Namibe, Cecil Rhodes, descolonização e o Barão de Moçâmedes

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Cecil Rhodes é uma das mais visíveis figuras da história recente de África e um dos ícones do imperialismo britânico. O empresário, político e colonialista que nasceu em Inglaterra fundou a empresa mineira De Beers com Charles Rudd e tornou-se no fim do século XIX num dos homens mais ricos do mundo. Rhodes foi primeiro-ministro da Colónia do Cabo e usou o seu dinheiro para perseguir o sonho de expandir a presença britânica pelo mundo começando pelo sul de África onde criou a Rodésia no território que hoje é o Zimbabwe que passou à Rodésia do Sul depois da fundação de outro protectorado britânico a norte com o nome Rodésia do Norte, hoje Zâmbia. Como o nome indica, Rodésia deriva do sobrenome de Cecil John Rhodes (Rhodesia em inglês) mas o fim do colonialismo ditou o fim desta homenagem toponímica, não simplesmente por pueril fervor revolucionário mas sobretudo pelo lado tenebroso da história de Cecil Rhodes.

Cecil Rhodes defendia a superioridade dos europeus (sobretudo dos britânicos) e considerava os africanos bárbaros, no seu consulado como líder executivo da Colónia do Cabo esforçou-se na implementação do Glen Grey Act que forçou a saída de populações africanas das suas terras e procurava forçar os homens xhosa a trabalhar nas propriedades comerciais de europeus na região do Cabo Oriental. A implementação desta política que tem uma base filosófica racista implicava a utilização de métodos violentos e humilhantes cuja aceitabilidade nas elites coloniais da época chocaria qualquer pessoa com bom senso nos dias de hoje. A mudança do mundo obrigou o fim do nome Rodésia e os zimbabweanos resolveram homenagear o Grande Zimbabwe para baptizar o seu país enquanto que os zambianos homenagearam o rio Zambeze (“rio de Deus”).

Em Angola, o fim do domínio colonial português em 1975 ditou a alteração do nome de várias localidades e ruas e até da grafia de algumas localidades passando a reaparecer o K no lugar de C e sendo privilegiado o W em detrimento de U a luz das convenções para as línguas africanas que precederam o aportuguesamento da toponímia e de palavras africanas. A alteração dos nomes era vista como uma forma de marcar a vitória pela a independência e como afirmação da identidade africana dos angolanos independentes há muito oprimida institucionalmente pelo colonialismo, este era também um dos objectivos de movimentos como “Vamos Descobrir Angola” onde participaram figuras como Viriato da Cruz, António Jacinto e Luandino Vieira. Contudo, recentemente o Ministério da Administração do Território (MAT) oficializou o re-aportuguesamento dos nomes das localidades (e alguns rios) angolanos em perfeito contraste com os ideais de outrora.

Com efeito, o MAT pretende “deskapalizar” o nosso mapa e assim Kuando Kubango dá lugar à Cuando Cubango e as províncias separadas pelo rio que deu nome à nossa moeda passam a ser Cuanza Sul e Cuanza Norte (aparentemente a moeda mantém o nome Kwanza). Mas uma das mais espectaculares curiosidades da recente alteração toponímica promovida pelo MAT foi o reaparecimento de Moçâmedes no mapa de Angola, regressando assim a cidade do Namibe ao nome que ostentava no período colonial.

O nome Moçâmedes é uma homenagem ao antigo governador-geral de Angola José de Almeida e Vasconcelos Soveral e Carvalho, o Barão de Moçâmedes (ou Mossâmedes). Quando ordenou a exploração de terras à sul de Benguela em 1785, o Barão despachou o tenente-coronel Luís Cândido Cordeiro Pinheiro Furtado e o sargento-mor Gregório José Mendes e quando chegou à Angra do Negro – o nome pelo qual os portugueses conheciam a zona do porto do Namibe por ser um local de embarcação de escravos – rebaptizou o local como Porto de Moçâmedes em homenagem a José de Almeida e Vasconcelos.

José de Almeida e Vasconcelos que antes de cumprir a missão em Angola foi um capitão-mor de sucesso na capitania de Goiás no Brasil, para onde foi enviado pelo Marquês de Pombal, chegou a Angola em 1784 e tinha entre as suas prioridades retomar o controlo metropolitano do comércio de escravos e das receitas aduaneiras inerentes ao comércio de pessoas que estava a ser dominado por comerciantes baseados no Brasil, ao Barão foi requerida a imposição de barreiras à navios brasileiros em favor dos navios oriundos de Portugal mas cedo percebeu que a sua missão poderia comprometer a dinâmica económica da colónia uma vez que a implementação de medidas limitativas da actividade dos comerciantes brasileiros poderia afectar o volume de trocas e, consequentemente, as receitas aduaneiras da colónia. Assim, o governador-geral tentou uma abordagem mais flexível das instruções que recebeu da metrópole e entre 1780 e 1790 (José de Almeida e Vasconcelos governou entre 1784 e 1790) o tráfico de escravos atingiu níveis recorde na colónia como contou Joseph Calder Miller no livro “Way of Death: Merchant Capitalism and the Angolan Slave Trade, 1730-1830”

Contudo, sob seu comando, foram reorganizadas as feiras no interior destinadas ao comércio de bens e pessoas, foi reformulada  a máquina burocrática da colónia e foram posteriormente impostas restrições à importação de produtos ingleses que os brasileiros usavam nas suas trocas com o intuito de proteger a da produção portuguesa. Terão sido estes os maiores feitos do consulado de José de Almeida e Vasconcelos como governador-geral em Angola.

Assim, retomar o nome de Moçâmedes (que curiosamente nunca abandonou os caminhos-de-ferro) é efectivamente homenagear um servidor diligente do colonialismo. Sendo certo que a tolerância ao comércio de pessoas na época não é comparável com que vivemos hoje e que o Barão de Moçâmedes é amplamente considerado como um servidor público de qualidade pelos serviços prestados para o império português, a causa que serviu jogou em muitos aspectos contra a causa dos povos de Angola.

Cecil Rhodes continua presente na toponímia da África Austral apesar do combate ao seu legado ter-se iniciado nos anos 1950 com protestos de Afrikaners e ainda hoje largas franjas da sociedade sul-africana, com maior expressão para os negros, pedem a eliminação de todas as referências ao seu nome e exigem a retirada das suas estátuas como já o fez a University of Cape Town. O movimento #RhodesMustFall é um dos rostos do que na África do Sul chamam de “descolonização da universidade” que visa retirar traços de práticas negativas do antigo regime que prevalecem no presente. Por outras palavras, a sul de Angola é quase impossível pensar-se numa “recolonização toponímica” como promoveu o MAT, que na minha modesta opinião é desnecessária e vazia de razão.

Com o regresso ao nome colonial, Moçâmedes – salva melhor informação – passa a ser a única capital de província angolana cujo nome homenageia uma pessoa, curiosamente uma pessoa ligada à administração colonial em pleno período de vigência do comércio transatlântico de escravos, a principal actividade comercial e principal fonte de receitas para administração colonial em Angola. A vila costeira no sul de Angola passou a ser conhecida como Moçâmedes (Mossâmedes) unicamente porque o administrador colonial que ostentava o título nobiliárquico de Barão de Moçâmedes, recém chegado à Angola ordenou uma missão exploratória à região e não necessariamente por algum feito especial do Barão de Moçâmedes que na altura em que se realizou a missão estava em solo africano há menos de um ano, depois de uma experiência governativa na Capitania de Goiás, hoje um estado brasileiro que tem um município com o nome Mossâmedes, antes Aldeia São José e rebaptizada pelo Barão com o nome de São José de Mossâmedes, de má memória para os índios ali escravizados no âmbito de uma política de integração da população autóctone na vida económica e social da capitania.

Pelas questões apresentadas acima, fica a ideia que a decisão de passar o nome da cidade do Namibe para Moçâmedes foi baseada em informação frágil uma vez que representa efectivamente uma homenagem à um homem cujas acções, por iniciativa própria ou por inerência das funções que desempenhava, o desqualificam para qualquer tipo de homenagem toponímica na Angola de hoje. Para já, parece ser um caso arrumado mas espero que um dia seja corrigido.

Cabinda, a formação de Angola e a desigualdade

Se for uma autonomia, pode ser boa para Cabinda; uma independência também não é má, uma vez que, se uns podem ser independentes, os cabindas também podem sê-lo e não vale vir aqui com histórias de separatismos, porque até 1956 Cabinda não era Angola. Enquanto os portugueses colonizaram o território que se chama Angola, Cabinda foi um protectorado. Havia outras potências lá: os holandeses, os belgas, os franceses, etc… etc… e, se os cabindas, por exemplo, têm escolhido os franceses, os belgas ou os alemães, aquele território nunca teria sido parte de Angola. Aliás, Cabinda era considerado Congo Português. Se olhar para a Constituição de 1933, que vigorou até à altura do Golpe de Estado de 25 de Abril, está lá bem claro. Aquilo que é o território de Cabinda é completamente diferente do território de Angola.

            Raúl Danda in “Agora”

Cabinda foi de facto um protectorado português desde 1885 mas em termos administrativos foi governada como uma extensão de Angola (colónia) pouco tempo depois como parte do recém criado “distrito do Congo” e esta administração de complementaridade estendia-se até às ilhas de São Tomé e Príncipe. Dizer que os cabindas poderiam escolher o seu lado não é totalmente fantasioso uma vez que o território preservou notável independência de poderes europeus até a segunda parte do século XIX. Sendo verdade que a presença de outros europeus em Cabinda é antiga, nomeadamente comerciantes holandeses, britânicos e sobretudo franceses que se fizeram presente não apenas com comerciantes mas também com missionários que fundaram organizações católicas em Cabinda no século XIX já num contexto de zona de influência disputada entre franceses e a coroa portuguesa, a assinatura do Tratado de Simulambuco que foi o início do fim da independência dos territórios que constituem Cabinda terá nascido da confluência de interesses de Portugal e dos clãs dominantes em Cabinda que se foram solidificando no fim da primeira metade do século XIX com o comércio de escravos para o Brasil que passou a ser alvo das brigadas anti-comércio de escravos da Inglaterra.

O território que hoje ocupa a província de Cabinda é essencialmente formado pelos territórios outrora ocupados pelos antigos reinos do Ngoyo, Kakongo e parte do reino/província de Mayombe, estes territórios ao longo da sua história terão alternado entre a zona de influência (ou vassalagem) dos vizinhos Reino do Loango (actualmente República do Congo) e Reino do Kongo, com sede em Mbanza Congo e que na era colonial passou a ser referido como Congo Português a que se refere Raúl Danda na entrevista ao jornal A Capital.

A ligação da Europa à costa ocidental africana foi dominada pelos portugueses até ao século XVII e nunca houve ocupação de Cabinda por outra potência colonial que não Portugal (após 1885, não muito diferente do que ocorreu com reinos/estados no leste de Angola), apesar da longa relação comercial com mercadores franceses, sobretudo no período de forte procura por escravos na colónia de Santo Domingo (hoje, Haiti). Ademais, o interesse que despertava a costa do Loango e outros territórios que Portugal defendia como seus ao longo da costa da região centro-sul de África levou Portugal a pedir uma grande conferência de clarificação e assim deu-se a realização da conferência de Berlim no fim do século XIX (1884-1885) solicitada por Portugal e organizada por Otto von Bismark da Prússia (Alemanha) porque Portugal sentia que os territórios que ocupou em África estavam ameaçados pelas pretensões de outras potências europeias. As disputas sobre a soberania na zona da bacia do Congo são a génese da conferência que culminou com a divisão de África por zonas de influência de potências europeias. Portugal reagia sobretudo às pretensões de França que patrocinou as explorações na África Central de Savorgnan Brazza (1882) e do Rei Leopoldo que presidia a Association internationale du Congo (fundada em 1879 como Association Internationale Africaine) que contava com os serviços do explorador inglês Henry Morton Stanley. Em Berlim ficou decidido que Cabinda era responsabilidade de Portugal, assim como o Reino do Kongo e a Colónia de Angola (que anos mais tarde fundiram-se numa única colónia dando origem ao território actual de Angola).

O Congo Português  na sua versão original, não se resumia a Cabinda mas sim a toda parte norte de Angola. Quando os franceses e belgas resolveram chamar de Congo as suas colónias na África Central a região passou a ter três Congos: o português, o francês e o belga. O nome Congo (ou Kongo) é originalmente de Angola (Reino do Kongo) que era de facto o reino africano com maior relação com a Europa e um dos principais fornecedores de escravos durante todo período do comércio de escravos do Atlântico (Angola como um todo, foi o país que mais escravos forneceu ao Novo Mundo). O Reino do Kongo, sedeado na Angola actual, tornou-se num reino católico mesmo antes de Colombo chegar à América, o rei Nzinga-a-Nkuwu foi baptizado em 1491 e adoptou o nome de João I Nzinga-a-Nkunwu.

Apesar do reino do Kongo no seu apogeu estender-se até ao sul do Gabão, o território hoje ocupado pelo Congo Brazzavile é – essencialmente – o que era o Reino do Loango e apenas uma parte do sul da actual República Democrática do Congo era integrante do Reino do Kongo que era centrado em Angola onde tinha a capital Mbanza Congo (São Salvador do Congo) e as principais zonas de influência como o condado do Soyo, Luanda e Nambu-a-Ngongo. Por exemplo, os escravos referidos no Novo Mundo como “congos” entre os séculos XV e XIX eram essencialmente angolanos do Reino do Kongo “exportados” dos portos Mpinda no Soyo (Santo António do Congo), Kakongo  e Ngoyo (ambos no que é hoje é Cabinda, sendo que muitos escravos foram mesmo identificados como “cabinda”), Ambriz e Luanda, os tais que chegaram aos milhares no Brasil, Colômbia, Cuba, Porto Rico, Estados Unidos, México, Hispaniola (Dominicana e Haiti) e outras terras ocupadas por europeus no Novo Mundo.

Os portugueses chegaram a foz do rio Zaire (ou Rio Congo) em 1483 mas a colonização efectiva do território que é hoje Angola começou apenas com Paulo Dias de Novais no último quarto do século XVI e desde o início da criação da colónia de Angola sempre existiu Angola e Reino do Kongo de forma separada até 1914. O Reino do Kongo tornou-se vassalo do reino de Portugal apenas em 1859.

Para nós que crescemos sob o princípio de “um só povo, uma só nação” parece um dado que sempre fomos “uma só nação” ainda que existissem dúvidas sobre sermos “um só povo”, mas a junção dos territórios portugueses nesta região sob um único nome (Angola) é muito recente (100 anos) e não é exclusivo de Cabinda (anos 1950 como disse Raúl Danda), o que não exclui longos anos de história comum entre os territórios que inclui São Tomé e Príncipe que foi povoado significativamente por povos vindos de Angola (incluindo muitos cabindas), aliás, a Santa Sé continua a agrupar Angola e São Tomé na mesma Conferência Episcopal.

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O enclave de Cabinda só é um enclave porque 1885 em Berlim o rei Leopold II da Bélgica conseguiu que lhe fosse cedida uma saída para o mar que separou Cabinda da actual província do Zaire. Cabinda é hoje um enclave por uma decisão diplomática tomada há 130 anos num contexto muito particular e não por diferenças culturais irreconciliáveis ou outra razão qualquer. Em termos de diversidade cultural este país não é diferente de grande parte dos países africanos que são verdadeiras mantas de retalhos que com diferentes níveis de sucesso vão conseguindo viver debaixo da mesma bandeira (ou não!).

Tudo isto para dizer que a história colonial semelhante dos povos que habitam Angola, sendo o principal legado a língua portuguesa, não pode ser ignorada ou diminuída para que se construa o caminho para uma possível desintegração territorial. As reclamações por melhores condições de vida das pessoas de Cabinda são legítimas, maior autonomia na gestão local é igualmente uma exigência legítima mas independência não tem justificação para mim. Ademais, é importante lembrar que o país inteiro vive com grandes dificuldades apesar do espaço desproporcional que Luanda ocupa na vida económica do país. Comparativamente, em termos económicos, Cabinda não é das piores províncias mas isto não invalida o facto de que a província deveria ser servida de melhores infraestruturas assim como a província do Zaire que até é a que mais exporta petróleo em Angola. Os números dizem que a zona norte, em que se insere Cabinda, é das menos avançadas economicamente mas isto deve-se sobretudo aos níveis de pobreza mais acentuados das outras províncias que integram a região norte: Zaire e Uíge.  No Inquérito Integrado Sobre Bem-Estar da População (IBEP) realizado pelo INE há alguns anos, a região norte apresentou uma receita média mensal por pessoa vergonhosamente baixa, 6.711 kwanzas, que compara com os 12.311 kwanzas de Luanda que não são em si grandes números mas são muito acima da região norte e da segunda região mais rica, a região sul (Huíla, Namibe e Cunene) com 9.187 kwanzas. Na verdade, apenas a região este (Lunda Norte, Lunda Sul, Moxico e Kuando Kubango) apresenta números piores que a região norte (4.830 kwanzas).

Concordo plenamente com Raúl Danda quando pede melhor governação. Uma governação mais justa, equilibrada e eficiente melhoraria a vida de todos os angolanos, de Cabinda a ponta do Kuando Kubango porque por este extenso território os problemas são comuns e devem ser vistos desta forma, apesar de existirem assimetrias significativas entre algumas províncias nada nos diz que uma nova abordagem na governação não poderá alterar o quadro para todos sem necessidade de desintegração territorial.