solidariedade entre pessoas negras e seus descendentes nas colónias europeias, criando assim a noção de solidariedade africana e pan-africanismo, derivadas do processo de colonização.

A participação de locais no processo de escravização e posterior deportação de pessoas para as Américas foi um elemento central durante todo o período do comércio transatlântico de escravos, com diferentes níveis de envolvimento ao longo dos anos. Contudo, é útil fazer uma distinção entre o modelo de tratamento e regulação da vida dos escravos nas Américas do seu tratamento em África.

Os historiadores contam que os escravos na África centro-ocidental estavam sujeitos a limites à sua liberdade, incluindo a possibilidade de poderem ser enviadas para as Américas por decisão exclusivamente de terceiros, mas também reconhecem a fluidez que possibilitava a mobilidade social e ascensão à liberdade, por exemplo, a mãe de Njinga Mbandi era uma escrava do rei.

Ademais, não existia em África a exploração industrial da mão-de-obra escrava que está na base das altas taxas de mortalidade dos africanos nas primeiras décadas da colonização do Brasil, que por algumas vezes levou a protestos de soberanos africanos depois de reportes que recebiam, sobretudo, de religiosos com visitas aos dois lados do Atlântico.

As imagens chocantes normalmente associadas à este período da história marcadas pelo transporte em parcas condições, trabalho e punições extremas são sobretudo uma realidade colonial das Américas, uma vez que não sendo uma diferença de água para o vinho, a interacção dos europeus com os africanos em África era menos excessiva e esta realidade passou a ser do conhecimento geral em Angola – sobretudo onde existiam feitorias europeias enraizadas – como evidencia o facto da deportação para o Brasil para os escravizados ser vista como a maior das punições a seguir a morte (para escravos trazidos do interior, a associação do mar à morte era igualmente um factor de desespero).

Os soberanos africanos que se tornaram dependentes de produtos trazidos pelos comerciantes para manterem ou expandirem o seu poder, tornaram-se numa peça fundamental para geração de escravos muito procurados para a colonização das Américas, com destaque para o sul e para as ilhas caribenhas. O aumento das áreas cultivadas e exploração mineira nas Américas reduziram o continente africano a fornecedor de escravizados no modelo comercial triangular.

O escravo era tão central para a presença europeia em África que a relação comercial e fiscal entre africanos e europeus, sempre que implicasse transacções pecuniárias o meio de troca eram escravos. Os soberanos africanos pagavam impostos aos portugueses com escravos, ofereciam escravos e armavam-se trocando escravos por armas de fogo, que eram usadas para manter e expandir o seu poder. Neste contexto, a Rainha Njinga Mbandi, descrita como política astuta que soube navegar as idiossincrasias do seu tempo como nenhum outro líder da época, também ofereceu escravos à religiosos e nas várias negociações que fez com portugueses e holandeses, liderou batalhas que geraram escravos, vendeu escravos para armar-se e defender a independência dos seus territórios das investidas dos portugueses e de líderes africanos hostis ao seu reinado.

A Njinga Mbandi inteligente, valente e defensora do território que defendia ser legado dos seus antepassados é que foi transportada para as Américas pela vasta Diáspora de povos  oriundos de territórios que hoje formam Angola. Os escravizados africanos levados para as Américas, independentemente da forma em que acabaram na condição de escravo que antecedeu o seu transporte para a dura vida nas plantações e minas das colónias europeias, não construíram uma imagem negativa de Njinga Mbandi, pois na memória colectiva da Diáspora africana a Rainha do Ndongo e Matamba é vista como um exemplo de bravura e genialidade, Njinga Mbandi viveu na memória daqueles escravos como um exemplo de liderança africana num mundo alterado pela presença de forasteiros e não como uma traficante de escravos oportunista.

A negação do nome de Njinga Mbandi na toponímia de Berlim embora que em certa medida seja justificável, parece desinformada e vítima de descontextualização. A decisão parece ter sido afectada por um olhar do passado com óculos do presente sem que se tenham sido consideradas questões básicas como o modelo de geração de escravos em África no século XVII, o papel que os escravos tinham na sociedade africana pré-contacto com europeus, diferenças no modelo de exploração e tratamento de escravos em África e nas Américas, a forma de comunicação e disponibilidade de informação à época.

A complexidade das sociedades da época em que viveu a Njinga Mbandi tem sido descodificada nas últimas décadas por vários académicos que têm uma visão do lugar ocupado por Njinga Mbandi na história de África muito diferente daquela que sustentou a decisão das autoridades de Berlim, como demonstram os diferentes comentários feitos ao livro de Linda Heywood que é amplamente tido como a melhor e mais completa biografia de Njinga.

Njinga’s time has come. Heywood tells the fascinating story of arguably the greatest queen in sub-Saharan African history, who surely deserves a place in the pantheon of revolutionary world leaders, male and female alike.

Henry Louis Gates, Jr. sobre “Njinga of Angola – Africa’s Warrior Queen” de Linda Heywood

Um paralelo poderia ser feito com Thomas Jefferson que foi co-autor do marco intelectual que é a constituição dos Estados Unidos que em 1788 defendia que  “todos os homens nascem iguais” mas seguindo a lógica de desumanização do escravo africano, os Estados Unidos continuaram a considerar a escravatura legal porque teoricamente não havia contradição. Thomas Jefferson, embora não tenha participação no tráfico de escravos (que chegou a criticar) foi ao longo de toda sua vida (1743-1826) proprietário de escravos e continua presente na toponímia de vários países, incluindo na Alemanha.

Nos Estados Unidos ao longo dos anos, muitas localidades têm estado a derrubar estátuas de líderes da Confederação de estados que lutou contra a união, essencialmente, pelo direito de ter escravos já no final do século XIX mas não é expectável que Jefferson seja retirado do Mount Rushmore ou mesmo veja o seu nome removido da Thomas Jefferson Straße (rua Thomas Jefferson) em Mannheim no estado Baden-Württemberg na Alemanha. Por outro lado, também não é expectável que a estátua da Rainha Njinga Mbandi seja retirada em Jamestown nos Estados Unidos.

Popularidade da kizomba? O mundo gosta do som angolano há séculos

No dia nacional da cultura, 8 de Janeiro, a ministra Carolina Cerqueira anunciou um projecto de “actualização, ainda este ano, do registo dos instrumentos musicais tradicionais de cada província do país e a constituição de uma banda musical deste género”. Uma ideia interessante, na minha modesta opinião, que exigirá investimento em pesquisa e formação e espero que a iniciativa não esbarre nas restrições financeiras que têm estado a afectar a implementação de muitos programas públicos.

Para qualquer pessoa atenta é bem visível a popularidade global de alguns estilos de música urbana moderna criados em Angola como kizomba e kuduro. O site Festivalsero tem catalogados cerca de 50 eventos internacionais, entre festivais e congressos, dedicados inteiramente ou em parte a kizomba agendados para 2017 em diferentes países desde Israel à China, números indicativos da popularidade do estilo de música e dança que inspirados no semba e na música antilhana Eduardo Paím e seus pares criaram nos anos 1980 em Luanda. Contudo, a kizomba e o kuduro não são os primeiros sons angolanos que conquistaram o mundo. Na era da expansão colonial europeia os instrumentos musicais e sons levados por escravizados do nosso actual território deixaram a sua marca no Novo Mundo.

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Fonte: Festivalsero

Phillip Effiong, académico nigeriano que tem o mesmo nome que o seu pai, o general do exército secessionista que assinou o acordo que pôs termo à guerra civil da Nigéria (aka guerra do Biafra), publicou há tempos um trabalho sobre a origem do banjo, o instrumento de cordas popularizado no século XX por artistas de blues  e jazz cuja origem africana é quase uma unanimidade entre historiadores e estudiosos dos instrumentos musicais. É um facto que em diferentes regiões de África podem ser encontrados instrumentos de corda semelhantes à uma guitarra rudimentar mas terão sido os escravos angolanos levados para o sul dos Estados Unidos que deram a conhecer “o pai do banjo” aos americanos.

*The gourdbodied instruments that eventually emerged as the banjo in the US were thus fashioned by slaves mostly in the American South and Appalachia, and would go through a process of being defined variously as bangie, bangoe, banjar, banjil banza, banjer and banjar.

Another theory cites the Quimbundo (also spelled Kimbundu) word m’banza, which means city or town, as another possible source of the word banjo. Quimbundo is the language spoken by one of the largest ethnic groups in modern Angola. When Portuguese colonizers and North American slave owners began calling the instrument banjo, they may have been influenced by the word m’banza. They may also have been influenced by the word banzo, which Brazilian slaves generated as an expression of the grief they felt for being held in bondage. Interestingly, Brazilian slaves typically expressed banzo when they played the banjo. The word banzo may have also come from the word m’banza.

In “African Origins of The Banjo” de Philip Effiong

Philip Effiong menciona que mbanza quer dizer cidade em kimbundo (e kikongo) mas não diz que também é o nome que os angolanos chamam à uma guitarra de fabrico artesanal com materiais rudimentares como atestou Assis Júnior no seu dicionário kimbundu-português. O bandolim rudimentar angolano também é conhecido como cambanza como refere Oscar Ribas no seu “Dicionário de regionalismos angolanos”.

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In “Dicionário Kimbundu-Português” de A. de Assis Júnior

No texto que acompanha a imagem (abaixo) do jovem negro com um “cordofone de formato arredondado como o do banjo” do livro “O rasga: uma dança negro portuguesa” o autor José Ramos Tinhorão aborda a origem kimbundu da palavra e refere que banza era também usada até ao princípio do século XX para designar a guitarra usada para tocar o fado português.

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In “O Rasga: uma dança negro-portuguesa” de José Ramos Tinhorão

A generalidade dos instrumentos e ritmos africanos entraram na cultura do Novo Mundo por via de rituais religiosos e outras cerimónias sociais levadas pelos africanos para as Américas como mostra o desenho do século XVII do soldado e artista alemão Zacharias Wegener – “Negertanz” – que retrata uma cerimónia espiritual africana numa fazenda brasileira que o historiador James Sweet descreveu como sendo uma cerimónia de escravos de origem angolana que no Brasil (e posteriormente em Portugal) popularizou-se com o nome calundu (lundu) que é uma corruptela da palavra kilundu do kimbundu. O calundu é um ritual que envolve música tocada com instrumentos africanos (angolanos no caso) como, ngomapuíta e dikanza. Esta cerimónia semelhante ao ritual do xinguilamento  foi uma das mais relevantes fontes das danças e música de origem africana presentes hoje nas Américas e parte importante desta música são os instrumentos que os africanos construíram na outra margem do Atlântico com base nas referências que levaram de África.

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“Negertanz” de Zacharias Wagener

A cultura afro-brasileira foi enormemente influenciada pelos escravos de origem angolana e hoje é impossível imaginar a música brasileira sem a cuíca (puíta em Angola), sem o canzá (que nasceu da dikanza) e a capoeira, que também foi levada ao Brasil por angolanos, não pode ser praticada sem o inconfundível som do berimbau que é o nome brasileiro para o hungu tocado em Angola.

No Brasil de hoje os tambores que os angolanos chamam ngoma os praticantes do jongo – os jongueiros – chamam de angoma ou de tambu, palavra que poderá estar ligada a tambo ou tambi que são os rituais associados aos óbitos, uma vez que tais batuques estavam muito presentes nas cerimónias fúnebres. Reza a história que o jongo actual teve origem num jogo de adivinhação e cerimonias de divindade angolanas e o ritmo é da responsabilidade de batuques previamente consagrados (ngoma e tambu), da puíta, do berimbau e do luso-árabe pandeiro.

No presente, muitos dos estilos musicais reconhecidos como brasileiros são uma evolução de expressões culturais africanas (notavelmente angolanas) e tal como o jongo o samba também tem na sua génese manifestações religiosas levadas para o Brasil por escravos e tem o som da ngoma, da puíta, da dikanza e de instrumentos de corda rudimentares na sua base.

a definição de samba como “dança de negros”, seguida da explicação de que “hoje é termo bem vivo no sentido de composição musical”. A palavra samba, do étimo quimbundo/quicongo kusamba, significa rezar, orar para os deuses e ancestrais, sempre festejados com danças, cânticos e músicas, celebrações que certamente eram vistas com estranheza e de caráter lúdico pela sociedade católica circundante. Contagiado pela cadência rítmica e gestual da dança, o que antes era dança de negros foi esvaziado do seu conteúdo religioso original e o samba-oração negroafricano foi apropriado na categoria de gênero musical-dançante para se tornar mundialmente reconhecido como a mais autêntica e representativa expressão da musicalidade brasileira.

In “A Influência Africana no Português do Brasil” de Yeda Castro

Outra antiga sociedade escravocrata com grande tradição de música de origem africana é a cubana e lá, tal como no Brasil, os filhos dos reinos do Ndongo e Kongo levaram os seus instrumentos para acompanhar as suas cerimónias socioculturais e a manifestação religiosa de origem bakongo Regla de Congo** (ou Palo Monte ou Palo Mayombe) introduziu o tambor de makuta (ou tumba ou tumbadora) aos cubanos que depois de muitos anos pariu a moderna conga, um batuque de produção industrial que herdou a expressividade do seu antepassado de produção artesanal. As congas estão presentes na constituição rítmica da congada, a expressão cultural cubana que tem equivalentes no Brasil e em outros países caribenhos com origem conguesa. Outro nome para o tumbadora em Cuba é tambó, cuja etimologia tanto pode originar da palavra tambor (ou latim tamburro) como pode ser equivalente ao tambú brasileiro e esteja ligado aos rituais fúnebres comuns no território que é hoje Angola (tambo/tambi).

Antes de Cuba receber grandes quantidades de escravos os principais receptores de escravos africanos nas colónias espanholas das Américas eram o que são hoje o México e o Peru e ambos os países receberam muitos escravos vindos do que é hoje Angola. No Peru, o landó e samba landó são versões do que no Brasil chamou-se de lundu, isto é, uma dança originária de cerimónias religiosas de escravos mundongo e bakongo naquelas terras onde também existe a conga, semelhante às comparsas cubanas e congadas do Brasil.

Na Costa Rica, país vizinho de Cuba, existe um instrumento musical que é património daquele país cuja origem ainda é controversa em alguns círculos que argumentam ser de origem ameríndia. Contudo, muitos estudiosos consideram o quijongo costa-ricense um instrumento de origem africana, provavelmente bakongo ou mundongo. Com efeito, o arco que integra uma cabaça como caixa de ressonância da corda que liga os dois extremos do arco é o irmão gémeo do hungu e naquela ilha caribenha foram importados muitos escravos de origem angolana pelos colonos espanhóis. A palavra quijongo poderá estar relacionada com kinjongo que em kimbundu quer dizer gafanhoto.

A difusão do hungu não se limitou às colónias europeias nas Américas, no século XVIII o mesmo instrumento era ouvido nas ruas de Lisboa quando escravos africanos e afro-brasileiros se juntavam a lisboetas para celebrar interpretando o que se chamava na altura de “modinhas do Brasil” que incluía o lundu e segundo José Ramos Tinhorão estas celebrações foram o embrião da dança portuguesa rasga.

Entre os instrumentos levados por angolanos para outras terras durante o período do comércio transatlântico de escravos o que obteve maior notoriedade e presença geográfica é provavelmente a marimba. O instrumento levado pelos naturais das terras do Ngola e do Reino do Kongo para a outra margem do Atlântico é hoje tocado em quase todos os países das Caraíbas e América Central e está presente na cultura sonora de todas as regiões do continente americano. A marimba é o instrumento nacional da Guatemala, é indispensável para identidade cultural da Costa Rica e está entre os mais tradicionais instrumentos dos sons afro-descendentes das Américas.

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As marimbas modernas de produção industrial assim como as artesanais presentes hoje nas Caraíbas e na América Central são diferentes das mais tradicionais marimbas nacionais. A estrutura do instrumento foi sofrendo alterações ao longo dos anos nas Américas como demonstram as diferenças evidentes entre a ilustração do padre Giovanni Antonio Cavazzi do século XVII feitas aquando da sua visita à Angola e a pintura do artista peruano Pancho Fierro representando tocadores de marimba afroperuanos na segunda metade do século XIX.

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In “Istorica descrittione de Regni Congo, Matamba, et Angola” de Giovanni Antonio Cavazzi da Montecuccolo (esquerda) | obra de Pancho Fierro (direita)

Em Cuba e noutras partes das Caraíbas  e da América Central (Porto Rico, Honduras, Dominicana, Venezuela, México) toca-se também a marímbula (ou marimból), que apesar do nome assemelha-se sobretudo a um kissanji gigante constituído por uma caixa com teclas metálicas. Por seu turno, o kissanji ou piano de dedo (conhecido noutras partes de África como mbira) era tocado em vários territórios africanos  e foi efectivamente um dos instrumentos mais utilizados pelos escravos nas Américas.

Com efeito, na região do Rio de la Plata (Urugai e Argentina) para onde foram levados muitos escravos angolanos o piano de dedo também é conhecido como quisanche e a fonética e a forma não escondem a origem no kissanji angolano. Foram esses africanos que lançaram as bases da cultura candombe presente nos dois países e os movimentos do candombe rio platense constituem a célula estaminal do tango, símbolo cultural mais facilmente associado à Argentina. O tango afroportenho de Buenos Aires difere do cubano tango congo, assim como da versão moderna do tango mas a sua raiz africana é inegável como mostra a ilustração de 1882 abaixo.

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“Do Congo ao Tango” de Leonardo A. M. Pereira

O icónico músico mexicano Carlos Santana disse uma vez que “a música que chamam de latina ou hispânica é na verdade africana. Por isso, os negros têm que receber os louros”, certamente é uma simplificação mas não é muito longe da verdade e não é pretensão nenhuma os angolanos reclamarem uma quota de influência significativa na formação da cultura musical não apenas da América Latina como também da música afro-americana do norte do continente americano e da música afro-caribenha uma vez que muitos dos instrumentos e ritmos que estão na base da música crioula do Novo Mundo foram levados para lá pelo filhos das vilas costeiras e interior da Angola contemporânea embarcados nos portos de Luanda, Benguela, Kakongo, Mpinda, Ambriz e Angra do Negro.

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*[Tradução]

Os instrumentos com forma de cabaça que eventualmente transformaram-se no banjo nos EUA foram desenvolvidos por escravos na maior parte no sul dos Estados Unidos e Appalachia, e pelo processo tiveram diferentes designações como bangie, bangoe, banjar, banjil banza, banjer e banjar.

Outra teoria considera a palavra do Quimbundo (ou Kimbundu) m’banza, que significa cidade ou vila, como outra possível fonte da palavra banjo. Quimbundo é a língua falada por um dos maiores grupos étnicos da moderna Angola. Quando os colonizadores portugueses e os proprietários de escravos norte-americanos começaram a chamar o instrumento banjo, eles podem ter sido influenciados pela palavra m’banza. Poderão igualmente ter sido influenciados pela palavra banzo, que os escravos brasileiros geraram como uma expressão da dor que sentiam por serem mantidos em cativeiro. Curiosamente, escravos brasileiros tipicamente expressavam banzo quando tocavam banjo. A palavra banzo também pode ter originado da palavra m’banza.

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** [sobre “congo” antigo e actual] Vale recordar que o antigo Reino do Kongo não deve ser confundido com a R.D. Congo ou com a República do Congo (Brazzaville) e é uma confusão muitas vezes feita com as referências à “Congo” (ou “Kongo, “congo”, “conga”, “congada”, etc.) que aparecem na história (e presente) do Novo Mundo e da África pré-conferência de Berlin uma vez que o Reino do Kongo era centrado em Angola e, embora fossem muitas vezes catalogados como “congos” escravos originários do Reino do Loango (Congo Brazzaville) e à norte do Lago Malebo  (actual R.D. Congo) a grande maioria dos “congos” levados para o novo mundo não só embarcaram de portos na costa da actual Angola como foram capturados em territórios que hoje fazem parte de Angola. Assim, sendo uma simplificação, chamar os escravos congos de angolanos olhando para as fronteiras actuais não é nenhum erro grosseiro até mesmo porque segundo estimativas de Nathan Nunn Angola exportou para o Novo Mundo 4,2x mais escravos que a RDC e o Congo combinados