Portugal e a celebração no presente de um passado complexo

Portugal é um dos países mais antigos da Europa, o continente que se convencionou chamar de “velho mundo” em contraste com o “novo mundo” que é precisamente uma perspectiva Europeia e está intrinsecamente ligada a história de Portugal e a parte desta história mais celebrada pelos portugueses.

Em Portugal, 10 de Junho é o “Dia de Portugal e das comunidades portuguesas” e neste dia para além de se celebrar os portugueses espalhados pelo mundo, é um dia para dar glórias aos protagonistas da história de Portugal, em particular os destacados no Padrão dos Descobrimentos em Lisboa.

Padrão dos Descobrimentos, Lisboa – Portugal (foto de Rui Sérgio Afonso) 

Os navegadores que no século XV iniciaram a empreitada de viagens de exploração para “novos mundos” em nome do Reino de Portugal alteraram a história daquele pequeno território e do mundo. Os sonhos iniciados no sul de Portugal acabaram por ser a génese da colonização brutal de outras regiões do mundo, em particular as Américas e África, sendo que o continente berço serviu de fonte primária de mão-de-obra escravizada para materialização do projecto colonial europeu. O facto da colonização ser indissociável da violência é que suporta nos dias de hoje vários movimentos que defendem a não celebração dos navegadores portugueses e de qualquer resultado do longo processo de colonização europeia.

Na minha perspectiva, a história serve basicamente para os homens entenderem o seu passado, como este pode explicar o presente e impactar o futuro e por esta razão deve ser contada por historiadores sem compromissos com agendas paralelas. Por outro lado, defendo que a história não deve ser usada como um palco para resolução de contendas do presente. Contudo, compreendo que a história pode ser a base para correcção de erros ou compensação de injustiças desde que a “emenda” seja realizável e com benefícios superiores aos custos globais para a sociedade.

Infelizmente, a história é frequentemente usada para encaixar diferentes narrativas de agendas do presente o que tem sido problemático em várias ocasiões, desde versões monodimensionais que mais se assemelham a fábulas de heróis e vilões à simplificações de realidades complexas sem qualquer contextualização que acabam por levar as pessoas a julgar o passado com olhos do presente.

O movimento dos descobrimentos, na terminologia da historiografia tradicional portuguesa, tem uma inegável base empreendedora suportada por liderança ambiciosa, habilidade negocial, coragem, tecnologia e orientação científica. Quando o Infante Dom Henrique se propôs a liderar um movimento de navegadores para revelar aos portugueses mundos que desconheciam, tinha presente que seria necessário envolver os melhores homens (incluindo a Ordem de Cristo) e a melhor tecnologia de construção naval disponível e a consistência das viagens acabou por fazer avançar ainda mais a tecnologia, desde meios e mecanismos de navegação à cartografia e astronomia, tudo isto é fonte de inegável orgulho para o povo que os exploradores representavam e cuja epopeia Camões magistralmente relatou nos “Lusíadas”, obra maior da poesia portuguesa, inspirada em factos mas naturalmente carregada de ficção.

A ficção glorificadora costuma ser uma das fontes do problema com a celebração da história dos navegadores e da colonização portuguesa porque muitas das vezes carece de contextualização e acaba por chocar sensibilidades numa sociedade moderna mais diversa. Neste campo, o destaque particular vai para o papel-chave de Portugal no desenvolvimento do comércio transatlântico de escravos. Como é conhecimento geral, os portugueses não inventaram a exploração escrava, que era um elemento presente na generalidade das sociedades da época, com diferentes graus de violência e distintos processos de escravização. No entanto, o comércio transatlântico na base da exploração industrial moderna da mão-de-obra escrava foi desenvolvido primariamente por Portugal que entre o final do século XV e meados do século XVII foi praticamente a única potência marítima europeia a transportar sistematicamente pessoas escravizadas de África para o sul da Europa e, sobretudo, para as Américas em embarcações de grande porte, o que se poderia considerar uma evolução do tráfico transariano liderado por comerciantes da península arábica que devastou as populações a norte da África Central.

A importância de Portugal no infame comércio era de tal modo central que os holandeses quando ocuparam partes do norte do Brasil para exploração agrícola em grande escala, complementaram a conquista do “modelo português” com a ocupação de feitorias portuguesas na costa do actual território angolano, com destaque para Benguela e – sobretudo – Luanda que já era na altura o maior porto de embarque de escravos para as Américas. As outras potências europeias entraram activamente no comércio de escravos nas rotas transatlânticas com mais de 100 anos de atraso em relação a Portugal que era, naturalmente, a referência para o modelo baseado no engajamento com reinos africanos, estabelecimento de bases na costa de África e mecanismos de acesso à mão-de-obra escrava para venda aos colonos nas Américas que passava pelo aproveitamento de diferenças políticas, fomento de guerras, captura e manipulação de lideranças locais e escravização como punição judicial nos territórios sob seu controlo.

O processo de escravização resultou na exploração extrema dos africanos, que desumanizados eram considerados como mercadoria, de tal forma que estatisticamente eram registados como produto exportado, naquele que foi um dos maiores e mais violentos processos de migração forçada da história da humanidade e era apenas um dos pilares da colonização europeia das Américas e de África, que incluiu genocídios e subjugação violenta durante séculos de pessoas etnicamente diferentes, factor base da construção e estruturação do racismo que até hoje se faz sentir na maior parte das sociedades.

Infelizmente, a história da humanidade está repleta de episódios em que campos opostos se cruzam e objectivos distintos resultam em conflitos violentos que sustentam a construção de lendas de um lado e na secundarização e humilhação dos vencidos. Esta lógica de glorificação de vencedores de contendas para construção da identidade das nações é comum na generalidade das sociedades, desde vikings do norte da Europa que massacraram populações nas ilhas britânicas e na Europa continental aos mongóis, romanos e otomanos que conquistaram vastos territórios de espada em punho.

A dificuldade em conciliar esta lógica antiga com o aceitável nas sociedades modernas leva à várias posições que, na minha modesta opinião, são problemáticas. Se por um lado, existem indivíduos que entendem que os heróis do passado devem ser abertamente celebrados enquanto escolhem deliberadamente destacar os seus feitos omitindo as externalidades negativas das suas acções, existe por outro lado uma posição igualmente maximalista que defende a nulificação de qualquer feito cujo protagonista esteve factualmente envolvido em acções que violentaram grupos de pessoas, sobretudo, as vítimas de migração forçada para escravização e os autóctones violentados em processos de colonização.

O grupo que se opõe a qualquer tipo de celebração dos “descobrimentos portugueses” justifica sempre que deste processo resultou a destruição de um sem número de comunidades e a separação de famílias pela “mercadorização” de seres humanos oficialmente desumanizados com efeitos nas sociedades actuais. Este grupo entende que (i) os avanços tecnológicos, (ii) vitórias impensáveis contra os desafios impostos pelo mar ou (iii) qualquer troca cultural que independentemente da circunstância contribuiu para criação de um novo mundo não são grandes o suficiente para serem celebradas sobre o sofrimento de um sem número de vítimas da globalização iniciada pelos portugueses.

Eu sou natural de Luanda, local do maior ponto de saída de escravos africanos para as Américas e tenho perfeita noção do sofrimento associado a este processo, em particular no outro lado do Atlântico, mas ainda assim penso que é excessivo exigir aos portugueses que não celebrem de forma alguma os protagonistas do movimento dos navegadores que em nome de Portugal ofereceram àquela nação “novos mundos”, a semelhança dos conquistadores do passado que com violência também criaram impérios igualmente celebrados. Contudo, defendo que a fotografia a apresentar tem que incluir mais destaque a todo o processo de expansão português, incluindo a ocupação violenta e o papel de destaque que Portugal teve no comércio transatlântico de escravos.

A história dos povos está repleta destas contradições que aos olhos da sociedade moderna e sem a devida contextualização tornam o passado demasiado pesado para ser celebrado. Em Abril de 2018, escrevi sobre a participação da Rainha Njinga Mbandi no comércio de escravos e porquê que era errado reduzir a soberana do Ndongo e Matamba a uma mera comerciante de pessoas precisamente porque a história sem contexto está destinada a interpretações problemáticas e, nestes casos em particular, a simplificação não contribui para construção de uma posição mais equilibrada.

A contextualização permite-nos, por exemplo, entender as diferenças entre os processos de escravização e o modelo de exploração de escravos nas duas costas do Atlântico e como a procura por escravos africanos para colonização das Américas afectou a política nos reinos africanos. Sendo factual que o nível de tolerância à exploração de seres humanos evoluiu de forma regressiva ao longo de séculos, é entendimento geral que a escravização sempre foi vista como um castigo tanto para derrotados de guerras como punição judicial, extensivamente explorada pelas autoridades imperiais portuguesas da época.

Na questão do passado português, na minha modesta opinião, a abordagem mais equilibrada é dificultada por um duelo de extremos que por um lado tem quem venda a versão de um império pacífico que cresceu na base da diplomacia e engenho e por outro lado temos quem reduz os exploradores a piratas e desclassifica qualquer outra acção que tenha resultado do movimento de exploradores. Tendo presente que os extremos dos dois lados acabam por causar ruído numa conversa que se quer balanceada, a versão glorificadora dos “descobrimentos” temperada com o revisionismo histórico do luso-tropicalismo que vende a versão de um colonizador integrador e criador de sociedades multi-étnicas e quase igualitárias é particularmente problemática porque encontra na maior parte das vezes a oposição tanto da ala que defende a demolição do monumento dos descobrimentos como de quem busca uma abordagem equilibrada do passado.

O cruzamento da história que coloca, por exemplo, angolanos e portugueses em lados opostos na maior parte da história, tem também impacto nas reacções de certas posições sobre eventos da história partilhada, provocando a natural hipersensibilidade de protagonistas da mesma história mas com interesses quase sempre dissonantes. Contudo, o passado problemático é um traço comum para maior parte dos países porque, regra geral, são celebrados líderes conquistadores que na defesa dos seus interesses acabam por atropelar interesses de terceiros e a celebração das suas vitórias naturalmente representa um período traumático do outro lado.

A história quando vista como história, com a maior neutralidade possível e com a noção do tempo em que se desenrolaram os acontecimentos, não é fonte de polémicas. A necessidade quase humana de buscar no passado heróis para celebrar no presente acaba por alimentar a construção de narrativas que sobrevalorizam preferências pessoais e do presente em detrimento da razoabilidade e maturidade necessária para usarmos a história como um veículo de conhecimento que nos ajuda a compreender o presente e não como uma massa manipulável a medida de interesses pessoais.

Em suma, o conceito de celebração do passado é inultrapassável mas é pela sua natureza, problemático. As visões maximalistas que defendem uma versão cor-de-rosa do passado e a visão que defende a não contextualização para análise de acontecimentos de épocas que nos precederam não são de forma alguma o caminho. O que desejo é que Portugal possa celebrar o seu passado sem subordinar a parte menos positiva aos pontos que considera áureos e que todos nós possamos ter maturidade para entender todas as camadas da história e o momento em que certas decisões e acções foram tomadas.

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