A economia angolana 50 anos depois | O que é hoje [Parte 2]

Como foi partilhado no artigo anterior, focado em como era a economia angolana nas décadas de 1960 e 1970, as exportações de petróleo estavam a ganhar representatividade de forma acelerada anos antes da independência, mas o que exportávamos era um cabaz bem mais diversificado do que é hoje. Nos nossos dias, apesar de várias manifestações de intenções temos uma “pizza” dominada por um único ingrediente com os mais de 90% do petróleo que compara com 51% em 1974, ano em que terminou a guerra pela independência e antecedeu a saída do governo colonial em Novembro de 1975.

O processo de recomeço iniciado com o fim da guerra civil que coincidiu com o aumento assinalável da produção e preço de petróleo, demorou a gerar frutos em outras áreas da actividade económica como a agricultura e a indústria transformadora. Eventualmente, os ventos favoráveis na década de 2000 ditaram o investimento displicente na diversificação cuja ênfase aumenta sempre nos períodos baixos do mercado petrolífero, mas a verdade é que diferentes programas públicos e investimentos privados realizados no final da década de 2000 e na seguinte produziram resultados abaixo do necessário para transformação material da economia angolana, designadamente na recuperação de um tecido produtivo mais diversificado, redução das importações, diversificação das exportações e robustez na geração de empregos para uma população crescente e jovem.

A paz duradoura efectivada em 2002 coincidiu com o aumento da produção e preço de petróleo bruto o que levou Angola a experimentar um período de crescimento económico acelerado com influxo de fundos de receitas fiscais associadas às exportações de petróleo e empréstimos de instituições chinesas que sobreaqueceram a economia que, dentre outras consequências, catapultou Luanda para o topo das cidades mais caras do mundo, posição que entretanto deixou de ocupar muito por culpa da depreciação do Kwanza dos últimos anos.

O boom económico alicerçado no sector petrolífero suportou o crescimento de outros sectores com destaque para telecomunicações, construção e serviços financeiros. O sector da construção foi suportado pela grande procura por obra pública e privada, com a recuperação e construção de novas infra-estruturas cuja execução, em grande medida, não obedeceu às exigências mínimas de qualidade. O papel central das instituições do Estado na dinamização do sector da construção num país com grande défice no controlo das finanças públicas e com mecanismos de punição igualmente deficientes explicam tanto a aceleração do enriquecimento ilícito de uma minoria como a destruição de fundos públicos que foram convertidos em obras sem a durabilidade necessária para afectar positivamente o desenvolvimento.

Por seu turno, o sector financeiro beneficiou do aumento da transaccionalidade na economia, que pelas características apresentadas tinha no Estado o seu maior protagonista, embora seja inegável o aumento do consumo privado (incluindo famílias) nos anos de crescimento económico acelerado. A inversão de sentido da economia angolana acentuada em 2014 deu início ao processo de empobrecimento que vivemos há uma década com consequências a nível do consumo privado e público, sendo que o Estado se manteve como principal cliente de crédito do sector bancário, tanto pela emissão de dívida como pela contratação de crédito directo. Por seu lado, o sector das telecomunicações experimentou taxas de crescimento e rentabilidade ainda mais impressionantes que as dos bancos na década de 2000, mas a estrutura dominada por um operador e o modelo de preços fixados acabaram por entregar um sector pouco inovador (sobretudo, comparando com outros países africanos) e com níveis de rentabilidade afectados pela dinâmica de preços fixados centralmente em kwanzas numa indústria exposta a necessidade de investimentos recorrentes em moeda forte.

A nível de investimento público, outros sectores centrais para construção de prosperidade duradoura foram igualmente negligenciados como é o caso da educação que forma consistente integrou o grupo de parentes pobres do investimento público, sobretudo considerando a dimensão do desafio (ponto de partida baixo e crescimento acelerado da população). A educação vive com uma situação crónica de subinvestimento que não permite a formação de quadros em quantidade e qualidade para que o sector produtivo tenha disponível localmente as pessoas necessárias para fazer crescer a economia, com menos custo e dependência de importação de capital humano.

A indústria transformadora, fruto da necessidade de substituir importações com o que é possível produzir localmente (preferencialmente) de forma competitiva, tem experimentado anos de expansão apesar de desafios a nível do acesso a técnicos devidamente formados, matéria-prima local, divisas para insumos e serviços importados e qualidade das utilidades e infra-estrutura básica (energia, água, saneamento, estradas, etc.). Contudo, o grosso dos produtos manufacturados em Angola continuam as ser importados, incluindo da indústria alimentar que, apesar de tudo, tem subsectores maioritariamente suportados pela indústria nacional.  

Actualmente, a nossa economia tem como fonte única de divisas as exportações de petróleo bruto apesar de sinais inconsistentes no aumento de exportações de produtos agrícolas que poderá beneficiar do aumento da produção de commodities agrícolas para venda aos grandes centros de consumo do mundo (como abacate e café) ou produtos com forte procura regional e potencial de produção local (como feijão). Outro sector que apesar de sinais positivos está muito longe do seu potencial é o turismo, que acaba por ser dependente da qualidade de sectores complementares como infra-estrutura de transporte e comunicação, segurança pública e jurídica, sistema de saúde e pessoal com formação básica ao longo de toda cadeia de valor.

O processo de destruição da base produtiva diversificada teve início com a escolha de economia planificada por parte do MPLA que após 1975 assumiu progressivamente o governo de Angola independente. A economia angolana pré-independência era suportada pela combinação de gestão empresarial com práticas abusivas da mão-de-obra local e este último elemento era apresentado com motivo principal para uma alteração completa que trouxe-nos a administração pública dos negócios que acabou por afectar negativamente a sustentabilidade de empresas em sectores altamente produtivos (como o café) e, a prazo, acabou por destruir os empregos que estas medidas buscavam, em parte, tornar mais dignos. A guerra civil que aumentou de intensidade na década de 1980 contribuiu para paralização ou redução material de muitas actividades económicas. O estado em que se encontram hoje as instalações da antiga Companhia Angolana de Agricultura (CADA) é demonstrativo de como as escolhas políticas e o conflito armado destruíram peças importantes da economia diversificada herdada em 1975.

Pouco depois da independência
49 anos depois da independência

50 anos depois Angola e num contexto de transformação acelerada a nível de tecnologia com a mobilidade a virar-se para electricidade e tudo o resto a ser assaltado pela inteligência artificial, Angola é está hoje a buscar o seu futuro num passado em que o sector agrícola tinha relevância e a indústria extractiva começava consolidava o seu papael como motor da economia.

O país certamente beneficiaria muito se ocorresse no curto prazo uma revisão do modelo de governação a favor de um modelo que privilegie os mecanismos de negociação de prioridades entre governados e governantes, com uma estrutura de decisões políticas que acomoda diferentes ideias, tendo no mérito o critério principal de selecção. Afinando o modelo político, é expectável que os escassos recursos sejam alocados de forma mais racional, permitindo ao país tirar melhor proveito da sua riqueza hídrica para geração de energia eléctrica limpa e produção agro-pecuária, da sua posição geográfica para conexão entre diferentes interesses globais, da sua cultura, história e beleza natural para progressivamente construir uma indústria turística de referência e finalmente transformar Angola num país com prosperidade partilhada pela maioria, com bases numa economia de mercado e diversificada, que respeita os direitos de todos os intervenientes na geração da riqueza.

Donald Trump e o esoterismo económico pro max

O presidente do Estados Unidos, Donald Trump, repetiu durante a campanha nas eleições que resultaram na sua vitória em Novembro de 2024 que “ama as tarifas”. O presidente Trump tem uma visão muito peculiar sobre o comércio internacional e entende que os impostos a importação (tarifas) são a ferramenta ideal para “equilibrar” o comércio entre nações. Para Trump, o défice na balança comercial entre dois países significa que o país que mais exporta está a explorar quem mais importa o que não só não é verdade como assume a premissa errada que o comércio moderno funciona na base de permuta bilateral.

Para calcular o “nível de barreiras” ao comércio livre que obrigam à aplicação de pesadas tarifas a equipa de Donald Trump recorreu a uma fórmula que não se reconhece em nenhum manual de economia para um tema que é discutido de forma estruturada desde os primórdios da ciência económica no final do século XVIII e início do século XIX, altura em que David Ricardo destacou que comércio baseado na exploração das qualidades de cada parceiro comercial produzia melhores resultados económicos para todos os envolvidos.

Donald Trump entende que a desindustrialização dos Estados Unidos é, na essência, o resultado de políticas desleais dos seus parceiros comerciais (em particular a China) que bloqueiam a entrada de produtos americanos com barreiras alfandegárias e não-alfandegárias que criam vantagens artificiais para as suas indústrias. Ainda que seja inegável que muitos países usaram e usam mecanismos de protecção da indústria doméstica esta realidade não explica a deslocação de grande parte da produção industrial para o Oriente onde foi possível combinar qualidade industrial com custos de mão-de-obra muito mais baratos do que nos países desenvolvidos que, na generalidade, viram a sua economia crescer mais na prestação de serviços e desenvolvimento de tecnologia, inclusive muitas empresas dos Estados Unidos escolheram voluntariamente produzir na Ásia os produtos que desenvolveram no seu país, sendo a Apple o exemplo mais visível.

No seu diagnóstico sobre os resultados da desindustrialização Trump ignora o crescimento do sector dos serviços, o aumento contínuo da produtividade e da prosperidade dos Estados Unidos que nas últimas décadas distanciaram-se dos seus pares do mundo desenvolvido e mantiveram relativamente intacta a posição de maior potência económica mundial. Pelo contrário, Trump partilha a fotografia de um país vítima de aproveitadores e em decadência, aludindo que o mundo a sua volta está a experimentar um crescimento invejável às custas dos americanos e a “prova científica” desta realidade é o défice comercial observado com cada país individualmente e deste princípio surgiu a fórmula que acusa economias muito menores de estarem a explorar os Estados Unidos sem avaliar particularidades de cada país e o tipo de trocas que existem entre estes países e os Estados Unidos.

A imprensa americana destacou o absurdo da situação do Lesotho, um pequeno país encravado na África do Sul que é exportador nato de diamantes e tem um PIB de USD 2,1 mil milhões. Por ser um país relativamente pobre e geograficamente cercado pela África do Sul o Lesotho importa grande parte dos seus produtos da África do Sul  (~80%), por esta razão importam muito pouco do resto do mundo e por exportarem diamantes para os Estados Unidos têm um superavit comercial os Estados Unidos o que na “fórmula trumpista” de cálculo do abuso comercial resultou numa tarifa geral para as importações do Lesotho de 50% que de forma alguma irá contribuir para aumentar as exportações americanas para o Lesotho.

A situação do Lesotho é equiparável a de Angola que tem em termos globais uma balança comercial positiva porque apesar de importar muitos bens de consumo continua a ter o valor das exportações superior ao das importações. Por exemplo, Angola tem um superavit comercial com os Estados Unidos e na leitura de Trump andamos a abusar da benevolência americana e por isso os importadores americanos que comprarem produtos comprados em Angola terão de pagar uma tarifa de 32% o que, presumindo a descontinuidade de programas como AGOA na administração Trump inviabiliza o potencial de exportações agrícolas para os Estados Unidos. Na lógica de Trump, o facto dos americanos comprarem petróleo bruto angolano força os angolanos a comprar mercadorias de igual valor a fornecedores americanos.

New York Times

O “dia de libertação” prometido por Donald Trump revelou-se a confirmação dos piores medos uma vez que na sua tentativa mal informada de reformar o sistema comercial global o presidente dos Estados Unidos criou condições para o encolhimento da economia global e injectou uma dose violenta de pessimismo e incerteza nos mercados organizados.

Para piorar, o nível de incoerência a volta das medidas de Trump e o seu histórico de mudanças bruscas de direcção agudizam os piores sentimentos o que congela decisões de investimento e impacta a confiança dos consumidores que está na contramão da aparentemente inabalável confiança de Trump nas suas decisões, por mais esquisitas e idióticas que possam parecer.

As exportações agrícolas com alguma materialidade, no momento, são sobretudo aspiracionais e no médio prazo poderão de ser um tema se Trump revisitar as suas posições ou se o pr´óximo ciclo eleitoral americano devolver a normalidade a Casa Branca. Contudo, no curto prazo, a expectativa de desaceleração económica global já está a empurrar os preços do petróleo para baixo e o nível de preocupação em Angola segue no sentido inverso.

Proibir importações não resolverá o défice de produção de carne

Mapa do mundo de acordo com tarifas aduaneiras médias (Banco Mundial via Wikipedia)

O mapa acima apresenta um trabalho do Banco Mundial de 2021 com uma gradação de cor que indica o nível médio de direitos aduaneiros cobrados pelos diferentes países e como é possível constatar Angola está no grupo de países com carga fiscal à importação mais elevada do mundo.

Repetidas vezes os governantes e parte do empresariado angolanos, que têm sido consistentemente os proponentes de uma abordagem aduaneira proteccionista, apresentam tais políticas como mecanismo de fomento da produção nacional ou a tábua de salvação dos nossos produtores que estão sob ataque de importadores imbuídos de ganância e desapego pelo interesse nacional.  

Em 2015, escrevi sobre uma decisão governamental para destruição de ovos importados com uma justificação pouco clara para o público em geral e o reforçar de pedidos de protecção aduaneira como política de fomento da avicultura, com foco na produção de ovos e naquela altura, apesar dos problemas a produção nacional de ovos conseguiu consolidar a sua posição na oferta de ovos e hoje sustenta a quase totalidade do consumo nacional com algumas excepções, sobretudo em regiões fronteiriças e/ou remotas. Contudo, persistem os problemas relacionados com insumos e infra-estruturas que encarecem o produto final e retiram competitividade ao ovo nacional e o problema maior é que os elementos que afectam negativamente a nossa capacidade produtiva não têm merecido a necessária atenção.

Ao longo destes 50 anos de independência Angola tem tido quase sempre uma postura proteccionista com muito poucos resultados e a mais recente medida encabeçada pelo Instituto de Serviços de Veterinária (ISV) que deixará de emitir nos próximos meses licenças de importação de diferentes tipos de proteína de origem animal é mais uma manifestação da regra do que uma excepção. A medida é bastante abrangente e tanto visa partes menos nobres da carne bovina ou suína como inclui na lista das proibições as coxas de frango.

Para além de ignorarem a nossa própria experiência, um erro comum destas medidas é a assunção que o produtor é o único elemento importante no mercado e é o único cuja actividade gera emprego. Os empregos gerados pelos distribuidores (quase sempre importadores na nossa realidade) e os custos e benefícios para o consumidor são, por norma, subalternizados apesar dos últimos constituírem sempre a maioria.

A avicultura merece especial atenção porque é a principal fonte de proteína animal em Angola tanto na forma de ovo (quase sempre produzido em Angola) como de carne (quase sempre importada). As estimativas de agentes do sector agro-pecuário angolano indicam que os produtores nacionais respondem apenas por 10% da oferta de carne de frango de um consumo total estimado em cerca de 300 mil toneladas por ano o que implica que a interrupção abrupta da importação de carne de frango irá causar um choque na oferta que irá causar escassez da proteína mais consumida em Angola e, consequentemente, uma subida acentuada nos preços.

Independentemente da nobreza da parte do frango de que estamos a falar, a abrangência da medida, o nível de consumo dos produtos e incapacidade da produção local colmatar a ausência da oferta de origem externa no médio prazo, vai significar não apenas um produto mais caro como a redução na ingestão de proteínas de uma população que já tem estado a ser fustigada pelo aumento do custo de vida, inclusive por via dos preços do frango e do ovo. Com efeito, apesar de Angola consumir essencialmente ovo nacional e existirem operadores com grande capacidade, o nosso consumo per capita anual de ovo anda a volta de 80 ovos que compara com cerca de 240 do Brasil.

O objectivo do Ministério da Agricultura e Florestas (MINAGRIF) que tutela o ISV é nobre e louvável, mas penso que temos provas suficientes na literatura económica e na história de Angola que o caminho escolhido não irá criar uma classe de produtores de carne do dia para noite com foco quase exclusivo na protecção aduaneira de uma classe pequena na esperança do seu rápido crescimento em eficiência, número de produtores e produção total. Ademais, as medidas parecem ignorar os danos colaterais que, na minha opinião, são bastante superiores aos benefícios antecipados.

O desejado crescimento da produção local poderá ser orgânico e de forma acelerada se forem atacadas as principais fragilidades como a oferta limitada de genética (quantidade e qualidade), produção reduzida e cara de insumos para ração (milho, soja, suplementos e outros), custos com vacinas e infra-estruturas de base cuja disponibilidade e baixa qualidade podem encarecer a actividade económica (acesso a àgua, electricidade, estradas, comunicações, etc.).

Efectivamente, em Março de 2022 a responsável pela gestão da Fazenda Pérolas do Kikuxi – Elizabeth Dias dos Santos – partilhou com o jornal Expansão uma avaliação da queda na produção de ovos no país que se estava a acentuar naquela altura e apontou como principais problemas a (i) qualidade da genética e capacidade de substituição atempada dos bandos, (ii) a quantidade e qualidade da ração e (iii) a qualidade da água. Na mesma peça, a produtora de ovos questionava a não priorização da importação de inputs para a indústria avícola e os seus impactos na produção doméstica de ovos. O diagnóstico parece-me bastante assertivo e simples, com dicas de como a intervenção pública poderá apoiar a produção nacional sem grande impacto na disponibilidade da oferta, designadamente promovendo programas de fomento de produtores de pintos, inputs agrícolas e químicos para produção de ração e concertando diferentes organismos públicos no sentido de melhorar as infra-estruturas com impacto positivo nos custos operacionais dos nossos empresários. 

Como é óbvio, um programa nacional para melhorar e manter infra-estruturas é mais desafiante, mas deve ser o foco da intervenção pública e não a insistência na “solução” rápida da protecção aduaneira como política de fomento industrial. Os produtores nacionais continuam a necessitar de quadros melhor formados, infra-estruturas de melhor qualidade e financiamento menos caro e a proibição isolada de importações não resolve nenhum destes problemas e a prazo vamos criar uma classe ineficiente e dependente de favores legislativos e com tendência para se transformarem nos maiores advogados da não formalização da entrada na Zona de Comércio Livre da SADC, limitando o seu próprio potencial para exportação enquanto contribuem para perpetuação da nossa dependência da exportação de petróleo como fonte dominadora de moeda forte que precisamos para importar bens e serviços.

Contrastando o mapa apresentado acima com o mapa seguinte, podemos observar que Angola não integra o grupo de países com o nível de riqueza per capita mais elevada como é comum entre os países com maior carga fiscal aduaneira. Podemos sempre usar a máxima muito apreciada na estatística e econometria que diz que “correlação não é necessariamente casualidade”, mas também não podemos ignorar que os países mais prósperos tendem a caminhar no sentido contrário da protecção aduaneira como medida isolada para o fomento industrial doméstico. O fomento industrial costuma ser mais eficaz com programas de subsidiação bem desenhados e controlados do que imposição de bloqueios aduaneiros, sem considerar possíveis contenciosos a nível da Organização Mundial do Comércio ou medidas de retaliação como tem anunciado o novo presidente dos EUA, Donald Trump, que claramente também é céptico sobre as observações que David Ricardo fez no início do século XVIII e até hoje se mantêm como quase unanimidade entre economistas: o comércio internacional, quanto mais livre for melhor será para todas as partes.

Multicaixa Express e os pagamentos móveis em Angola

No princípio de Janeiro de 2025 a EMIS, o principal provedor de serviços de pagamentos electrónicos em Angola publicou os dados de utilização da Rede Multicaixa que bateram todos os recordes anteriores e que pela primeira vez apresentam o Multicaixa Express (MCX) como o principal canal de realização de transacções da Rede Multicaixa e, consequentemente, o principal mecanismos para realização de transacções financeiras em Angola.

O modelo de criação de uma empresa para prestação de serviços de pagamentos detida pelos bancos comerciais que foi criada com suporte e participação do regulador (BNA) foi copiado ao modelo português. Assim, a EMIS em Angola nasce como “sósia” da SIBS portuguesa que até hoje é a principal fornecedora da tecnologia da EMIS e este modelo combinado com um sistema nacional de pagamentos funcional e adoptado pela generalidade do sector bancário angolano está na base da grande divergência com a revolução dos pagamentos móveis em África que teve início no Quénia com m-Pesa da Safaricom/Vodafone e espalhou-se pelo resto da África Oriental antes de se estabelecer como relevante em outras regiões do continente.

Relativamente ao volume transaccionado, o MCX respondeu por cerca de 36% do total de 35,1 biliões de kwanzas (c. USD 38,5 mil milhões) movimentados via EMIS em 2024 o que torna no elemento dominante dos pagamentos móveis em Angola mas, prevalece o desafio de serem popularizadas as soluções que reduzam a necessidade de transacções com utilização de notas e esta questão poderá estar relacionada com o facto da Rede Multicaixa ser suportada por clientes bancários cujo formalismo efectivo e percepcionado acaba por afastar uma franja relevante de usuários potenciais.

O formalismo do sistema bancário e a percepção de custo elevado e baixa conveniência foram explorados pela Safaricom no Quénia para implantar o m-Pesa como principal meio de pagamento no país uma vez que a rede permitia o acesso imediato a transacções com apenas um número de telemóvel válido e com utilização praticamente imediata, a conveniência e crescimento acelerado da rede de agentes que permitiam a conversão do crédito na carteira dos aderentes (wallets) em dinheiro físico foram essenciais para o crescimento consistente do m-Pesa que passou a ser adoptado pela generalidade dos prestadores de serviços e comerciantes como mecanismo de pagamento, o que reduziu a necessidade de levantamentos e contribuiu para o aumento dos aderentes e das transacções per capita.

O sucesso dos pagamentos móveis com base na tecnologia USSD revelou-se numa fonte alternativa de receitas e de implementação relativamente fácil para as empresas de telecomunicações e este facto levou a incorporação de uma estratégia de lançamento de soluções de pagamentos em grande parte dos mercados africanos e Angola foi uma excepção, na minha opinião, porque os níveis de rentabilidade do duopólio angolano (Unitel+Movicel) eram tão altos que as nossas operadoras não se sentiram pressionadas por fontes alternativas e no intervalo dos tempos de alta rentabilidade e a actualidade em que as mesmas empresas viram reduzidas as suas margens, a Rede Multicaixa cresceu e modernizou-se, sobretudo com o MCX e a sua evolução igualmente impressionantes.

As operadoras de telecomunicações nacionais perderam rentabilidade sobretudo porque as tarifas regulamentadas pelo INACOM não variaram no mesmo tempo e velocidade que os custos da operação e os pagamentos móveis passaram a ser vistos como solução para diversificação e aumento de receitas mas, para já, não se pode falar em sucesso e a expectativa é que o futuro melhore para as soluções da Unitel (Unitel Money) e Africell (Afrimoney).

O lançamento de soluções de pagamentos móveis com base em carteiras recarregáveis em Angola não se esgotou em iniciativas de companhias de telecomunicações, várias empresas de tecnologia digital ( e até bancos) têm procurado capturar a oportunidade mas nenhum destes projectos tem adopção material, sobretudo se comparados com o MCX que com a possibilidade de pagamentos com código QR e transferência expressa com base no número de telefone do receptor, pode de facto explorar a possibilidade de resolver a maka das filas nas caixas de pagamento automático (ATM) no final de cada mês, alegadamente porque boa parte da população recorre aos mercados informais e o pagamento em dinheiro físico continua a ser dominante nos referidos mercados e esta é outra divergência com a experiência de outros países africanos onde os pagamentos móveis servem para pagar as hortaliças na banca da esquina ou um táxi colectivo.

As diferentes tentativas de replicar a experiência com pagamentos móveis de outros países africanos em Angola parece que ignoram que na vasta maioria daqueles países não existia: (i) um sistema de pagamentos nacionais que reduz os custos de transacção na rede, (ii) uma plataforma de pagamentos electrónicos partilhada pelos bancos do sistema e (iii) empresas de telecomunicação acomodadas com as receitas dos serviços de comunicação tradicionais.

Angola escolheu um caminho nos pagamentos móveis mais próximo do europeu (centrado na digitalização das contas bancárias convencionais) do que africano que explodiu com a exploração da abrangente tecnologia USSD e capilaridade das redes móveis muitas vezes superior a dos balcões dos bancos.

Considerando tudo que escrevi acima, se tivesse que apostar num vencedor da batalha pelos pagamentos móveis em Angola apostaria na EMIS a quem cabe continuar a investir no MCX e na generalização dos pagamentos com códigos QR e transferências instantâneas. As outras iniciativas podem procurar explorar a oportunidades de massificação nos mercados informais como base de consolidação mas não tenho indicação que reúnam as condições neste momento de se tornarem no próximo m-Pesa ou mesmo Paypal angolano.

Petróleo ainda é o viagra da impotente economia angolana

Há 21 anos – no dia 4 de abril de 2002 – os representantes das forças armadas regulares de Angola (FAA) e do braço armado da UNITA (FALA) assinaram em Luanda o acordo que formalizou o final da longa guerra civil que acompanhou Angola desde o seu nascimento como nação independente em 1975 até àquele momento no princípio do século XXI. O 4 de Abril, hoje conhecido como “dia da paz” é provavelmente a segunda data mais importante de Angola independente e partilha como o 11 de Novembro, a data mais importante, o marco zero de um momento alicerçado na esperança colectiva.

Infelizmente, tal como 11 de Novembro, a realidade dos angolanos contrasta com as expectativas da maioria e com os discuros daqueles que se espera serem os fiés garantes da correcta execução das políticas que elevariam os angolanos da condição de humilhados para protagonistas de uma história de sucesso contínuo e abrangente

A não materialização da esperança dos angolanos é palpável e torna datas comemorativas como o dia 4 de Abril em dias que relembram os angolanos que o que lhes tem vindo a ser prometido continua por se materializar. O país continua longe de ser uma democracia funcional e a economia continua ancorada no sector petrolífero apesar de alguns avanços no caminho da diversificação.

No ano 2000 o PIB per capita corrente em Angola era de aproximadamente 700 dólares, valor que crescia para cerca de 3,1 mil dólares se considerarmos o paridade do poder de compra. Naquele ano, o preço médio do petróleo não chegou aos 30 USD/barril. O fim da guerra deu início ao período dourado do crescimento económico vertiginoso que foi suportado pela expansão da actividade económica não-petrolífera e, sobretudo, pelo crescimento da produção do petróleo (na sequência de investimentos feitos nos anos 1990 quando ainda havia guerra) num contexto de aumento contínuo do preço médio do petróleo.

AO PIB e Oil

O crescimento económico tem sido ditado pelo crescimento do sector do petróleo e a primeira década de paz efectiva coincidiu com a forte expansão do sector petrolífero que teve uma breve interrupção com a crise financeira de 2008 mas continuou a sustentar o crescimento do PIB angolano até 2014, ano em que o preço médio do barril do petróleo iniciou uma queda violenta. O
coprotamento do sector petrolífero veio lembrar todos que vivíamos uma fantasia e que a década dourada estava a ser desaproveitada.

Angola não investiu com qualidade na recuperação e aumento das infra-estruturas, de tal forma que estamos em 2023 e o novo aeroporto internacional de Luanda continua por inaugurar e não existem estradas de qualidade para ligação terrestre entre todas as províncias, a desorganização urbana de Luanda que alimenta calamidades na sequência de fenómenos naturais extremos é igualmente exemplo de falta de investimento nas infra-estruturas.

O investimento em educação que deveria contribuir para melhorar a produtividade transversal da nossa economia foi sempre negligenciado e as mudanças institucionais que poderiam transformar o nosso sistema político e o tornar mais alinhado com as demandas comuns também não aconteceram e em 2023 continuamos com o mesmo modelo de governação local e eleições autárquicas continuam a ser uma incógnita.

Para construção de uma nação é importante ter presente que a paz deve ser aproveitada para realizar o potencial social e económico da nação e este país iniciou em 2014 um processo de empobrecimento que não tem sido suficientemente discutido e a recuperação económica recente – que mais uma vez segue o ritmo do petróleo – não foi ainda suficiente para que as famílias se aproximem nos níveis de vida da década anterior e não tem evitado o sentimento generalizado de perda de esperança no futuro de Angola que continua atrelada ao petróleo apesar das reformas no sentido de redução desta teimosa dependência do petróleo, que teve os primeiros sinais mesmo antes da independência (como falámos aqui) e foi agudizado pelo descalabro das políticas económicas centralizadoras do pós-independência que combinadas com a guerra civil destruíram o tecido produtivo tanto na agricultura como na indústria transformadora.

Em resumo, os altos e baixos da nossa economia continuam a ser uma função do sector petrolífero porque toda dinâmica de crescimento está acoplada à capacidade do Estado realizar receita fiscal petrolífera para suportar o consumo público que é ainda um motor indispensável para outros sectores crescerem, incluindo o de serviços. As makas com o défice de formação de qualidade e infra-estruturas adequadas encarecem a produção nacional e reduz a capacidade de nos afirmarmos como um exportador diversificado de produtos manufaturados e agro-pecuários, apesar do custo relativamente baixo da mão-de-obra.

Os programas de iniciativa pública que visam diversificar o tecido produtivo são quase sempre focados em soluções de financiamento e não é visível a implementação de um programa transversal que ataque os problemas que afectam o custo de produção e a produtividade e por esta razão, o impacto dos diferentes programas é limitado e ao fim de 21 anos de paz, incluindo uma década com ventos mais do que favoráveis, continuamos a ter uma economia impotente que tem no petróleo o seu maior estimulador.

Mais províncias é a solução?

O governo de Angola anunciou recentemente o seu plano de implementar uma nova Divisão Político-Administrativa (DPA) que no limite acrescentará 6 novas províncias ao mapa de Angola por via da redefinição das fronteiras de 5 províncias que partilham fronteiras com países vizinhos: Malange, Uíge, Lunda-Norte, Moxico e Kuando-Kubango.

Os promotores desta iniciativa defendem que foram movidos pelo objectivo de promover o “desenvolvimento equilibrado do território nacional, de combate às assimetrias, da aproximação e da prestação de serviços públicos com maior eficiência assim como de ocupação integral do território nacional”.

Quando estamos à uma ano de eleições gerais e sem notícias sobre as prometidas eleições autárquicas, a iniciativa parece incompreensível e inoportuna, mesmo sem entrarmos nos eventuais méritos da mesma.

Na defesa desta iniciativa, a nós apresentada como de origem presidencial, o governo fez sair um vídeo que indica que a dimensão de algumas províncias e o facto de partilharem fronteiras com outros países foi um dos motivos da sua integração na “lista”, sendo que a Lunda-Sul foi excluída apesar de aparentemente cumprir com estes critérios. Mas a inconsistência do racional não termina aí.

Proximidade

A mim choca que em 2021 o Presidente da República entende que a solução para aproximar a governação dos cidadãos é reduzir a dimensão das províncias. Aparentemente o modelo de governação centralizado e sem participação dos governados na escolha de quem os governa não tem qualquer relação com ineficiência da governação provincial, pelo que deduzi das explicações dos autores desta medida aumentando o número de províncias, mantendo tudo o resto constante, a governação melhora.

Aparentemente, criando mais províncias, ainda que mantendo o nosso modelo anacrónico de governação local, mais facilmente será resolvido o défice de infra-estuturas que afasta as províncias uma das outras e limita grandemente o potencial de criação de riqueza.

Dimensão e demografia

A extensão territorial com comparações ao território de Portugal, tal como era feito na era colonial por outros motivos, foi um recurso comum no vídeo que assisti sobre a nova DPA em fase de auscultação pública. Curiosamente pouco é dito sobre a geografia e demografia destas regiões numa linha comunicativa que fala muito num registo semelhante ao que levou à Conferência de Berlim no final do século XIX.

O nosso governo dá a entender que para um país com mais de 1,2 milhões de km2 18 províncias é pouco porque algumas delas são comparáveis à área total de Portugal. Contudo, nada foi dito sobre a África do Sul que tem praticamente a mesma área que Angola (1.219.090 km2) e tem o território dividido em apenas 9 províncias, num país federalizado com três capitais e com mais 15 milhões de habitantes que Angola.

A questão da população parece não ser central na nova DPA. Por exemplo, o Censo 2014 indica que a gigante província do Kuando-Kubango era casa de apenas 2,1% da população nacional (24,4 milhões na altura) e 60,1% dos habitantes do Kuando-Kubango viviam no município do Menongue, assim, estamos a caminhar para a criação de províncias desérticas porque existe uma intenção esquisita de “ocupação integral do território nacional” como se tal objectivo dependesse da criação de novas províncias. Considerando a projecção da população do INE, em 2021 a população estimada de Angola é de 32,1 milhões e 658 mil vivem no Kuando-Kubango e destes 395 mil vivem no Menongue.

E o referendo?

Na nota introdutória do site criado para informação e recolha de posições no âmbito da auscultação em curso (dpa.gov.ao), somos informados que “em Angola, a alteração da DPA é da competência da Assembleia Nacional, mediante proposta submetida pelo Poder Executivo”.

Contudo, na minha modesta opinião, uma alteração desta magnitude num país democrático nunca deveria ser tão centralizada com a participação pública reservada à auscultação pública com contributos submetidos pela Internet e por eventos coreografados em alguns municípios.

A redefinição de fronteiras neste nível deveria exigir um referendo com campanhas pró e contra durante algum tempo e entregar a decisão para a maioria. Avançar com uma iniciativa dessas surpreendendo todos e reservar 30 dias para auscultação parece-me um acto autoritário travestido de democrático.

E as autarquias?

O modelo de governação centralizado que temos actualmente está falido há muito tempo e a sua substituição deveria ser um desígnio nacional mas parece que para o governo de Angola não existem razões para pressa. As eleições autárquicas prometidas para 2020 foram adiadas e com 2022 à porta, nada se fala da democratização do poder local que deveria acontecer antes do fim do mandato de 5 anos para o qual João Lourenço foi eleito em 2017.

A expectativa de muitos angolanos é que ser governado por alguém escolhido pela maioria local e com um mandato limitado no tempo e com fiscalização de um parlamento local, pode transformar a dinâmica de desenvolvimento dos nossos municípios e aproximar os interesses políticos dos eleitos daqueles que os elegeram e, por esta razão, fica difícil entender que na perspectiva do nosso presidente a solução pelos problemas da ineficiência da governação local passa por aumentar o número de províncias.

Enfim…

Fico triste em saber que ao fim de 45 anos no entendimento de alguns as nossas fronteiras internas ainda não estão maduras e que aumentando mais províncias porque algumas delas “são do tamanho de Portugal” na actual configuração é a solução para falta de estradas, falta de acesso à água, educação deficitária, questões de segurança e tantas outras que a meu ver beneficiariam do abandono imediato do modelo actual a favor da democratização do poder local.

Olhando para os problemas de Angola não consigo perceber a necessidade ou a oportunidade para em Agosto de 2021 estarmos a brincar de conferência de Berlim com esta discussão quando nunca foi abordada enquanto são olimpicamente ignoradas questões bem mais urgentes. Contudo, o jogo ainda não chegou ao fim e até o apito final há que manter a esperança no melhor dos resultados.

Os $24 mil milhões e a luta contra corrupção

Em 2016 a School of Advanced International Studies da John Hopkins University, agora muito famosa pelos números da COVID, no âmbito da sua Iniciativa de pesquisa das relações entre a China e África (China-Africa Research Initiative/CARI) publicou os resultados de uma pesquisa sobre os financiamentos de instituições chinesas (governo, bancos e empresas) à países africanos em que se destacou Angola com quase 25% do total da dívida, sobre o tema publiquei um artigo com mais detalhe em Junho de 2016. Voltei à ele porque o valor da dívida à entidades chinesas naquela época foi calculado em USD 23,6 mil milhões, um número quase gémeo do valor adiantado pelo presidente João Lourenço ao Wall Street Journal como o total da delapidação dos cofres públicos por agentes corruptos nos últimos anos.

Um elemento fundamental no combate à corrupção é a transparência e a necessidade dos processos serem primariamente judiciais e escrutináveis. Neste sentido, esperava naturalmente que estes números detalhados fossem apresentados pela PGR ou departamento que esta tutela que se ocupam pela recuperação legal dos activos ilegalmente subtraídos aos cofres do Estado e de empresas públicas. Assim, surpreende-me que os números tenham sido apresentados em primeira mão pelo presidente e que tenha escolhido, mais uma vez, um meio de comunicação estrangeiro para o fazer. Mas prefiro não escrever um artigo sobre isso, ao menos tenho a retirar de positivo a partilha destes dados com o público.

Na entrevista o presidente adiantou que os principais centros de desvio de fundos foram as empresas públicas do sector extractivo Sonangol e Sodiam, a primeira responde por USD 13,5 mil milhões dos USD 24 mil milhões do total desviado. O presidente adiantou igualmente que dos USD 24 mil milhões calculados pelas autoridades nacionais já estão sob custódia do Estado bens no valor de USD 4,2 mil milhões. Estamos a falar de «bens móveis e imóveis apreendidos ou arrestados no país, tais como fábricas, supermercados, edifícios, imóveis residenciais, hotéis, participações sociais em instituições financeiras e em diversas empresas rentáveis, material de electricidade e outros activos» e reside aí a minha maior preocupação.

Muitas notícias que vejo relacionadas com o Serviços Nacional de Recuperação de Activos fazem-me pensar que seria melhor alterar o nome da instituição para Serviço Nacional de Recuperação de Passivos porque apesar de existirem activos com grande valor entre aqueles que foram arrestados ou apreendidos, a lista conta com muitas entidades cujo valor está mais para o nulo ou negativo do que para o positivo. Empresas com dívidas astronómicas e geração débil de proveitos por norma não valem nada e focar a recuperação de activos na transferência de propriedade de problemas é prestar um desserviço à nação.

Na minha modesta opinião, o objectivo principal desta batalha deveria ser a recuperação de liquidez e aí está claro que a via da negociação e “convite” para o retorno voluntário não resultou. A persecução da via judicial parece inevitável se quisermos ter uma dupla vitória neste combate, a saber, (i) recuperar o dinheiro e (ii) instalar o efeito persuasor da justiça nosso país. O presidente faz alusão a identificação de uma série de activos domiciliados em países estrangeiros que poderão ser recuperados se for conjugado um esforço diplomático com de decisões judiciais. Assim, é necessário ter presente que evitar levar a tribunal os principais algozes da economia angolana dos últimos 15 anos poderá revelar-se num erro que nos ensombrará o futuro.

Numa democracia normal deveríamos ter no mínimo comissões parlamentares de inquérito à Sonangol e Sodiam, assim como a Fundo Soberano de Angola e à uma série de organismos públicos e privados, incluindo ministérios e institutos públicos de grande relevância como o INEA, por exemplo. Temperar o combate à corrupção com uma dose generosa de transparência emprestaria a empreitada a respeitabilidade que precisa.

A sensação que muitos angolanos têm é que o combate é selectivo e demasiado secreto. Por exemplo, recentemente veio a público uma resposta da PGR angolana às autoridades suíças que solicitaram informação sobre suspeitas que envolvem o empresário São Vicente e as autoridades angolanas responderam oficialmente que não tinham sido identificados indícios de crime e semanas depois na sequência de notícias sobre o tema serem publicadas em Angola a PGR deu início, com pompa e circunstância, procedimentos para recuperação de activos sob gestão de São Vicente que acabou preso preventivamente por indícios de crimes pouco depois. A luz destes factos, pessoalmente, tenho muitas dúvidas sobre seriedade e consequente sucesso da nossa luta contra corrpção e pela recuperação de activos, espero sinceramente ser surpreendido pela positiva.

COVID em Angola. Regras rígidas não evitam pior letalidade da região

A pandemia de COVID continua entre nós, a nível global e local o número de infectados cresce e crescem também as preocupações com a possibilidade da deterioração total da saúde pública em Angola se o número de casos positivos graves crescer exponencialmente. Olhando para a nossa região, apesar do número de infecções confirmadas ser relativamente baixo (eventualmente com significativa subnotificação por incapacidade de testagem) a taxa de letalidade em Angola é relativamente elevada, por exemplo, a 21 de Agosto a Zâmbia tinha 10.372 casos confirmados e 274 óbitos que resulta numa taxa de letalidade de 2,64%, a África do Sul tinha 599.940 infecções confirmadas e 12.618 mortes, taxa de letalidade de 2,10%, Moçambique com 3.115 infecções e 20 óbitos tem  uma taxa de letalidade de 0,64%, a Namíbia com 4.912 infecções confirmadas e 42 óbitos tem uma taxa de letalidade de 0,86%, a mesma data, segundo dados da OMS, Angola tinha 2.044 infecções confirmadas e 93 óbitos, uma taxa de letalidade de 4,55%.

Fonte: OMS

Estes números não favorecem a nossa causa, pelo contrário, transparecem algum fracasso do nosso combate à COVID, não tanto no número de infecções – que mais uma vez não pode ser devidamente julgado com baixa capacidade de testagem – mas sobretudo a nível da letalidade porque estamos claramente desviados do “grupo”. Por outro lado, parece que a resposta tem adoptado uma postura preguiçosa e pouco ou nada se tem feito para gerir melhor o risco da pandemia sem castigar tanto o impacto económico e, sobretudo, social.

Com efeito, a comissão interministerial a esta altura, na minha modesta opinião, já deveria ter criado condições para a flexibilização das medidas restritivas a nível da mobilidade. Não se pode explicar porquê que até hoje a província de Luanda continua praticamente inacessível para cidadãos que estejam noutras províncias que não se façam acompanhar de uma justificação laboral. O corte total das ligações aéreas, reservadas a voos irregulares para o transporte de carga e voos baptizados de “humanitários” parece desproporcional pelos constrangimentos que causam e pelas possibilidades existentes para mitigação dos riscos inerentes. A imposição de regras pesadas que bloqueiam o acesso ao país de cidadãos nacionais parece igualmente excessiva, sobretudo porque a esta altura já deveríamos ter criado condições para suportar um maior fluxo de entradas do exterior.

A comissão interministerial parece estar paralisada pelo medo e não se vê obrigada a encontrar soluções para que as medidas que adopta não agudizem os problemas económicos que potencialmente produzirão igualmente um número de vítimas de todo tipo.

Infelizmente a nossa estrutura económica e social é caracterizada por uma maioria a viver em condições de pobreza e um Estado sem mecanismos de suporte social suficientemente fortes para alívio das famílias mais afectadas pelo agravamento da situação económica e o impacto do isolamento contínuo de Luanda que precisa de uma abordagem mais consentânea com os custos astronómicos que está a criar para as economias de certas localidades.

A falta de pressão social efectiva, porque infelizmente a nossa jovem democracia precisa de melhorar, não pode ser explorada pelos decisores políticos para pautaram a sua acção pela regulação dos transportes públicos em Luanda e por refinamentos de medidas sobre o uso de máscaras faciais, é preciso a esta altura começar a implementar um plano de abertura do país para dentro e para fora, com medidas de segurança plausíveis e exequíveis.

A destruição de emprego em alguns sectores e o impacto da pandemia no mercado de petróleo vão adiar ainda mais uma possível mudança de trajectória da economia nacional que vinha em sentido decrescente há pelo menos 5 anos. Nesta altura começa a ser imperioso encontrar soluções de alívio de pobreza para a maior parte da população angolana, o governo angolano tem demonstrado nas suas acções que não tem capacidade financeira para tal, pelo contrário, no lugar de medidas contra cíclicas o governo tem estado a anunciar algumas medidas de agravamento fiscal para trabalhadores formais (IRT) e para as famílias e empresas no geral (IVA).

Não sendo expectável que o governo crie mais mecanismo de suporte directo às famílias, o mais indicado para aliviar os impactos da pandemia é dar mais espaço à actividade económica privada para permitir que esta consiga preservar algum grau de funcionalidade e capacidade de geração de riqueza.

Contudo, em termos gerais, as acções da comissão interministerial são confusas, guiadas mais por ímpeto securitarista e medo do que por ciência e bom senso económico. Angola parece estar ruas atrás de onde deveria estar nesta altura, o país continua fechado, as escolas estão fechadas e só recentemente se deu início à um diálogo sectorial para avaliação de uma possibilidade de regresso das actividades lectivas e os milhares de colaboradores do ensino privado continuam sem apoios oficiais e a viver num inferno de incertezas.

Tomei conhecimento hoje, 21 de Agosto, que por via GAVI (aliança global para vacinação) liderada pela UNICEF e Bill & Melinda Gates Foundation, Angola tem garantida a recepção de 12 milhões de doses de vacina que deverão servir para vacinação dos grupos de risco, uma vez que este número não cobre a população de 30 milhões, que no caso de não serem abrangidos pela primeira leva de imunização deverão aguardar pelas doses a adquirir com fundos próprios do Estado em termos que ainda desconheço. Espero que a priorização tenha como critérios principais a situação de saúde (idade e existência de comorbilidades) e risco de exposição (profissionais de saúde e outras pessoas nas linhas da frente) e não a posição social ou política que, por exemplo, já nos trouxe a situação de vermos deputados serem testados antes que médicos.

Espero que para breve seja tornado público um esboço de modelo de aquisição e acesso às vacinas e quais vacinas estariam em consideração por parte das autoridades angolanas, mas para já, andamos ainda a ajustar medidas destoadas como o internamento de todos os casos positivos e se o condutor solitário deve ou não conduzir de máscara.

  • este artigo foi editado no dia 21.08.2020 às 13H38: foi acrescentada informação sobre o acordo entre o Estado angolano e a GAVI para a disponibilização de doses de vacinas, tão logo estejam disponíves.

O desconfinamento é inevitável e necessário

A data de hoje, 23 de Abril, Angola tem confirmados 60 casos de COVID-19. A todos os níveis, olhando para os piores casos mundo afora ou mesmo a nível da região austral de África a nossa situação não é das mais graves sobretudo considerando os piores prognósticos da OMS. Ainda que considerando o número reduzido de testes e o critério de testagem desastroso que levou 6 semanas para testar aqueles que deveriam ser prioridade pela escassez de kits de testagem, em termos globais a nossa situação está longe de estar descontrolada.

O Governo angolano, apesar do estado de emergência declarado no final de Março e da renovação sucessiva da medida ainda que com ajustamentos, nunca chegou aos extremos experimentados noutras geografias mas ainda assim, a maior parte das pessoas foram obrigadas ou aconselhadas a ficar em casa e parte importante da vida social e económica foi suspensa e as consequências são comparáveis em todas geografias: queda acentuada da actividade económica e natural crescimento acelerado do desemprego.

Luanda

Os problemas económicos estão na raiz de muitos problemas sociais e como tal tornou-se insustentável negligenciar o impacto do desemprego na saúde global das sociedades e os governos estão a ver-se forçados a abraçar o desconfinamento quase com a mesma assertividade que implementaram medidas de confinamento porque no curto prazo a cura poderá revelar-se na causa da morte de muita gente, em particular nos países mais pobres como o nosso que preocupam as Nações Unidas que admitem que o mundo enfrenta a possibilidade de ver até ao final deste ano cerca de 130 milhões de pessoas em risco de morte por fome se não forem mitigados os impactos causados pelas medidas de contenção e prevenção contra a infecção por coronavírus.

O mundo vai aprendendo cada vez mais sobre a doença, sobre os riscos e sobre quem deve ser mais protegido para que se reduza ao máximo o número de vítimas mortais. Hoje é conhecimento comum que se for possível escolher uma única variável decisiva para a mortalidade por COVID, a variável a escolher será: idade. A letalidade entre os infectados mais velhos é muito mais elevada, por exemplo um estudo publicado na revista Science sobre a pandemia em França revela que a taxa de mortalidade entre pacientes com menos de 20 anos é 0,001% enquanto que para as pessoas com mais de 80 anos a taxa de letalidade registada foi de 10,1%.

France has been heavily affected by the SARS-CoV-2 epidemic and went into lockdown on the 17 March 2020. Using models applied to hospital and death data, we estimate the impact of the lockdown and current population immunity. We find 3.6% of infected individuals are hospitalized and 0.7% die, ranging from 0.001% in those <20 years of age (ya) to 10.1% in those >80ya. Across all ages, men are more likely to be hospitalized, enter intensive care, and die than women.

O impacto da demografia na mortalidade foi igualmente abordado num estudo publicado pela National Academy of Sciences dos Estados Unidos conduzido por um grupo de demógrafos que analisaram dados de vários países e concluíram que a estrutura demográfica é o factor mais decisivo na taxa de mortalidade, sendo que a cultura social (como contactos entre pais e filhos) e a dinâmica urbana (densidade populacional e utilização de transportes públicos) também têm um impacto relevante na evolução da pandemia.

The pandemic’s progression and impact are strongly related to the demographic composition of the population, specifically population age structure. Demographic science can provide new insights into how the pandemic may unfold and the intensity and type of measure needed to slow it down. Currently, COVID-19 mortality risk is highly concentrated at older ages, particularly those aged 80+ y. This age pattern has been even more stark in Italy, where, as of March 30, 2020, the reported CFR is 0.7% for those 40 y to 49 y, and 27% for those >80 y, with 96.9% of deaths occurring in those aged 60 y and over. Current CFR are likely overestimated due to underascertainmet of cases. In South Korea, with broader testing and strong health care capacity (only 158 deaths), the current CFR for those 80+ y is still an alarming 18.31%.

Estes dados recentes, formulados após melhor conhecimento sobre a evolução da doença e os seus impactos, não podem ser ignorados na formulação de políticas que não devem nunca deixar de contemplar a protecção dos grupos mais vulneráveis a COVID mas que não podem esquecer de proteger aqueles que são mais vulneráveis ao confinamento, cujo impacto negativo é mais severo nas classes mais pobres que no caso de Angola dependem grandemente de rendas diárias de negócios informais.

A impossibilidade de operar dentro da normalidade num país onde não existem mecanismos de suporte social agravou ainda mais a situação precária de muitos angolanos que enfrentam um futuro cada vez mais incerto com a principal fonte de receitas de exportação do país, o petróleo, a passar por uma travessia no deserto sem fim a vista.

O Governo segundo todas as cogitações deverá substituir o estado de emergência por estado de calamidade cujas medidas são ainda conhecidas mas antecipa-se maior abertura e provavelmente uma mudança estratégica na comunicação com o desfasamento progressivo da mensagem “fique em casa” por algo do género “mantenha-se em segurança” porque infelizmente ficar em casa é um luxo e com o prolongar das medidas está a tornar-se um luxo para uma franja minúscula da nossa sociedade, ainda que este facto é uma realidade global no que as classes diz respeito como demonstra um estudo recente da Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa.

Os dados preliminares parecem indicar que a infeção por Covid-19 é marcadamente desigual, afetando de forma mais acentuada os concelhos e países que já têm um perfil socioeconómico mais precário e podendo mesmo exacerbar as vulnerabilidades socioeconómicas pré-existentes ao nível individual

Apesar de notícias encorajadoras sobre vacinas e potenciais terapias nas últimas semanas, a possibilidade de não termos uma vacina eficaz no curto-médio prazo é real e como tal, aprender a viver com o vírus a circular entre nós é fundamental porque a paralisação generalizada da vida económica é possivelmente mais perigosa e num contexto de evolução económica recessiva que Angola vive há 4 anos induzir a economia ao coma é uma receita para o desastre sobretudo considerando o número reduzido de infecções e da estrutura etária de menos risco como mostram diferentes estudos. Com efeito, ainda que aumentam as infecções, não é expectável – apesar do sistema de saúde sofrível – uma alta taxa de mortalidade por COVID em Angola que tem uma idade média de 16,7 anos que compara com os 47,3 anos da Itália.

Por outro lado, a abertura “unilateral” poderá ser apenas uma atenuante para a gravidade dos problemas económicos de cada país até que o mundo todo esteja em condições de normalizar, o que configura um desafio mundial na busca de ideias e soluções para um desconfinamento com menos riscos possível para generalidade da nossa multifacetada vida.

O desconfinamento é assim, inevitável e necessário sob pena de criar mais problemas do que resolver, sem prejuízo de serem necessários ajustamentos em face de alterações da tendência das infecções.

Privatizações, pobreza e o consumo

O Governo angolano pretende nos próximos tempos transferir da esfera pública para a privada um conjunto de activos no âmbito do programa de privatizações (PROPRIV). O histórico empresarial do Estado angolano desde que o país se tornou independente é deprimente, em termos globais as empresas apresentam grandes fragilidades a nível de gestão e deficiente capacidade comercial para sua sustentabilidade.

A privatização trará em teoria melhor gestão, mais tecnologia e aumento da capacidade das empresas gerarem fundos para prossecução dos seus objectivos económicos e financeiros e nesta equação consta o consumo, que deverá ser a fonte primária de receitas necessárias para manter as empresas em operação.

Contudo, um obstáculo importante para termos mais consumo privado é o nível médio de rendimentos em Angola que é muito baixo, cerca de 15 mil kwanzas mensalmente por família segundo o INE (mediana nacional). A desigualdade que foi construída ao longo de anos de uma longa guerra civil e de uma governação inadequada criou um reduzido grupo com capacidade consumidora para além dos meios de necessidade básicos e uma grande maioria que alterna entre a pobreza e a miséria e esta realidade limita sobremaneira o mercado de muitas empresas. Nos últimos anos muitas empresas foram forçadas a vender a preços fixados pelo Governo para que os seus consumidores pudessem pagar em troca da promessa de subsídios a preços e, muitas vezes, realização por parte do Estado de investimentos necessários para a sua operação.

A privatização, em teoria, dita o fim deste modelo de gestão e obrigará os novos donos a depender de proveitos que resultam da venda de bens e serviços, mas não é garantido que existirá a procura necessária no curto/médio prazo em face do nível de rendimentos do consumidor médio angolano que no presente tem acesso à alguns bens e serviços porque têm preços subsidiados ou porque o fornecedor tem problemas a nível da cobrança.

Em outros mercados alguns investidores conseguiram negociar níveis de consumo mínimos que na prática forçam o Estado a continuar a subsidiar alguns negócios quando não são alcançados alguns objectivos comerciais. A questão da pobreza poderá ser aliviada com melhor investimento e gestão mais eficiente de alguns activos que hoje são públicos e passarão em breve para mãos privadas, mas a transferência de propriedade além de não ser uma fórmula infalível para melhorar os resultados pode muitas vezes expor problemas que a mera alteração de proprietário não resolvem porque a herança dos anos de gestão pública errática não podem ser resolvidos no curto prazo.