A economia angolana 50 anos depois | A nostalgia e a busca pelo passado glorioso [Parte 3]

Luanda, Angola

O ser humano tipicamente carrega consigo memórias traumáticas e excepcionalmente positivas. No caso da economia, as memórias de momentos de crescimento económico costumam deixar marcas profundas. Ainda hoje, é comum encontrarmos em Angola gente a falar de forma nostálgica sobre a diversidade e pujança da economia colonial que é na verdade uma realidade que começou a tomar forma apenas após a segunda guerra mundial, sobretudo a parte da diversidade.

O mesmo sentimento nostálgico é visível na forma que a maior parte das pessoas fala sobre a década de 2000 e início da década de 2010 com o alcance da paz, o crescimento económico vertiginoso e o famoso “câmbio de 10”, a taxa de câmbio artificial que o momento financeiro permitia e convidava os angolanos a consumir desalmadamente e como sabemos, consumir kuya.

O início do século XXI (2000-2015) está relativamente próximo para os dias de hoje assim como a década de 1960 é uma lembrança próxima para quem em 1975 assistiu a um corte abrupto com o passado e na década de 1980, para além da guerra civil, começou-se a assistir à degradação do tecido produtivo em Angola e a não realização de expectativas sobre ganhos sociais materiais e generalizados.

Contudo, muitos anos precedentes destes dois períodos “gloriosos” (1955-1970 e 2000-2015) foram marcados por grandes planos com resultados pouco satisfatórios ou agridoces. Por exemplo, o ímpeto desenvolvimentista de Norton de Matos nos anos 1920 foi suportado por crédito que tornou a Província de Angola mais vulnerável e acabou por dar lugar a anos de anemia económica no período entre guerras, apesar do legado das infra-estruturas ter contribuindo para o período de crescimento retomado na década de 1950.

De igual modo, os anos de forte crescimento económico após a paz de 2002 ajudaram os angolanos a esquecer do período difícil que teve início com o fim do colonialismo com anos de destruição da economia, sobretudo, pela combinação da economia planificada com a guerra civil que impôs extremas limitações a movimentação de pessoas e bens e inutilizou parte importante das infra-estruturas existentes.

Entre 1975 e 2002 a economia angolana assistiu ao declínio do seu tecido industrial que progressivamente viu desaparecer a agro-indústria, as fábricas têxteis, a transformação mais complexa de madeira, produção de pneus, a montagem de motorizadas e bicicletas, etc. Praticamente toda indústria transformadora desapareceu e ficaram com capacidade limitada algumas excepções como a produção de cimento e bebidas, sobretudo a cerveja.

A indústria extractiva manteve alguma pujança, sobretudo o petróleo, mas também os diamantes que suportaram a economia da guerra com complemento de comerciantes que asseguravam o fornecimento de bens de primeira necessidade importados para consumo nos principais centros com acesso pelo mar e com desafiante distribuição para o interior. O desaparecimento da capacidade produtiva (agrícola e industrial) construída nas últimas décadas do colonialismo criou a oportunidade para comerciantes estrangeiros que se instalaram em Angola e desenvolveram a máquina importadora que continua a ocupar um lugar de relevo na nossa economia apesar da recuperação progressiva da produção agrícola e industrial dos últimos anos, parte desta suportada por empresários que no passado se dedicavam exclusivamente a importação de bens para consumo final.

Malanje, Angola

Com a transição para uma economia mais aberta iniciada em parte em 1988 com os acordos de Nova Iorque, a importação de bens de primeira necessidade passou a estar cada vez mais dependente de empresários (normalmente associados a classe política baseada em Luanda) que eram primeiramente portugueses e libaneses tendo emergido mais tarde os indianos, eritreus, oeste-africanos e, ainda mais recentemente, os chineses. A classe empresarial nascida da necessidade de importar tudo para colmatar a inexistência de produção doméstica conta hoje com alguns dos principais actores de investimentos na agricultura e indústria, dando corpo ao sonho de regresso ao “passado industrial glorioso” que muitas das vezes é identificável nos discursos políticos e de empresários com memória do período pré-independência.

A busca pelo passado glorioso, mais ou menos explicitamente, tem sido o cavalo de batalha tanto do sector público como o do privado e, muitas das vezes, o passado que se busca são os longínquos anos 1960 que até hoje continuam a ser vistos como o pico da diversidade económica apesar do regime político impor extremas restrições ao progresso da maioria para benefício desigual da minoria.

Luanda, Angola

Como é comum na classe política dirigente em Angola, que desde 1975 tem sido o MPLA quase de forma exclusiva, os planos são caracterizados por extremo optimismo, execução deficiente e inexplicável desprezo pelo poder da formação consequente. Entre erros e alguns acertos, a economia nacional vai tentando libertar-se da dependência do petróleo virando-se para produção agro-pecuária e indústria mais voltada para substituição de importações e sem grande complexidade e muito pouca inovação, o que na verdade seria um caminho surpreendente se considerarmos que sistematicamente o país tem estado a investir muito abaixo do necessário na formação dos seus quadros.

Em 1975 os angolanos receberam um país com número reduzido de quadros, mas com um conjunto de infra-estruturas bastante decente para construção de um caminho de prosperidade económica caso tivesse sido evitada a guerra fratricida e a escolha de orientação política e económica tivesse sido diferente, designadamente mais inclusiva e menos centralizadora.

Porto Amboim (Kwanza-Sul), Angola

O principal empecilho ao progresso económico e social abrangente em Angola continua a ser mais um tema político do que económico. Contudo, há sinais de termos uma classe política mais aberta aos contributos dos “civis” mas continua a ser necessário criar mais espaço para os empreendedores operarem e impõem-se a retracção do Estado na direcção da economia enquanto se assume um papel de principal facilitador para realização da actividade económica privada. O futuro glorioso continua a ser uma possibilidade mas sem grandes mudanças na forma que estamos a construir a nação será impossível.

A economia angolana 50 anos depois | O que era pouco antes da independência [Parte 1]

Largo da Mutamba na década de 1960, Luanda

Os primeiros contactos entre portugueses e povos que séculos depois passaram a ser colectivamente conhecidos como angolanos, começaram em 1482 quando uma expedição comandada por Diogo Cão chegou a foz do rio Zaire no Soyo. A relação evoluiu ao longo dos anos tendo sido dominada nas primeiras décadas pela diplomacia entre os reinos de Portugal e do Congo, sendo que este acabou por ser absorvido pelo que se tornou na Colónia de Angola, período em que a relação entre os reinos já tinha passado a ser caracterizada pelo domínio indirecto e exploração. A colónia começou a sua longa consolidação em Janeiro de 1576 com a fundação de Luanda por Paulo Dias de Novais. Quase 400 anos depois, do dia 11 de Novembro de 1975 três movimentos que combateram com armas o colonialismo português declararam separadamente a independência de Angola.

Em Novembro de 2025 serão celebrados 50 anos de independência de Angola e com este artigo (primeiro de três), em jeito de reflexão, buscarei avaliar a evolução da economia de Angola nos últimos 75 anos, começando por apresentar uma fotografia do que era esta circunscrição 15 anos antes da independência e o que é o estado da economia angolana em 2025.

No final da década de 1940 e início da década de 1950 vários movimentos culturais e sociais começaram a politizar as suas intervenções públicas no que era na altura a colónia de Angola, advogando pela revisão das relações entre africanos e pessoas de origem europeia que persistentemente não evoluíam para um plano de igualdade de tratamento e oportunidade. A ausência de respostas das autoridades sedeadas em Luanda e Lisboa alimentaram o extremar das posições que culminou com o início da luta armada do período pós segunda guerra mundial.

O sector agrário, que na primeira metade do século XX experimentou um forte crescimento com sisal, algodão, café e outros produtos de exportação era igualmente palco para contínuos abusos contra trabalhadores rurais africanos e revelou-se num espaço fértil para reivindicações contra o poder colonial, sendo que o ano de 1961 acabou por ser o mais consequente com eventos que cumulativamente despoletaram a guerra pela independência de Angola, referida na historiografia portuguesa como “guerra colonial”. 

Em Janeiro de 1961 as reivindicações na Baixa de Cassange acabaram em massacre de milhares de produtores agrícolas que protestaram contra os preços baixos impostos pelo comprador único de algodão (COTONANG), mas no quarto dia do mês seguinte Luanda testemunhou uma revolta que buscava a libertação de presos políticos, em particular os condenados no “Processo dos 50”. Após dois meses com eventos explosivos em Malanje e Luanda as autoridades portuguesas foram surpreendidas por ataques violentos às fazendas no norte de Angola que tiveram início a 15 de Março e António de Oliveira Salazar ordenou uma resposta extrema e rápida com a frase “para Angola, rapidamente e em força”. 

Paralelamente a resposta militar aos pedidos de reforma e justiça das populações africanas, o governo metropolitano em Lisboa deu início a uma era de maior abertura ao investimento estrangeiro em indústrias-chave, incluindo a exploração e refinação de petróleo, e expandiu a produção agrícola e transformação de alimentos primários. O crescimento económico foi o resultado imediato e na década de 1960 Angola vivia em guerra mas experimentava igualmente a aceleração do desenvolvimento económico que seguia o mesmo padrão dos quatro séculos antecedentes: aumento da riqueza e melhoria da condição social da classe minoritária (europeus e brancos euro-descendentes) às expensas da maioria (africanos) que embora tenham registado melhorias sociais, continuavam em grande medida a ser tratados como cidadãos de segunda classe na sua própria terra, uma dinâmica que de forma alguma reduzia a aspiração de viver numa Angola independente do poder colonial e mais inclusiva.

Com efeito, a década de 1960 (como escrevi aqui em 2015) foi aquela em que a então colónia de Angola registou o maior crescimento no longo e transformador século XX com destaque para o crescimento exponencial da indústria extractiva que por ser intensiva em capital esteve refém da incapacidade financeira de Portugal e dos princípios do Acto Colonial de 1930 que priorizavam a produção de matérias-primas para alimentar as indústrias da metrópole e limitavam a importação de manufacturas e o investimento de países terceiros.

Fonte: “Pacto colonial e industrialização de Angola (anos 60-70)” de Adelino Torres

A economia herdada pelos movimentos independentistas, em particular o MPLA, que a meio da década de 1970 assumiu os destinos de Angola como país independente, começou a ser construída em 1960 e combinava um consolidado sector agrícola, indústria transformadora em expansão contínua e afirmação da indústria extractiva. Com os primeiros sinais na década de 1950, o país também experimentou na década de 1960 um boom imobiliário nas principais cidades como Luanda, Huambo (Nova Lisboa), Benguela e Lubango (Sá da Bandeira) que ajudou a sustentar o crescimento da banca e também de indústrias associadas a construção civil que beneficiou igualmente da expansão da rede de infra-estruturas.

O petróleo começou a assumir algum protagonismo no final da década de 1960, mas Angola conservava ainda um tecido produtivo diversificado com vários sectores em consolidação ou com produção em expansão como era o caso da agricultura, pescas, produção de bebidas e alimentos, tabaco, exploração florestal, papel e derivados, cimento, produtos químicos e o nascer de indústrias anteriormente bloqueadas para benefício da produção de Portugal como têxteis e calçados.

Fonte: “A evolução económica de Angola durante o segundo período colonial” de Nuno Valério e Maria Paula Fontoura

O fomento industrial em Angola da segunda metade do século XX resultou da necessidade de resposta a diferentes fenómenos, como o fim do condicionamento industrial na colónia que foi desenhado para proteger as indústrias da metrópole, mas acabou por ter um efeito nefasto na balança de pagamentos da colónia que levou à adopção de uma política de industrialização para substituição das importações. Com o eclodir da guerra a necessidade de aceleração do desenvolvimento e criação de emprego na colónia como contrabalanço das revindicações da maioria colocou o fomento industrial no centro da política colonial. Contudo, com a abordagem de substituição de importações, a indústria transformadora local servira essencialmente as necessidades internas uma vez que os bens primários continuaram a dominar as exportações, com crescimento exponencial do petróleo que em 1969 representava apenas 5% das exportações e na véspera da independência em 1974 já era responsável por 51% das exportações.

Fonte: “Pacto colonial e industrialização de Angola (anos 60-70)” de Adelino Torres

A característica de exportações dominadas por matérias-primas e quase sem qualquer produto transformado em Angola prevalece ainda hoje, com a agravante de ser quase tudo petróleo bruto como já acontecia 10 anos após a independência com mais 90% das exportações que resulta da combinação do aumento da produção de petróleo com a destruição quase absoluta da capacidade de produção agrícola orientada para a exportação como é o caso do café e do algodão. A produção agro-pecuária, pelas suas características é particularmente difícil de ser executada com sucesso em tempos de instabilidade e a combinação de centralismo político e guerra civil que se seguiram após a independência ditaram o declínio da generalidade da indústria transformadora angolana, com a excepção da produção de cerveja que manteve considerável resiliência ao longo de todo período pós-independência incluindo os anos de guerra.

Em resumo, Entre 1950 e 1960 a economia da Angola colonial experimentou alguma expansão com o aumento de exportações agrícolas e viu – na primeira parte da década de 1960 – o ritmo do crescimento acelerar com a adoptação de algumas políticas económicas mais liberais no seguimento do agudizar da luta contra o colonialismo e em 1973, apesar do crescimento da representatividade do petróleo nas exportações, a colónia tinha uma economia diversificada com indústria ligeira e pesada em consolidação e com maior robustez do sector financeiro e de seguros.  Apesar dos 14 anos de guerra, do ponto de vista económico, os guerrilheiros que deixaram Angola na primeira metade da década de 1960 encontraram em 1974 uma Angola melhor estruturada para construir prosperidade no pós-independência, mas como sabemos as infra-estruturas são apenas uma parte da equação que demanda muitas outras variáveis para que se alcance o resultado desejado e por melhor que seja o hardware o bom desempenho é função da qualidade do software que potencia a estrutura física. 

O paradoxo da perfeição

Os regimes autoritários caracterizam-se pelo controlo da comunicação e dedicam-se a apresentar sempre uma visão rosada dos factos ou uma narrativa positiva divorciada dos factos. Infelizmente continuamos a viver num regime não-livre, apesar de sermos formalmente uma democracia a nossa vivência e diferentes organizações que hierarquizam o nível de liberdade e democracia continuam a questionar quão democrática é a nossa nação.

A postura de adopção de uma realidade alternativa leva-nos muitas vezes a situação de conflito entre a versão adoptada e aquilo que realmente as pessoas vivem e até com dados oficiais de organismos públicos, como o “Inquérito de Despesas e Receitas” publicado pelo INE em 2020 (dados de 2018-2019) que indicavam que e famílias angolanas eram muito pobres como atestam os Kz 15,5 mil/pessoa por mês a nível nacional.

Se olharmos para a abordagem multimensional da pobreza (que vai para além da lógica material) os números são ainda mais graves com quase 90% da população rural a viver em situação de pobreza e estes números são também do INE (“Relatório Índice de Pobreza Multidimensional de Angola” publicado em Julho de 2020).

Apesar de frequentemente o presidente João Lourenço apresentar nos seus discursos e entrevistas vários sucessos registados ao longo da governação que lidera, a sensação de satisfação generalizada não é partilhada pela população e os números sobre a evolução da economia do país desde o final de 2017 não contam uma história rosada e este contraste entre o discurso dos governantes e a dura realidade dos governados é o que eu chamo de “paradoxo da perfeição”. Como sabemos, a melhor forma de medir a qualidade de uma governação é o impacto na vida das pessoas e quando temos uma classe governativa que se apresenta como perfeita e o nível de vida de quem governam está em degradação contínua a conclusão simples é que a perfeição projectada é paradoxal.

Todo o governo, naturalmente, investe sobretudo em comunicar feitos que considero positivos e procura não dar visibilidade aos resultados menos lustrosos ou desastrosos. Mas no nosso caso há uma acção constante em cobrir a realidade dura com uma ficção celestial que busca esconder dificuldades óbvias e substituí-las por maravilhas duvidosas.

A dissonância gritante entre as dificuldades crescentes e o discurso optimista do governo geram frustração numa população que entende que o seu grito de socorro é sistematicamente ignorado a tal ponto que deixa de acreditar nos mecanismos previstos no livro das regras (constituição) para influenciar pacificamente a mudança.

Os actos de vandalismo condenáveis que tiveram lugar no final de Julho (com epicentro em Luanda, mas com réplicas em Icolo e Bengo, Malanje e Huambo) são a manifestação do desespero de uma maioria ignorada que deixou de acreditar na sua capacidade de influenciar o seu destino com o voto e com a reclamação pacífica.

O bom senso recomenda que quando a panela de pressão está a chiar, o cozinheiro deve aliviar a pressão para evitar a explosão. Ignorar o chiar enquanto se abafa o seu “grito” aumentando o volume do rádio que toca a “música deflectora” não evita nem a explosão nem as suas consequências.

Ainda vamos a tempo de evitar que o nosso belo país caminhe para instabilidade destrutiva. O país continua com um potencial inegável que há muito tempo tem sido adiado, sobretudo, por uma classe governante que se recusa a abraçar um modelo de governação mais inclusivo e acolhedor de novas ideias e a recusa em abandonar o modelo actual tem invariavelmente afastado o país da realização do seu potencial como atesta a nossa trajectória de subprodução crónica.

Neste ano que Angola comemorava 50 anos de independência temos 70% da população a manifestar vontade de emigrar, não tinha de ser assim, sobretudo não deveríamos ter políticos constantemente a dizer (directa ou indirectamente) que são perfeitos àqueles que sentem na pele a ineficácia das suas políticas e experimentam a degradação contínua da sua condição social.  

Corredor do Lobito: minerais, agricultura e diversificação de exportações

O Corredor do Lobito é a designação atribuída a zona de influência a volta da linha-férrea que separa o porto do Lobito em Benguela e o Luau no Moxico, localidade fronteiriça entre o leste de Angola e a região sul da República Democrática do Congo que tem longa e contínua história com a produção de metais estratégicos como cobre e cobalto. Contudo, esta linha-férrea concebida por Robert Williams e concretizada num projecto liderado por este escossês no princípio do século XX que já tinha como objectivo primordial ligar as minas de cobre de Katanga na antiga colónia belga que se tornou na RDC com o porto do Lobito, abrindo assim uma rota mais rápida para exportação para os países da Europa e Américas que partilham connosco o oceano Atlântico.

A saída pelo Atlântico via Lobito da produção mineira do Cinturão do Cobre (Copperbelt) na RDC e Zâmbia deixou de ser viável com o agudizar da guerra civil em Angola nos anos 1980. Com o reestabelecimento da segurança a partir de 2002 as condições de viabilização reapareceram mas a linha reabilitada por empresas chinesas na década de 2010 não conseguiu recuperar o seu lugar entre as alternativas para exportação de metais preciosos de regiões sem acesso ao mar na África Central e Oriental, num mundo com uma geografia do comércio externo muito diferente de 1902 quando Robert Williams formalizou com Portugal a concessão de 100 anos dos CFB.

Valor e geografia do comércio externo da RDC (c. 74% exportado para Ásia)

O modelo adoptado após a retomada da ligação entre o Lobito e Luau e com extensão para os países vizinhos por via de parcerias não teve sucesso e o governo angolano abandonou a modalidade de gestão 100% pública do empreendimento e voltou ao modelo do início do século XX concedendo por 30 anos a exploração do transporte de carga à três empresas europeias que formaram a Lobito Atlantic Railway (LAR) cujas necessidades de investimento vão ser colmatadas com capitais próprios e, sobretudo, financiamento vindo de entidades de financiamento dos países do G7 que pretendem usar o Corredor do Lobito como poster boy de um novo compromisso com o desenvolvimento do continente africano, ideia reforçada várias vezes pelo presidente dos Estados Unidos Joe Biden na sua recente visita a Angola.

Foto: Angop

Na sequência da visita de Biden surgiram na Internet alguns comentários carregados de ceticismo que, dentre outras coisas, apontavam para repetição da lógica colonial de exportação de matérias-primas e com impacto reduzido nas populações da região. Estes comentários correctamente apontam que os países do G7 procuram com esta iniciativa assegurar o fornecimento de matérias-primas chave para transição energética mas ignoram que existem projectos paralelos para fomento da agricultura nas províncias angolanas na esfera do Corredor do Lobito e o melhor exemplo é o Cluster do Abacate que envolve financiamentos do Banco Mundial e de entidades dos Países Baixos cuja embaixada em Angola coordena uma série de acções que se espera que culminem, no médio prazo, com a utilização da Plataforma Logística da Caála como base para exportação de abacate produzido em Angola para Roterdão (Países Baixos) via Lobito.

A possibilidade de utilização da região centro-sul, nesta primeira fase, como base par produção agrícola destinada à exportação cria uma grande oportunidade para o desenvolvimento agrícola empresarial e fomento da agricultura familiar em Angola uma vez que, funcionando, o cluster do abacate pode ser facilmente replicado com outras culturas tropicais.

A LAR tem estado a reportar o aumento do transporte de carga para RDC e a empresa ambiciona fazer 6 viagens por dia para a RDC quando tiverem concluídos os investimentos necessários para garantir a qualidade da linha e a capacidade de transporte de mercadorias, com impacto na segurança no transporte de pessoas, cujas locomotivas continuam a ser operadas pelos CFB. Caso seja concretizado este projecto, os produtores de alimentos da região podem igualmente exportar para RDC e os produtores industriais ao longo do Corredor do Lobito, em particular de Benguela, passam a ter mais condições para servir o mercado de um país com cerca de 102 milhões de habitantes (6 milhões na província de Katanga).

Sendo a província de Benguela produtora de cimento e bebidas (como cerveja) o mercado do Congo fica mais fácil de alcançar, sendo que não é expectável que as barreiras impostas pela burocracia e grupos de pressão na fronteira do Luvo se repitam nos entrepostos ferroviários que ligam os dois países.

Adicionalmente, é importante acrescentar que existem projectos de exploração de metais estratégicos no leste de Angola que também poderão beneficiar da linha-férrea em questão, provavelmente com a necessidade de novos investimentos em ramais não previstos na linha original. No presente, algumas províncias do leste do país já estão a receber combustíveis pelo Corredor do Lobito e os investimentos para melhorar a segurança da linha beneficiam estas regiões.

A procura global por cobre, cobalto, coltan e outros minerais que abundam, sobretudo, na RDC e na Zâmbia deverá se manter robusta nas próximas décadas para realização da aprojectada transição energética e os portos de escoamento das regiões encravadas deverão continuar com grande procura, sendo que o porto do Lobito se apresenta como o mais próximo. Contudo, o Corredor do Lobito se estende por uma região com grande potencial agrícola que não pode ser negligenciado pela expectativa de se poder tornar no catalisador de um desenvolvimento e crescimento económico mais abrangente.

Mais uma vez Angola tem diante de si uma oportunidade para transformar potencial em realidade e o desafio é contrariar o histórico de oportunidades desperdiçadas e aproveitar a infra-estrutura para potenciar o comércio regional e exportações por via do Atlântico. O sucesso da concesssão à LAR poderá também incentivar a adopção do mesmo modelo nas outras linhas em Angola, em particular a CFM cuja qualidade da linha tem se revelado abaixo do nível necessário para utilização mais regular por parte das empresas que exploram ferro gusa no Kuando Kubango.

RDC e a dificuldade africana em compreender o valor do comércio livre

A Zona de Comércio Livre Continental Africana (ZCLCA) mais conhecida pelo acrónimo da sua versão em inglês – AfCFTA – nasceu em 2018 em Kigali com a ambição de se tornar na maior zona de comércio livre mundial e no principal acelerador do comércio intra-continental que é visto como uma das chaves para realizar o potencial das empresas que produzem em África e, sobretudo, contribuir para o crescimento económico do continente e desta forma reduzir drasticamente os níveis de pobreza actuais.

A ZCLCA carece da ratificação em cada um dos países africanos para que entre de facto em vigor o mecanismo de harmonização alfandegária e o levantamento de barreiras que condicionam o comércio livre no continente. O entusiamo demonstrado pela generalidade dos 54 signatários em 2018 para o acordo que estava agendado para entrar em vigor em 2021 se materializou na mesma medida uma vez que até a data 47 países depositaram os instrumentos de ratificação.

Infelizmente, apesar da iniciativa ambiciosa que permitiu o nascimento da ZCLCA prevalecem práticas que trafegam na contramão na liberalização do comércio que visa alargar os mercados para as empresas africanas e um bom exemplo disto é a persistência de barreiras não pautadas entre Angola e República Democrática do Congo que levou a Associação dos Transportadores Rodoviários de Mercadorias de Angola (ATROMA) a suspender a circulação de viaturas angolanas de transporte de mercadorias na RDC por tempo indeterminado uma vez que as autoridades congolesas cobram o equivalente a USD 4.000 por cada camião angolana que transita dentro do seu território, valor que eleva os custos com fretes para níveis incomportáveis para maior parte dos operadores e prejudica, naturalmente, o cliente final.

Os operadores nacionais buscavam o tratamento recíproco para elevar a taxa cobrada aos camionistas congoleses do valor equivalente a USD 50 para os USD 4.000 cobrados pelas autoridades congolesas aos angolanos e foi isto que foi decidido pelas autoridades angolanas após terem falhado as negociações com os vizinhos congoleses.

Este tipo de acções não ajuda os países africanos a aumentar a quota de produtos transformados ou semi-transformados nas suas exportações e condenam as empresas locais a um caminho bem mais complicado para prosperidade. Segundo o African Trade Report 2023 do Afreximbank, para o ano 2022 apenas 13 países africanos respondiam por 81% das exportações de produtos transformados de todo o continente (Angola representa 2%). O comércio intra-africano representa 20% das exportações dos produtos manufacturados.

A taxa exagerada cobrada pelas autoridades congolesas é mais uma demonstração da forma esquizofrénica que muitos países africanos encaram o comércio livre que é viste essencialmente como uma ameaça ao produtor nacional e não necessariamente como uma oportunidade. Os produtores angolanos, tanto de produtos agrícolas como bens manufacturados, têm experimentado um aumento das suas exportações mas o potencial é maior que a realidade actual porque continuam a enfrentar temas relacionados com o défice de infra-estruturas e questões institucionais que limitam as trocas intra-regionais. Angola não está isenta de culpas na construção deste ambiente de negócios pouco amigo das transacções transfronteiriças porque com frequência faz recurso ao protecionismo para barrar a concorrência externa como aconteceu com a produção de cimento cujos operadores enfrentaram bloqueios do outro lado da fronteira.

Enquanto os países africanos não abraçarem o comércio com os seus vizinhos mais difícil será dinamizar as suas economias domésticas e reduzir os problemas sociais que afectam boa parte das famílias africanas, condenadas a viver em sociedade politicamente instáveis e economicamente improdutivas. O comércio livre, de forma isolada, não será a panaceia para os problemas económicos e sociais de África mas certamente teria um impacto positivo que apenas por miopia ideológica não parece óbvio para as elites governativas africanas.

A coroa dinamarquesa e a maka do “câmbio de 10”

Uma das histórias mais fascinantes da economia global nos últimos tempos é a centenária farmacêutica dinamarquesa Novo Nordisk que num espaço relativamente curto tem alternado a posição de maior empresa europeia em capitalização bolsista com o grupo francês LVMH, empurrada pelas expectativas de dois dos seus medicamentos (Ozempic e Wegovy) que inicialmente foram desenhados para tratar diabetes e depois de resultados promissores na perda de peso passaram a alimentar expectativas sobre o real valor destes fármacos para o gigante mercado da redução de peso para diferente razões.

E a pergunta que se segue é: que relação existe entre diabetes, coroa dinamarquesa e taxa de câmbio AOA/USD = 100 (a.k.a “câmbio de 10”)? Na verdade nada, mas a gestão da moeda dinamarquesa ajuda-nos a entender porquê que o BNA em 2015 foi alargando a banda de variação da nossa taxa de câmbio até proclamar mais recentemente o regime de câmbio flutuante.

O banco central dinamarquês adoptou no início da década de 1980 um regime câmbio fixo que ancorava o valor da sua moeda ao marco alemão em busca de estabilidade cambial. Com a adopção do Euro no início do século XXI o peg da moeda dinamarquesa passou a ter como referência a moeda única europeia e o regime é suportado por um acordo de taxas de câmbio fixo com o Banco Central Europeu com uma taxa de câmbio de referência e uma banda de flutuação acordada. A defesa da taxa de câmbio é o mandato principal do banco central dinamarquês que recorre aos instrumentos clássicos de política monetária para responder à dinâmica do mercado cambial e manter a taxa de câmbio fixa com o Euro.

A valorização da Novo Nordisk tem estado a pressionar a procura pela coroa dinamarquesa e este movimento acentuado forçou o banco central dinamarquês a reforçar as reservas em euros (compra no mercado) e a baixar as taxas de juro para reduzir a atractividade em produtos de investimento de médio/longo prazo denominados em coroa dinamarquesa cuja procura estava igualmente a pressionar a taxa de câmbio fixa.

O que tem estado a fazer o Banco Nacional da Dinamarca é o que o Banco Nacional de Angola perdeu a capacidade de fazer por volta de 2014 quando iniciou uma defesa vigorosa da taxa de câmbio do Kwanza contra as moedas fortes e acabou forçado, já em 2015, a fazer um ajustamento mais pronunciado ao preço de transação da nossa moeda.

Evolução da taxa de câmbio AOA/EUR (Fonte: Banco de Portugal)

Como já abordado neste espaço e até recentemente, a economia angolana está toda dependente dos altos e baixos do sector petrolífero em termos de produção e preço. A década de 2000 foi marcada pelo crescimento da produção e o aumento contínuo dos preços do petróleo e neste contexto as reservas internacionais líquidas angolanas conseguiam suportar uma taxa de câmbio artificialmente baixa que permitia aos angolanos o consumo de bens e serviços do estrangeiro a preços bem mais baixos e sendo um país com elevado nível de consumo de bens importados, a taxa de câmbio era igualmente utilizada como principal instrumento para redução contínua do nível dos preços.

Como o investimento em infra-estrutura e formação técnica não acompanhou o nível de consumo, a falta de crescimento da produtividade doméstica foi compensada pelo caminho fácil da importação de bens (tanto essenciais como maquinário) e serviços (sobretudo consultoria e viagens ao exterior) num movimento pontuado pela política monetária de manutenção do “sagrado câmbio de 10”. Contudo, esta política depende da capacidade do BNA entregar ao mercado a quantidade de divisas alinhada com a procura de um custo de aquisição de divisas baixo e enquanto aumentava o valor das exportações naquele contexto de petróleo caro e crescimento da produção o BNA defendeu o câmbio de 10 entregando ao mercado tudo o que procurava, sem qualquer preocupação especial com a capacitação da economia nacional como um todo, mantendo intacta a dependência do sector petrolífero.

No início da década de 2000, quando Angola iniciou a sua década de crescimento acelerado no pós-guerra, a Argentina foi forçada a abandonar o regime de câmbio fixo que mantinha há pouco mais de 10 anos que retirou competitividade às exportações do país e contribuiu para o crescimento da dívida em dólares das empresas e famílias e esta realidade agudizou a crise económica que até hoje caracteriza a economia argentina.

O que a Argentina tentou e falhou, Angola tentou e falhou. A China tem conseguido com mais sucesso precisamente porque tem “reservas intermináveis” de moeda estrangeira por ser um dos maiores exportadores do mundo. Apesar de estar exposta à política monetária americana como fiz referência neste artigo sobre a trindade impossível, a China tem condições para defender o seu regime de taxa de câmbio fixo que nós nunca tivemos e não é inteligente acreditarmos que a combinação perfeita de factores favoráveis sem grande acção do nosso lado se vá repetir.

Em face do óbvio, o BNA teve que abraçar um regime de taxa de câmbio flutuante para evitar a delapidação das Reservas Internacionais Líquidas e problemas maiores para a economia nacional. Contudo, a correcção tem efeitos dolorosos porque na década dourada a abundância não foi aproveitada para construir uma economia mais diversificada, suportada por gente melhor formada e mais produtiva, de tal forma que a moeda depreciada não tem impulsionado a exportação de bens e serviços, salvo raras excepções.

Para as economias de pequena dimensão, sobretudo no mundo globalizado, a manutenção de uma moeda própria é muito desafiante, a solução de regimes de câmbio fixo permite estabilizar os preços mas têm mais sucesso quando existe um acordo oficial entre a autoridade monetária de todas as partes e ainda assim não estão livres de desafios e quase sempre podem ser resolvidos ou atenuados pela capacidade da economia ser competitiva no comércio externo. No limite, a solução passa pelo abandono da moeda nacional a favor da adopção de uma moeda forte sem participação directa na política monetária ou participar num regime de moeda única a semelhança do Euro ou algo semelhante a Common Monetary Area na África Austral que junta a África do Sul, Namíbia. Lesotho e Essuatíni sob gestão do banco central sul-africano (South African Reserve Bank).

Como queremos manter a total soberania sobre a nossa política monetária e andar a passo lento no sentido da alteração estrutural da nossa economia, vamos ter que continuar a subjugação do sector petrolífero cujo preço não controlamos e o nível de produção tende a ser estático no curto prazo, sendo que no nosso caso a tendência actual é redução progressiva. Em resumo, meus caros, “câmbio de 10” era um sonho fabricado do qual acordámos abruptamente e o nosso foco deve ser construir novos sonhos, suportados pela nossa capacidade de criarmos produtos de qualidade com procura global como os fármacos da Novo Nordisk e se ancorarmos o Kwanza numa moeda forte o BNA poderá ter mais força para defender a moeda como faz o Banco Nacional da Dinamarca com a sua coroa.

Considerações sobre o Plano Massano

No dia 14 de Julho o novo Ministro da Coordenação Económica, José de Lima Massano, anunciou medidas de emergência que visam aliviar o impacto da crise económica na vida dos cidadãos. A dita crise é caracterizada pelo aumento do custo de vida e redução das oportunidades de emprego o que implica redução da capacidade de consumo das famílias e maior dificuldade para rentabilização dos mais distintos negócios.

O que chamo de “Plano Massano” contém (i) redução e isenção de impostos para alguns produtos e serviços e (ii) medidas que visam atacar as makas do ambiente de negócio.

A nível de impostos, o governo aposta na redução do IVA dos produtos alimentares e na possibilidade do IVA de equipamentos importados ser pago em prestações. O governo vê ainda na isenção do Imposto Predial nas transmissões de imóveis um elemento dinamizador para certos negócios no imobiliários (até 40 milhões de kwanzas, sendo que entre +Kz 40 milhões e Kz 100 milhões passa a haver um desconto de 50%). O Plano Massano inclui também a isenção de Imposto de Selo para promoção imobiliária e registo de capital social de empresas.

A redução do IVA para alimentos é uma medida simples de entender mas poderá ter o seu impacto limitado pelo grau de informalismo da nossa economia, mas é sempre melhor pagar a caixa de coxa de frang com 7% de IVA do que com 14%.

Das medidas que visam reduzir a factura fiscal nas transacções imobiliárias de menor valor o impacto esperado não deve ser material porque o maior tema continua a ser a baixa disponibilidade de rendimentos das famílias para aquisição de imóveis e o Aviso 9 do BNA que visa financiar melhorar o acesso ao crédito habitação está longe de ser um sucesso, principalmente porque é um crédito de longo prazo e insegurança laboral da maioria reduz significativamente o número de clientes potenciais.

Uma das iniciativas anunciadas foi a criação do Balcão Único do Exportador que visa criar um sistema facilitador das exportações não-petrolíferas e é uma boa medida porque as poucas empresas que exportam de forma consistente reclamam com frequência das barreiras burocráticas e níveis de serviço de diferentes entidades públicas envolvidas, mas é mais uma medida que ajudará quem fez o milagre de se colocar na posição de exportador mas pouco faz para que não seja preciso um milagre para as empresas se tornarem competitivas na exportação dos seus bens e serviços, como infra-estruturas com impacto nos custos da operação e a criação de um caminho para melhorar a qualidade média do trabalhador local (reforma educativa e melhor financiamento do sector).

Há igualmente uma medida que visa melhorar o acesso e o registo de terra, é uma medida necessária e o registo de propriedade tem potencial para melhorar a capacidade das empresas apresentarem garantias aos credores e pode ajudar a fazer crescer a receita fiscal porque alarga a base de cobrança de imposto sobre a propriedade e, por esta razão, a melhoria da capacidade de registo de propriedade não se pode limitar à terrenos rurais mas sim às novas zonas de desenvolvimento urbano das principais cidades do país uma vez que a incapcidade de registar propriedade é um velho problema que abordei há anos mas os progressos continuam lentos.

Uma das medidas mais vistosas é provavelmente a isenção de vistos de turismos para curta estadia para todos os portadores de passaportes de países da CPLP e do G20. A medida pode ajudar a vender Angola como destino turístico e facilitar descolações de negócios de curta duração, é uma medida que peca por tardia mas provavelmente não produzirá impacto material no curto prazo.

Angola infelizmente não é um destino atractivo para o investimento externo, sobretudo nesta nova realidade de crescimento que varia entre o modesto e o nulo, ao contrário da década de 2000 quando o sector petrolífero puxou a Angola do pós-guerra para um crescimento económico alucinante que infelizmente foi muito mal aproveitado e as bases para o desenvolvimento não foram estabelecidas.

Como destino turístico, o nosso país tem primeiramente que fomentar o turismo doméstico e em seguida deveria se estabelecer como uma opção para os turistas do princial mercado emissor da região, a África do Sul o que teima em não acontecer apesar de existir isenção de vistos para sul-africanos e isto deveria nos fazer ajustar as nossas expectativas quanto ao potencial de atracção de turistas de países do G20 ou mesmo das principais economias da CPLP (Portugal e Brasil) com quem Angola tem maior proximidade culturual.

Em resumo, o Plano Massano traz uma série de medidas que fazem sentido mas das quais não podemos esperar uma revolução que traga mais investidores e turistas para Angola no curto ou mesmo médio prazo, presumindo que tudo o resto se mantenha como hoje. Podemos dizer que o Plano Massano representa um tratamento paliativo para um doente mórbido, mas como enquanto há vida há esperança, certamente aparecerá o tratamento adequado que evitará a morte do paciente.

Esperança Moribunda 3.0 e a fuga dos angolanos

Tal como em Angola, nos anos 1990 a vida política e social da Nigéria era grandemente caracterizada pela incerteza, violência e corrupção. Neste contexto, naturalmente, as pessoas perdem a esperança no futuro da sua terra e torna-se palpável uma vontade generalizada de abandonar o país, de imediato ou no médio prazo. No magnífico romance “Americanah” de Chimamanda Ngozi Adichie há uma passagem em que se referindo à Nigéria dos anos 1990 uma personagem diz: “um dia, vou acordar e todas as pessoas que conheço, morreram ou abandonaram o país”.

“Americanah” conta a história de uma jovem nigeriana nas décadas de 1990 e 2000 mas poderia ser a história de uma jovem angolana que sem esperanças no futuro do seu país sentiu-se obrigada a emigrar mas teve a esperança renovada no final da década de 2000 e voltou à terra natal para participar no que acreditava ser uma nova era, com estabilidade política, prosperidade económica abrangente e progresso social. Infelizmente, em Angola, a crise económica iniciada com a queda do preço do petróleo em 2014 que empurrou milhões de volta a pobreza e causou uma erosão na classe média emergente começou a matar a esperança renascida na década de 2000 com o fim da guerra e o crescimento económico vertiginoso sustentado quase que inteiramente pelo mercado petrolífero favorável.

A falta de progressos significativos no campo social e a percepção generalizada de um défice democrático que limita a capacidade do cidadão comum influenciar o sentido do seu próprio destino trouxeram de volta o sentimento de fuga e confirmou a inversão da tendência dos anos 2000, com a emigração a voltar a suplantar significativamente o retorno de angolanos que viviam no exterior, tanto como estudantes ou como imigrantes económicos.

Em Novembro de 2022, o Serviço de Emigração e Estrangeiro (SME) justificou as dificuldades na emissão de passaportes com a “fuga de angolanos para o exterior“. A declaração do representante do SME só confirma a percepção de muitos de nós que conhecemos pessoas que emigraram ou pretendem fazê-lo em breve. A notícia do Novo Jornal avança como números que confirmam que os angolanos estão a “responder com os pés” a falta de esperança no futuro do país: saíram de Angola em Outubro de 2020, 3.609 angolanos que compara com 11.719 em Outubro de 2021 e 21.865 em Outubro de 2022.

Os números do Gabinete de Estudos Estratégicos de Portugal indicam que inversão da tendência da imigração angolana em Portugal teve início em 2018 que foi o primeiro ano desde 2007 que o número de residentes angolanos em Portugal cresceu.

O crescimento da emigração económica para Portugal teve um efeito significativo nas remessas de angolanos que cresceram 53,6% em Abril de 2021 face ao período homólogo segundo dados do Banco de Portugal compilados pelo jornal Expansão.

E de repente a década de 2020 começa a ficar muito parecida com a década de 1990 e início da década de 2000, com angolanos a construírem grandes comunidades lá fora, com pessoas anónimas e cada vez mais artistas a terem um país estrangeiro como casa e solução para realização dos seus sonhos. O músico angolano Don Kikas depois de fazer a música “Esperança Moribunda” viu-se obrigado a fazer a segunda parte por não vislumbrar a mudança necessária em Angola e temo que vai ter que fazer a terceira parte porque as expectativas continuam baixas e a falta de compromisso com o longo prazo de parte significativa da população tem efeitos económicos devastadores, em particular a nível do consumo de bens duradouros como compra de residências ou mesmo a realização de investimentos.

O país vive um momento em que boa parte das pessoas deposita muito pouca esperança no seu futuro e que o grosso das pessoas das classes mais afluentes encaram o país como um instrumento do presente para construção de um futuro no exterior. A percepção é que existe falta de compromisso da elite com o futuro do país – em particular a elite governativa – e esta realidade bloqueia a criação de um projecto de nação que alimente a esperança da maior parte dos angolanos. A inversão desta tendência não será conseguida com apelos ao patriotismo ou sacrifícios, Angola continua a ter um potencial inegável que apenas será realizado com reformas profundas no campo político porque continuo a acreditar que o problema económico de Angola é, na essência, um problema político.

Apesar dos factos justificarem, não gostaria de ver uma terceira versão de “Esperança Moribunda” mas não consigo fugir da realidade de acordar cada vez mais num país em que muitas pessoas que conheço ou estão fora do país ou já não estão neste mundo.

Angola: pobreza e baixo consumo privado

Numa economia de mercado, quem vende trava uma luta constante para ter o seu produto ou serviço entre as escolhas dos consumidores cuja decisão de compra está limitada pelo dinheiro disponível.

A redução do poder de compra das famílias angolanas nos últimos anos constitui um desafio para sobrevivência das nossas empresas. A inflação galopante dos últimos anos aconteceu num ambiente de decréscimo contínuo da economia, com aumento do desemprego que completa a fotografia de um processo de empobrecimento singular desde que o país alcançou a paz em 2002. Por exemplo, o PIB per capita de 2021 (em USD correntes) representava apenas 41% do que era em 2014.

Tenho contacto regular com planos de negócios de empresas nacionais e sempre achei estranho a pouca atenção que muitos os empreendedores dão às questões demográficas e evolução recente e prospectiva do nível de rendimento. A redução do nível de emprego e o empobrecimento contínuo significam efectivamente que os empresários estão a disputar por uma pizza que está continuamente a diminuir o que explica parcialmente a baixa taxa de sobrevivência de novos negócios e a dificuldade das empresas existentes para manterem as portas abertas.

Num país com níveis de crédito bancário às famílias tão baixo, o consumo é especialmente sustentado pelo rendimento regular do trabalho e sendo este em média muito baixo, os níveis de poupança são igualmente baixos e o grosso do rendimento é utilizado na aquisição de bens e serviços essenciais.

O país continua efectivamente a viver ao ritmo do petróleo e a recente mudança de trajectória na evolução do PIB – que beneficiou de algumas decisões de política monetária e fiscal acertadas – não pode ser dissociada do mercado petrolífero favorável. Contudo, se o país não fizer as reformas do sistema político, judicial e de educação deverá manter a correlação extrema com o sector petrolífero e a empobrecer, onde qualquer jantar fora de casa é um luxo, o turismo é inacessível para o grosso da população e pouco que há para consumir é para comer, vestir, beber e pouco mais.

Sendo visível que desalinhamento com a procura existente está na base do fracasso de muitos negócios, podemos igualmente identificar negócios de sucesso que são sustentados por uma leitura correcta do consumidor-tipo, com a clara noção que a decisão de consumo não se pode separar da diminuta capacidade de consumo como se verifica nas ideias simples mas geniais de micro-dosagem que permite compras diárias de vários produtos que em mercados maduros são comercializados em doses bem maiores, servem de exemplo os pacotes de detergente para roupa ou whisky de qualidade duvidosa vendido em doses individuais que negligenciam a qualidade e focam nos baixos rendimentos que permitem ganhar no volume.

Contudo, nem todos os negócios conseguem explorar a micro-dosagem ou o hard-discount, estratégias que pela natureza sacrificam a margem mas dependem de grande volume o que é um desafio logístico e de tesouraria.

Ademais, a natureza de isolamento da economia agudiza igualmente a dificuldade de saída do marasmo e da capacidade dos empresários em explorar oportunidades em mercados regionais para compensar as dificuldades domésticas e o círculo vicioso continuará a prevalecer sobre o necessário círculo virtuoso.

Curiosamente, a alteração da bitola dependerá sempre do engenho dos empreendedores na busca de soluções inovadoras que funcionem neste mar de problemas. Porém, o caminho mais rápido para prosperidade continua a ser a criação de condições institucionais que aligeirem o esforço dos empreendedores e criem realmente condições que nos afastem da necessidade de super-heróis para termos os negócios que criam empregos e riqueza que o país tanto precisa.

As eleições de 2022 e o baixo nível de discussão

No próximo dia 24 de Agosto os angolanos estão convocados para eleger um novo presidente e uma nova configuração da Assembleia Nacional. O país é uma coleção de problemas e neste período de campanha eleitoral os partidos e seus cabeças de lista poderiam fazer um trabalho melhor em como pretendem transformar o país.

O período eleitoral é comummente referido na comunicação social como a “festa da democracia” e este espírito poderá estar a ser levado ao extremo do literal pelos partidos que parecem dedicados à carnavalização da democracia, apostando numa comunicação dominada por cartazes “vazios” e infestação de ruas com bandeiras.

Como em qualquer parte do mundo, o eleitor comum não lê manifestos eleitorais e o conhecimento dos programas é feito sobretudo por espaços dos partidos na rádio e televisão e como estes meios cobrem os eventos de campanha dos partidos, nomeadamente os comícios. No campo da cobertura mediática as nossas televisões continuam a pautar pelo desequilíbrio com tempo de antena favorável ao MPLA e programas de opinião única, sem direito a contraponto.

O contraponto em campanha eleitoral nas democracias atinge o seu auge quando os protagonistas debatem e são forçados a convencer as pessoas dos seus projectos, preparação e conhecimento mais detalhado das suas promessas com contraditório imediato que se diferencia dos monólogos que caracterizam os comícios e o tempo de antena. Infelizmente, mais uma vez não tivemos debates presidenciais, em particular entre João Lourenço e Adalberto Costa Júnior que lideram os projectos que dominam as intenções de voto de acordo com as sondagens que têm estado a ser publicadas há alguns meses pelo Movimento Cívico Mudei.

Seria importante ver o líder da UNITA a ser questionado sobre o que se pretende com a “consagrar a terra como propriedade ancestral” ou como pretende (e com que prazo) aumentar o salário mínimo da função pública para 150 mil kwanzas.

O não debate não nos permitiu também que o presidente João Lourenço fosse confrontado com flagrantes insuficiências do seu primeiro mandado, como por exemplo (i) a não realização de eleições autárquicas, a (ii) a contínua crise económica e degradação generalizada do nível e vida, (iii) a reversão do controlo sobre a comunicação social relevante e a (iv) ocorrência de incidentes de violência policial em manifestações que resultaram em mortes de cidadãos nacionais.

Contudo, há a registar a apresentação de veios condutores dos projectos de governação nos comícios, como a promessa de revisão constitucional de Adalberto Costa Júnior ou o aumento contínuo da contribuição na economia dos sectores não directamente ligados ao petróleo até 80% como prometeu o MPLA na busca da diversificação efectiva da economia angolana.

A utilização dos cartazes está muito longe do que eu esperava para uma campanha em 2022 num país com tantos problemas. A generalidade dos partidos comunica mal com cartazes, reduzindo a sua mensagem ao fenómeno do “vota no número tal”, sem apresentação de qualquer ideia que faça merecer o voto, incluindo partidos recém-criados cuja ideologia é desconhecida da maioria dos eleitores.

Em parte, o “vota no número tal” é uma manifestação da forma como os partidos olham para os eleitores que são por estes vistos como pouco sofisticados e, por esta razão, mais facilmente votam num número por insistência da mensagem do que numa proposta concreta num cartaz ou mesmo numa referência da promessas não cumpridas pelo incumbente como é comum noutras geografias, em particular onde não existe voto electrónico e a digitação do número no momento da escolha não é necessária.

Contudo, apesar do nível de acesso estar longe do ideal, podemos dizer que com recurso à Internet vamos conseguindo acompanhar a campanha com maior amplitude do que no passado pese o facto de se manter intacto o desequilíbrio no tratamento dos concorrentes por parte da comunicação social pública que tem uma inegável inclinação para amplificar a mensagem do MPLA.

Espero que nos próximos pleitos a transparência e confiança no processo deixe sejam boas o suficiente para que o discurso da desconfiança deixe de fazer sentido que a comunicação seja melhor e focada na discussão do presente e do futuro de Angola com um olho nos feitos e desfeitos do passado.