A coroa dinamarquesa e a maka do “câmbio de 10”

Uma das histórias mais fascinantes da economia global nos últimos tempos é a centenária farmacêutica dinamarquesa Novo Nordisk que num espaço relativamente curto tem alternado a posição de maior empresa europeia em capitalização bolsista com o grupo francês LVMH, empurrada pelas expectativas de dois dos seus medicamentos (Ozempic e Wegovy) que inicialmente foram desenhados para tratar diabetes e depois de resultados promissores na perda de peso passaram a alimentar expectativas sobre o real valor destes fármacos para o gigante mercado da redução de peso para diferente razões.

E a pergunta que se segue é: que relação existe entre diabetes, coroa dinamarquesa e taxa de câmbio AOA/USD = 100 (a.k.a “câmbio de 10”)? Na verdade nada, mas a gestão da moeda dinamarquesa ajuda-nos a entender porquê que o BNA em 2015 foi alargando a banda de variação da nossa taxa de câmbio até proclamar mais recentemente o regime de câmbio flutuante.

O banco central dinamarquês adoptou no início da década de 1980 um regime câmbio fixo que ancorava o valor da sua moeda ao marco alemão em busca de estabilidade cambial. Com a adopção do Euro no início do século XXI o peg da moeda dinamarquesa passou a ter como referência a moeda única europeia e o regime é suportado por um acordo de taxas de câmbio fixo com o Banco Central Europeu com uma taxa de câmbio de referência e uma banda de flutuação acordada. A defesa da taxa de câmbio é o mandato principal do banco central dinamarquês que recorre aos instrumentos clássicos de política monetária para responder à dinâmica do mercado cambial e manter a taxa de câmbio fixa com o Euro.

A valorização da Novo Nordisk tem estado a pressionar a procura pela coroa dinamarquesa e este movimento acentuado forçou o banco central dinamarquês a reforçar as reservas em euros (compra no mercado) e a baixar as taxas de juro para reduzir a atractividade em produtos de investimento de médio/longo prazo denominados em coroa dinamarquesa cuja procura estava igualmente a pressionar a taxa de câmbio fixa.

O que tem estado a fazer o Banco Nacional da Dinamarca é o que o Banco Nacional de Angola perdeu a capacidade de fazer por volta de 2014 quando iniciou uma defesa vigorosa da taxa de câmbio do Kwanza contra as moedas fortes e acabou forçado, já em 2015, a fazer um ajustamento mais pronunciado ao preço de transação da nossa moeda.

Evolução da taxa de câmbio AOA/EUR (Fonte: Banco de Portugal)

Como já abordado neste espaço e até recentemente, a economia angolana está toda dependente dos altos e baixos do sector petrolífero em termos de produção e preço. A década de 2000 foi marcada pelo crescimento da produção e o aumento contínuo dos preços do petróleo e neste contexto as reservas internacionais líquidas angolanas conseguiam suportar uma taxa de câmbio artificialmente baixa que permitia aos angolanos o consumo de bens e serviços do estrangeiro a preços bem mais baixos e sendo um país com elevado nível de consumo de bens importados, a taxa de câmbio era igualmente utilizada como principal instrumento para redução contínua do nível dos preços.

Como o investimento em infra-estrutura e formação técnica não acompanhou o nível de consumo, a falta de crescimento da produtividade doméstica foi compensada pelo caminho fácil da importação de bens (tanto essenciais como maquinário) e serviços (sobretudo consultoria e viagens ao exterior) num movimento pontuado pela política monetária de manutenção do “sagrado câmbio de 10”. Contudo, esta política depende da capacidade do BNA entregar ao mercado a quantidade de divisas alinhada com a procura de um custo de aquisição de divisas baixo e enquanto aumentava o valor das exportações naquele contexto de petróleo caro e crescimento da produção o BNA defendeu o câmbio de 10 entregando ao mercado tudo o que procurava, sem qualquer preocupação especial com a capacitação da economia nacional como um todo, mantendo intacta a dependência do sector petrolífero.

No início da década de 2000, quando Angola iniciou a sua década de crescimento acelerado no pós-guerra, a Argentina foi forçada a abandonar o regime de câmbio fixo que mantinha há pouco mais de 10 anos que retirou competitividade às exportações do país e contribuiu para o crescimento da dívida em dólares das empresas e famílias e esta realidade agudizou a crise económica que até hoje caracteriza a economia argentina.

O que a Argentina tentou e falhou, Angola tentou e falhou. A China tem conseguido com mais sucesso precisamente porque tem “reservas intermináveis” de moeda estrangeira por ser um dos maiores exportadores do mundo. Apesar de estar exposta à política monetária americana como fiz referência neste artigo sobre a trindade impossível, a China tem condições para defender o seu regime de taxa de câmbio fixo que nós nunca tivemos e não é inteligente acreditarmos que a combinação perfeita de factores favoráveis sem grande acção do nosso lado se vá repetir.

Em face do óbvio, o BNA teve que abraçar um regime de taxa de câmbio flutuante para evitar a delapidação das Reservas Internacionais Líquidas e problemas maiores para a economia nacional. Contudo, a correcção tem efeitos dolorosos porque na década dourada a abundância não foi aproveitada para construir uma economia mais diversificada, suportada por gente melhor formada e mais produtiva, de tal forma que a moeda depreciada não tem impulsionado a exportação de bens e serviços, salvo raras excepções.

Para as economias de pequena dimensão, sobretudo no mundo globalizado, a manutenção de uma moeda própria é muito desafiante, a solução de regimes de câmbio fixo permite estabilizar os preços mas têm mais sucesso quando existe um acordo oficial entre a autoridade monetária de todas as partes e ainda assim não estão livres de desafios e quase sempre podem ser resolvidos ou atenuados pela capacidade da economia ser competitiva no comércio externo. No limite, a solução passa pelo abandono da moeda nacional a favor da adopção de uma moeda forte sem participação directa na política monetária ou participar num regime de moeda única a semelhança do Euro ou algo semelhante a Common Monetary Area na África Austral que junta a África do Sul, Namíbia. Lesotho e Essuatíni sob gestão do banco central sul-africano (South African Reserve Bank).

Como queremos manter a total soberania sobre a nossa política monetária e andar a passo lento no sentido da alteração estrutural da nossa economia, vamos ter que continuar a subjugação do sector petrolífero cujo preço não controlamos e o nível de produção tende a ser estático no curto prazo, sendo que no nosso caso a tendência actual é redução progressiva. Em resumo, meus caros, “câmbio de 10” era um sonho fabricado do qual acordámos abruptamente e o nosso foco deve ser construir novos sonhos, suportados pela nossa capacidade de criarmos produtos de qualidade com procura global como os fármacos da Novo Nordisk e se ancorarmos o Kwanza numa moeda forte o BNA poderá ter mais força para defender a moeda como faz o Banco Nacional da Dinamarca com a sua coroa.

Considerações sobre o Plano Massano

No dia 14 de Julho o novo Ministro da Coordenação Económica, José de Lima Massano, anunciou medidas de emergência que visam aliviar o impacto da crise económica na vida dos cidadãos. A dita crise é caracterizada pelo aumento do custo de vida e redução das oportunidades de emprego o que implica redução da capacidade de consumo das famílias e maior dificuldade para rentabilização dos mais distintos negócios.

O que chamo de “Plano Massano” contém (i) redução e isenção de impostos para alguns produtos e serviços e (ii) medidas que visam atacar as makas do ambiente de negócio.

A nível de impostos, o governo aposta na redução do IVA dos produtos alimentares e na possibilidade do IVA de equipamentos importados ser pago em prestações. O governo vê ainda na isenção do Imposto Predial nas transmissões de imóveis um elemento dinamizador para certos negócios no imobiliários (até 40 milhões de kwanzas, sendo que entre +Kz 40 milhões e Kz 100 milhões passa a haver um desconto de 50%). O Plano Massano inclui também a isenção de Imposto de Selo para promoção imobiliária e registo de capital social de empresas.

A redução do IVA para alimentos é uma medida simples de entender mas poderá ter o seu impacto limitado pelo grau de informalismo da nossa economia, mas é sempre melhor pagar a caixa de coxa de frang com 7% de IVA do que com 14%.

Das medidas que visam reduzir a factura fiscal nas transacções imobiliárias de menor valor o impacto esperado não deve ser material porque o maior tema continua a ser a baixa disponibilidade de rendimentos das famílias para aquisição de imóveis e o Aviso 9 do BNA que visa financiar melhorar o acesso ao crédito habitação está longe de ser um sucesso, principalmente porque é um crédito de longo prazo e insegurança laboral da maioria reduz significativamente o número de clientes potenciais.

Uma das iniciativas anunciadas foi a criação do Balcão Único do Exportador que visa criar um sistema facilitador das exportações não-petrolíferas e é uma boa medida porque as poucas empresas que exportam de forma consistente reclamam com frequência das barreiras burocráticas e níveis de serviço de diferentes entidades públicas envolvidas, mas é mais uma medida que ajudará quem fez o milagre de se colocar na posição de exportador mas pouco faz para que não seja preciso um milagre para as empresas se tornarem competitivas na exportação dos seus bens e serviços, como infra-estruturas com impacto nos custos da operação e a criação de um caminho para melhorar a qualidade média do trabalhador local (reforma educativa e melhor financiamento do sector).

Há igualmente uma medida que visa melhorar o acesso e o registo de terra, é uma medida necessária e o registo de propriedade tem potencial para melhorar a capacidade das empresas apresentarem garantias aos credores e pode ajudar a fazer crescer a receita fiscal porque alarga a base de cobrança de imposto sobre a propriedade e, por esta razão, a melhoria da capacidade de registo de propriedade não se pode limitar à terrenos rurais mas sim às novas zonas de desenvolvimento urbano das principais cidades do país uma vez que a incapcidade de registar propriedade é um velho problema que abordei há anos mas os progressos continuam lentos.

Uma das medidas mais vistosas é provavelmente a isenção de vistos de turismos para curta estadia para todos os portadores de passaportes de países da CPLP e do G20. A medida pode ajudar a vender Angola como destino turístico e facilitar descolações de negócios de curta duração, é uma medida que peca por tardia mas provavelmente não produzirá impacto material no curto prazo.

Angola infelizmente não é um destino atractivo para o investimento externo, sobretudo nesta nova realidade de crescimento que varia entre o modesto e o nulo, ao contrário da década de 2000 quando o sector petrolífero puxou a Angola do pós-guerra para um crescimento económico alucinante que infelizmente foi muito mal aproveitado e as bases para o desenvolvimento não foram estabelecidas.

Como destino turístico, o nosso país tem primeiramente que fomentar o turismo doméstico e em seguida deveria se estabelecer como uma opção para os turistas do princial mercado emissor da região, a África do Sul o que teima em não acontecer apesar de existir isenção de vistos para sul-africanos e isto deveria nos fazer ajustar as nossas expectativas quanto ao potencial de atracção de turistas de países do G20 ou mesmo das principais economias da CPLP (Portugal e Brasil) com quem Angola tem maior proximidade culturual.

Em resumo, o Plano Massano traz uma série de medidas que fazem sentido mas das quais não podemos esperar uma revolução que traga mais investidores e turistas para Angola no curto ou mesmo médio prazo, presumindo que tudo o resto se mantenha como hoje. Podemos dizer que o Plano Massano representa um tratamento paliativo para um doente mórbido, mas como enquanto há vida há esperança, certamente aparecerá o tratamento adequado que evitará a morte do paciente.

Portugal e a celebração no presente de um passado complexo

Portugal é um dos países mais antigos da Europa, o continente que se convencionou chamar de “velho mundo” em contraste com o “novo mundo” que é precisamente uma perspectiva Europeia e está intrinsecamente ligada a história de Portugal e a parte desta história mais celebrada pelos portugueses.

Em Portugal, 10 de Junho é o “Dia de Portugal e das comunidades portuguesas” e neste dia para além de se celebrar os portugueses espalhados pelo mundo, é um dia para dar glórias aos protagonistas da história de Portugal, em particular os destacados no Padrão dos Descobrimentos em Lisboa.

Padrão dos Descobrimentos, Lisboa – Portugal (foto de Rui Sérgio Afonso) 

Os navegadores que no século XV iniciaram a empreitada de viagens de exploração para “novos mundos” em nome do Reino de Portugal alteraram a história daquele pequeno território e do mundo. Os sonhos iniciados no sul de Portugal acabaram por ser a génese da colonização brutal de outras regiões do mundo, em particular as Américas e África, sendo que o continente berço serviu de fonte primária de mão-de-obra escravizada para materialização do projecto colonial europeu. O facto da colonização ser indissociável da violência é que suporta nos dias de hoje vários movimentos que defendem a não celebração dos navegadores portugueses e de qualquer resultado do longo processo de colonização europeia.

Na minha perspectiva, a história serve basicamente para os homens entenderem o seu passado, como este pode explicar o presente e impactar o futuro e por esta razão deve ser contada por historiadores sem compromissos com agendas paralelas. Por outro lado, defendo que a história não deve ser usada como um palco para resolução de contendas do presente. Contudo, compreendo que a história pode ser a base para correcção de erros ou compensação de injustiças desde que a “emenda” seja realizável e com benefícios superiores aos custos globais para a sociedade.

Infelizmente, a história é frequentemente usada para encaixar diferentes narrativas de agendas do presente o que tem sido problemático em várias ocasiões, desde versões monodimensionais que mais se assemelham a fábulas de heróis e vilões à simplificações de realidades complexas sem qualquer contextualização que acabam por levar as pessoas a julgar o passado com olhos do presente.

O movimento dos descobrimentos, na terminologia da historiografia tradicional portuguesa, tem uma inegável base empreendedora suportada por liderança ambiciosa, habilidade negocial, coragem, tecnologia e orientação científica. Quando o Infante Dom Henrique se propôs a liderar um movimento de navegadores para revelar aos portugueses mundos que desconheciam, tinha presente que seria necessário envolver os melhores homens (incluindo a Ordem de Cristo) e a melhor tecnologia de construção naval disponível e a consistência das viagens acabou por fazer avançar ainda mais a tecnologia, desde meios e mecanismos de navegação à cartografia e astronomia, tudo isto é fonte de inegável orgulho para o povo que os exploradores representavam e cuja epopeia Camões magistralmente relatou nos “Lusíadas”, obra maior da poesia portuguesa, inspirada em factos mas naturalmente carregada de ficção.

A ficção glorificadora costuma ser uma das fontes do problema com a celebração da história dos navegadores e da colonização portuguesa porque muitas das vezes carece de contextualização e acaba por chocar sensibilidades numa sociedade moderna mais diversa. Neste campo, o destaque particular vai para o papel-chave de Portugal no desenvolvimento do comércio transatlântico de escravos. Como é conhecimento geral, os portugueses não inventaram a exploração escrava, que era um elemento presente na generalidade das sociedades da época, com diferentes graus de violência e distintos processos de escravização. No entanto, o comércio transatlântico na base da exploração industrial moderna da mão-de-obra escrava foi desenvolvido primariamente por Portugal que entre o final do século XV e meados do século XVII foi praticamente a única potência marítima europeia a transportar sistematicamente pessoas escravizadas de África para o sul da Europa e, sobretudo, para as Américas em embarcações de grande porte, o que se poderia considerar uma evolução do tráfico transariano liderado por comerciantes da península arábica que devastou as populações a norte da África Central.

A importância de Portugal no infame comércio era de tal modo central que os holandeses quando ocuparam partes do norte do Brasil para exploração agrícola em grande escala, complementaram a conquista do “modelo português” com a ocupação de feitorias portuguesas na costa do actual território angolano, com destaque para Benguela e – sobretudo – Luanda que já era na altura o maior porto de embarque de escravos para as Américas. As outras potências europeias entraram activamente no comércio de escravos nas rotas transatlânticas com mais de 100 anos de atraso em relação a Portugal que era, naturalmente, a referência para o modelo baseado no engajamento com reinos africanos, estabelecimento de bases na costa de África e mecanismos de acesso à mão-de-obra escrava para venda aos colonos nas Américas que passava pelo aproveitamento de diferenças políticas, fomento de guerras, captura e manipulação de lideranças locais e escravização como punição judicial nos territórios sob seu controlo.

O processo de escravização resultou na exploração extrema dos africanos, que desumanizados eram considerados como mercadoria, de tal forma que estatisticamente eram registados como produto exportado, naquele que foi um dos maiores e mais violentos processos de migração forçada da história da humanidade e era apenas um dos pilares da colonização europeia das Américas e de África, que incluiu genocídios e subjugação violenta durante séculos de pessoas etnicamente diferentes, factor base da construção e estruturação do racismo que até hoje se faz sentir na maior parte das sociedades.

Infelizmente, a história da humanidade está repleta de episódios em que campos opostos se cruzam e objectivos distintos resultam em conflitos violentos que sustentam a construção de lendas de um lado e na secundarização e humilhação dos vencidos. Esta lógica de glorificação de vencedores de contendas para construção da identidade das nações é comum na generalidade das sociedades, desde vikings do norte da Europa que massacraram populações nas ilhas britânicas e na Europa continental aos mongóis, romanos e otomanos que conquistaram vastos territórios de espada em punho.

A dificuldade em conciliar esta lógica antiga com o aceitável nas sociedades modernas leva à várias posições que, na minha modesta opinião, são problemáticas. Se por um lado, existem indivíduos que entendem que os heróis do passado devem ser abertamente celebrados enquanto escolhem deliberadamente destacar os seus feitos omitindo as externalidades negativas das suas acções, existe por outro lado uma posição igualmente maximalista que defende a nulificação de qualquer feito cujo protagonista esteve factualmente envolvido em acções que violentaram grupos de pessoas, sobretudo, as vítimas de migração forçada para escravização e os autóctones violentados em processos de colonização.

O grupo que se opõe a qualquer tipo de celebração dos “descobrimentos portugueses” justifica sempre que deste processo resultou a destruição de um sem número de comunidades e a separação de famílias pela “mercadorização” de seres humanos oficialmente desumanizados com efeitos nas sociedades actuais. Este grupo entende que (i) os avanços tecnológicos, (ii) vitórias impensáveis contra os desafios impostos pelo mar ou (iii) qualquer troca cultural que independentemente da circunstância contribuiu para criação de um novo mundo não são grandes o suficiente para serem celebradas sobre o sofrimento de um sem número de vítimas da globalização iniciada pelos portugueses.

Eu sou natural de Luanda, local do maior ponto de saída de escravos africanos para as Américas e tenho perfeita noção do sofrimento associado a este processo, em particular no outro lado do Atlântico, mas ainda assim penso que é excessivo exigir aos portugueses que não celebrem de forma alguma os protagonistas do movimento dos navegadores que em nome de Portugal ofereceram àquela nação “novos mundos”, a semelhança dos conquistadores do passado que com violência também criaram impérios igualmente celebrados. Contudo, defendo que a fotografia a apresentar tem que incluir mais destaque a todo o processo de expansão português, incluindo a ocupação violenta e o papel de destaque que Portugal teve no comércio transatlântico de escravos.

A história dos povos está repleta destas contradições que aos olhos da sociedade moderna e sem a devida contextualização tornam o passado demasiado pesado para ser celebrado. Em Abril de 2018, escrevi sobre a participação da Rainha Njinga Mbandi no comércio de escravos e porquê que era errado reduzir a soberana do Ndongo e Matamba a uma mera comerciante de pessoas precisamente porque a história sem contexto está destinada a interpretações problemáticas e, nestes casos em particular, a simplificação não contribui para construção de uma posição mais equilibrada.

A contextualização permite-nos, por exemplo, entender as diferenças entre os processos de escravização e o modelo de exploração de escravos nas duas costas do Atlântico e como a procura por escravos africanos para colonização das Américas afectou a política nos reinos africanos. Sendo factual que o nível de tolerância à exploração de seres humanos evoluiu de forma regressiva ao longo de séculos, é entendimento geral que a escravização sempre foi vista como um castigo tanto para derrotados de guerras como punição judicial, extensivamente explorada pelas autoridades imperiais portuguesas da época.

Na questão do passado português, na minha modesta opinião, a abordagem mais equilibrada é dificultada por um duelo de extremos que por um lado tem quem venda a versão de um império pacífico que cresceu na base da diplomacia e engenho e por outro lado temos quem reduz os exploradores a piratas e desclassifica qualquer outra acção que tenha resultado do movimento de exploradores. Tendo presente que os extremos dos dois lados acabam por causar ruído numa conversa que se quer balanceada, a versão glorificadora dos “descobrimentos” temperada com o revisionismo histórico do luso-tropicalismo que vende a versão de um colonizador integrador e criador de sociedades multi-étnicas e quase igualitárias é particularmente problemática porque encontra na maior parte das vezes a oposição tanto da ala que defende a demolição do monumento dos descobrimentos como de quem busca uma abordagem equilibrada do passado.

O cruzamento da história que coloca, por exemplo, angolanos e portugueses em lados opostos na maior parte da história, tem também impacto nas reacções de certas posições sobre eventos da história partilhada, provocando a natural hipersensibilidade de protagonistas da mesma história mas com interesses quase sempre dissonantes. Contudo, o passado problemático é um traço comum para maior parte dos países porque, regra geral, são celebrados líderes conquistadores que na defesa dos seus interesses acabam por atropelar interesses de terceiros e a celebração das suas vitórias naturalmente representa um período traumático do outro lado.

A história quando vista como história, com a maior neutralidade possível e com a noção do tempo em que se desenrolaram os acontecimentos, não é fonte de polémicas. A necessidade quase humana de buscar no passado heróis para celebrar no presente acaba por alimentar a construção de narrativas que sobrevalorizam preferências pessoais e do presente em detrimento da razoabilidade e maturidade necessária para usarmos a história como um veículo de conhecimento que nos ajuda a compreender o presente e não como uma massa manipulável a medida de interesses pessoais.

Em suma, o conceito de celebração do passado é inultrapassável mas é pela sua natureza, problemático. As visões maximalistas que defendem uma versão cor-de-rosa do passado e a visão que defende a não contextualização para análise de acontecimentos de épocas que nos precederam não são de forma alguma o caminho. O que desejo é que Portugal possa celebrar o seu passado sem subordinar a parte menos positiva aos pontos que considera áureos e que todos nós possamos ter maturidade para entender todas as camadas da história e o momento em que certas decisões e acções foram tomadas.

Esperança Moribunda 3.0 e a fuga dos angolanos

Tal como em Angola, nos anos 1990 a vida política e social da Nigéria era grandemente caracterizada pela incerteza, violência e corrupção. Neste contexto, naturalmente, as pessoas perdem a esperança no futuro da sua terra e torna-se palpável uma vontade generalizada de abandonar o país, de imediato ou no médio prazo. No magnífico romance “Americanah” de Chimamanda Ngozi Adichie há uma passagem em que se referindo à Nigéria dos anos 1990 uma personagem diz: “um dia, vou acordar e todas as pessoas que conheço, morreram ou abandonaram o país”.

“Americanah” conta a história de uma jovem nigeriana nas décadas de 1990 e 2000 mas poderia ser a história de uma jovem angolana que sem esperanças no futuro do seu país sentiu-se obrigada a emigrar mas teve a esperança renovada no final da década de 2000 e voltou à terra natal para participar no que acreditava ser uma nova era, com estabilidade política, prosperidade económica abrangente e progresso social. Infelizmente, em Angola, a crise económica iniciada com a queda do preço do petróleo em 2014 que empurrou milhões de volta a pobreza e causou uma erosão na classe média emergente começou a matar a esperança renascida na década de 2000 com o fim da guerra e o crescimento económico vertiginoso sustentado quase que inteiramente pelo mercado petrolífero favorável.

A falta de progressos significativos no campo social e a percepção generalizada de um défice democrático que limita a capacidade do cidadão comum influenciar o sentido do seu próprio destino trouxeram de volta o sentimento de fuga e confirmou a inversão da tendência dos anos 2000, com a emigração a voltar a suplantar significativamente o retorno de angolanos que viviam no exterior, tanto como estudantes ou como imigrantes económicos.

Em Novembro de 2022, o Serviço de Emigração e Estrangeiro (SME) justificou as dificuldades na emissão de passaportes com a “fuga de angolanos para o exterior“. A declaração do representante do SME só confirma a percepção de muitos de nós que conhecemos pessoas que emigraram ou pretendem fazê-lo em breve. A notícia do Novo Jornal avança como números que confirmam que os angolanos estão a “responder com os pés” a falta de esperança no futuro do país: saíram de Angola em Outubro de 2020, 3.609 angolanos que compara com 11.719 em Outubro de 2021 e 21.865 em Outubro de 2022.

Os números do Gabinete de Estudos Estratégicos de Portugal indicam que inversão da tendência da imigração angolana em Portugal teve início em 2018 que foi o primeiro ano desde 2007 que o número de residentes angolanos em Portugal cresceu.

O crescimento da emigração económica para Portugal teve um efeito significativo nas remessas de angolanos que cresceram 53,6% em Abril de 2021 face ao período homólogo segundo dados do Banco de Portugal compilados pelo jornal Expansão.

E de repente a década de 2020 começa a ficar muito parecida com a década de 1990 e início da década de 2000, com angolanos a construírem grandes comunidades lá fora, com pessoas anónimas e cada vez mais artistas a terem um país estrangeiro como casa e solução para realização dos seus sonhos. O músico angolano Don Kikas depois de fazer a música “Esperança Moribunda” viu-se obrigado a fazer a segunda parte por não vislumbrar a mudança necessária em Angola e temo que vai ter que fazer a terceira parte porque as expectativas continuam baixas e a falta de compromisso com o longo prazo de parte significativa da população tem efeitos económicos devastadores, em particular a nível do consumo de bens duradouros como compra de residências ou mesmo a realização de investimentos.

O país vive um momento em que boa parte das pessoas deposita muito pouca esperança no seu futuro e que o grosso das pessoas das classes mais afluentes encaram o país como um instrumento do presente para construção de um futuro no exterior. A percepção é que existe falta de compromisso da elite com o futuro do país – em particular a elite governativa – e esta realidade bloqueia a criação de um projecto de nação que alimente a esperança da maior parte dos angolanos. A inversão desta tendência não será conseguida com apelos ao patriotismo ou sacrifícios, Angola continua a ter um potencial inegável que apenas será realizado com reformas profundas no campo político porque continuo a acreditar que o problema económico de Angola é, na essência, um problema político.

Apesar dos factos justificarem, não gostaria de ver uma terceira versão de “Esperança Moribunda” mas não consigo fugir da realidade de acordar cada vez mais num país em que muitas pessoas que conheço ou estão fora do país ou já não estão neste mundo.

Angola: pobreza e baixo consumo privado

Numa economia de mercado, quem vende trava uma luta constante para ter o seu produto ou serviço entre as escolhas dos consumidores cuja decisão de compra está limitada pelo dinheiro disponível.

A redução do poder de compra das famílias angolanas nos últimos anos constitui um desafio para sobrevivência das nossas empresas. A inflação galopante dos últimos anos aconteceu num ambiente de decréscimo contínuo da economia, com aumento do desemprego que completa a fotografia de um processo de empobrecimento singular desde que o país alcançou a paz em 2002. Por exemplo, o PIB per capita de 2021 (em USD correntes) representava apenas 41% do que era em 2014.

Tenho contacto regular com planos de negócios de empresas nacionais e sempre achei estranho a pouca atenção que muitos os empreendedores dão às questões demográficas e evolução recente e prospectiva do nível de rendimento. A redução do nível de emprego e o empobrecimento contínuo significam efectivamente que os empresários estão a disputar por uma pizza que está continuamente a diminuir o que explica parcialmente a baixa taxa de sobrevivência de novos negócios e a dificuldade das empresas existentes para manterem as portas abertas.

Num país com níveis de crédito bancário às famílias tão baixo, o consumo é especialmente sustentado pelo rendimento regular do trabalho e sendo este em média muito baixo, os níveis de poupança são igualmente baixos e o grosso do rendimento é utilizado na aquisição de bens e serviços essenciais.

O país continua efectivamente a viver ao ritmo do petróleo e a recente mudança de trajectória na evolução do PIB – que beneficiou de algumas decisões de política monetária e fiscal acertadas – não pode ser dissociada do mercado petrolífero favorável. Contudo, se o país não fizer as reformas do sistema político, judicial e de educação deverá manter a correlação extrema com o sector petrolífero e a empobrecer, onde qualquer jantar fora de casa é um luxo, o turismo é inacessível para o grosso da população e pouco que há para consumir é para comer, vestir, beber e pouco mais.

Sendo visível que desalinhamento com a procura existente está na base do fracasso de muitos negócios, podemos igualmente identificar negócios de sucesso que são sustentados por uma leitura correcta do consumidor-tipo, com a clara noção que a decisão de consumo não se pode separar da diminuta capacidade de consumo como se verifica nas ideias simples mas geniais de micro-dosagem que permite compras diárias de vários produtos que em mercados maduros são comercializados em doses bem maiores, servem de exemplo os pacotes de detergente para roupa ou whisky de qualidade duvidosa vendido em doses individuais que negligenciam a qualidade e focam nos baixos rendimentos que permitem ganhar no volume.

Contudo, nem todos os negócios conseguem explorar a micro-dosagem ou o hard-discount, estratégias que pela natureza sacrificam a margem mas dependem de grande volume o que é um desafio logístico e de tesouraria.

Ademais, a natureza de isolamento da economia agudiza igualmente a dificuldade de saída do marasmo e da capacidade dos empresários em explorar oportunidades em mercados regionais para compensar as dificuldades domésticas e o círculo vicioso continuará a prevalecer sobre o necessário círculo virtuoso.

Curiosamente, a alteração da bitola dependerá sempre do engenho dos empreendedores na busca de soluções inovadoras que funcionem neste mar de problemas. Porém, o caminho mais rápido para prosperidade continua a ser a criação de condições institucionais que aligeirem o esforço dos empreendedores e criem realmente condições que nos afastem da necessidade de super-heróis para termos os negócios que criam empregos e riqueza que o país tanto precisa.

As eleições de 2022 e o baixo nível de discussão

No próximo dia 24 de Agosto os angolanos estão convocados para eleger um novo presidente e uma nova configuração da Assembleia Nacional. O país é uma coleção de problemas e neste período de campanha eleitoral os partidos e seus cabeças de lista poderiam fazer um trabalho melhor em como pretendem transformar o país.

O período eleitoral é comummente referido na comunicação social como a “festa da democracia” e este espírito poderá estar a ser levado ao extremo do literal pelos partidos que parecem dedicados à carnavalização da democracia, apostando numa comunicação dominada por cartazes “vazios” e infestação de ruas com bandeiras.

Como em qualquer parte do mundo, o eleitor comum não lê manifestos eleitorais e o conhecimento dos programas é feito sobretudo por espaços dos partidos na rádio e televisão e como estes meios cobrem os eventos de campanha dos partidos, nomeadamente os comícios. No campo da cobertura mediática as nossas televisões continuam a pautar pelo desequilíbrio com tempo de antena favorável ao MPLA e programas de opinião única, sem direito a contraponto.

O contraponto em campanha eleitoral nas democracias atinge o seu auge quando os protagonistas debatem e são forçados a convencer as pessoas dos seus projectos, preparação e conhecimento mais detalhado das suas promessas com contraditório imediato que se diferencia dos monólogos que caracterizam os comícios e o tempo de antena. Infelizmente, mais uma vez não tivemos debates presidenciais, em particular entre João Lourenço e Adalberto Costa Júnior que lideram os projectos que dominam as intenções de voto de acordo com as sondagens que têm estado a ser publicadas há alguns meses pelo Movimento Cívico Mudei.

Seria importante ver o líder da UNITA a ser questionado sobre o que se pretende com a “consagrar a terra como propriedade ancestral” ou como pretende (e com que prazo) aumentar o salário mínimo da função pública para 150 mil kwanzas.

O não debate não nos permitiu também que o presidente João Lourenço fosse confrontado com flagrantes insuficiências do seu primeiro mandado, como por exemplo (i) a não realização de eleições autárquicas, a (ii) a contínua crise económica e degradação generalizada do nível e vida, (iii) a reversão do controlo sobre a comunicação social relevante e a (iv) ocorrência de incidentes de violência policial em manifestações que resultaram em mortes de cidadãos nacionais.

Contudo, há a registar a apresentação de veios condutores dos projectos de governação nos comícios, como a promessa de revisão constitucional de Adalberto Costa Júnior ou o aumento contínuo da contribuição na economia dos sectores não directamente ligados ao petróleo até 80% como prometeu o MPLA na busca da diversificação efectiva da economia angolana.

A utilização dos cartazes está muito longe do que eu esperava para uma campanha em 2022 num país com tantos problemas. A generalidade dos partidos comunica mal com cartazes, reduzindo a sua mensagem ao fenómeno do “vota no número tal”, sem apresentação de qualquer ideia que faça merecer o voto, incluindo partidos recém-criados cuja ideologia é desconhecida da maioria dos eleitores.

Em parte, o “vota no número tal” é uma manifestação da forma como os partidos olham para os eleitores que são por estes vistos como pouco sofisticados e, por esta razão, mais facilmente votam num número por insistência da mensagem do que numa proposta concreta num cartaz ou mesmo numa referência da promessas não cumpridas pelo incumbente como é comum noutras geografias, em particular onde não existe voto electrónico e a digitação do número no momento da escolha não é necessária.

Contudo, apesar do nível de acesso estar longe do ideal, podemos dizer que com recurso à Internet vamos conseguindo acompanhar a campanha com maior amplitude do que no passado pese o facto de se manter intacto o desequilíbrio no tratamento dos concorrentes por parte da comunicação social pública que tem uma inegável inclinação para amplificar a mensagem do MPLA.

Espero que nos próximos pleitos a transparência e confiança no processo deixe sejam boas o suficiente para que o discurso da desconfiança deixe de fazer sentido que a comunicação seja melhor e focada na discussão do presente e do futuro de Angola com um olho nos feitos e desfeitos do passado.

E se Angola fosse uma democracia de facto?

Luanda, 1961

Hoje é dia 4 de Fevereiro, uma das datas mais importantes da história recente de Angola e homenageada com feriado nacional, menção no hino nacional e nome do principal aeroporto do país. Em 1961 quando um grupo de angolanos decidiu rebelar-se contra o poder colonial e mais uma vez ensaiar uma alteração estrutural por via da força, com o fim último de acabar com o colonialismo começando pela libertação de presos políticos em Luanda, não existia um grande plano sobre como uma Angola mais justa deveria estar organizada, o que se queria a todo custo era pôr termo ao regime colonial sustentado numa hierarquia racial humilhante para a maioria dos cerca de 5 milhões de habitantes da altura.

Se em 1961 a implantação de uma democracia não centrava o debate, no presente é uma solução indicada por boa parte das pessoas para que Angola finalmente realize o seu potencial. Neste blogue que discute questões económicas de Angola, em diferentes ocasiões defendi que mais do que um problema económico, Angola tem um problema político que limita a capacidade do país crescer mais e de forma mais harmoniosa.

Apesar de vivermos num país nominalmente democrático, com um governo eleito por sufrágio universal e com um parlamento, um olhar mais apurado (ou nem isso) permite concluir que o funcionamento das nossas instituições não se coadunam com o de uma democracia real, desde a quase inexistência de contrapeso ao poder executivo ao modelo de governação local centralizado. A minha questão é: e se fossemos uma democracia?

  • A comunicação social não estaria refém de decisões arbitrárias do governo que recentemente nacionalizou ou retirou de circulação todos os canais de televisão relevantes que não estavam sob seu controlo e isto iria permitir que tivéssemos o “4.º poder” a operar como fiscal adicional dos outros poderes e com a sua pressão forçar melhorias com impacto na vida da maioria;
  • Ainda sobre a comunicação social, a presença da oposição nos meios de comunicação não deveria ser um tema ao ponto de ser necessário o maior partido da oposição elaborar uma “lista de pedidos” para remediar a situação actual em que o líder do principal partido da oposição não merece uma ou várias entrevistas;
  • O responsável pela governação da minha província e/ou município seria eleito por mim e teria uma prazo para demonstrar se merece ter o mandato renovado ou se os eleitores dariam lugar à outro. Este exercício forçaria o governante a alinhar ao máximo os seus interesses com os do eleitor e disto resulta, regra geral, um governo mais eficiente cuja incompetência é punida nas urnas;
  • Se Angola fosse uma democracia real, o processo eleitoral que já era deficiente jamais seria alterado para um modelo de apuramento centralizado num país tão grande e com tantas limitações logísticas;
  • Tenho poucas dúvidas que numa Angola mais democrática a definição de prioridades para aplicação dos fundos públicos seria muito melhor que a actual que nos deixa sem uma rede viária nacional e local que cumpra com os mínimos olímpicos, com escolas públicas destruídas, com falta do mais básico nos hospitais enquanto são gastos milhões em benesses para um grupo restrito às custas de fundos públicos;
  • Tenho igualmente poucas reservas que se estivéssemos alinhados com as melhores práticas democráticas não existiram um clima de tensão em ano eleitoral porque estaríamos confiantes no sistema, inclusive que uma eventual contestação de resultados seria natural e competentemente resolvida pelos órgãos responsáveis para resolver disputas que naturalmente emergem numa sociedade.

Angola de 2022 é certamente muito pior do que os heróis do 4 de Fevereiro sonharam e acredito que um sistema com mais equilíbrio entre os poderes e com o voto a gozar do seu completo valor a nossa sociedade (e economia) estaria num estado mais avançado. O nosso sistema de educação seria maior, melhor e mais consequente, assim como teríamos infra-estruturas melhores e apontadas para o futuro com vias para acesso mais democrático aos confins do país e com telecomunicações mais modernas, abrangentes e acessíveis em termos de preços para que a nova economia pudesse florescer entre nós como já tem acontecido em outros países africanos.

Empreendedor angolano e o ecossistema débil

Os empreendedores angolanos, como boa parte das pessoas que habitam a nossa terra, têm vocação para o heroísmo. Criar um negócio em Angola é uma tarefa hercúlea mas manter o negócio vivo é ainda mais complexo.

O que torna a vida empresarial complicada em Angola é a inexistência de um ambiente propício para desenvolver negócios, é o que o Banco Mundial chama de “ambiente de negócios” e o pessoal dos projectos de raiz da nova economia (startup) chama de “ecossistema”.

A grande maka em Angola é a ineficiência grosseira do sistema político que se traduz numa vida económica e social regida por um conjunto de instituições que incumprem com o que delas é esperado. Por exemplo: (i) o sistema de educação não consegue capacitar com qualidade e quantidade a mão-de-obra de base, (ii) o sistema de justiça não oferece confiança no seu papel de árbitro neutro nos diferentes diferendos entre partes ou para assegurar que os crimes são tratados de forma isenta independentemente do seu autor, (iii) as aspirações da população não são acomodadas nas políticas públicas porque o poder político actual parece convencido que são imunes aos processos eleitorais.

Contudo, os empreendedores não podem esperar que o país magicamente se transforme naquilo que a maioria sonha, com escolas de qualidade, hospitais que funcionam dentro do desejável, estradas que merecem este nome, telecomunicações modernas e a preços decentes e financiamento diverso e abundante para as melhores ideias. Assim, os nossos empresários são forçados a desenhar os seus negócios para sobreviver a uma série de obstáculos desnecessários e assim perseguem os seus sonhos de criar riqueza para si e para os seus colaboradores.

A criatividade é um trato comum em todos os humanos, independentemente da sua origem, apesar de alguns ambientes serem mais propícios e receptivos à criatividade. A criatividade tem um papel importante na construção contínua de uma economia mas ela é mais produtiva quando associada à educação formal e técnica de qualidade que nos permite transformar uma ideia num negócio funcional ou, pelo menos, atractivo aos detentores de fundos para financiar meritocraticamente quem se destaca pelas suas ideias.

A capacidade de aproveitar as melhores ideias para somar à riqueza acumulada por uma sociedade (infelizmente, muitas vezes com níveis de distribuição que dificultam a vida social) é que diferencia as economias mais dinâmicas das menos preparadas. Por exemplo, nos Estados Unidos as melhores ideias mais vezes sim do que não encontram financiamento para chegarem ao mercado porque o capital é ávido a tomar partido no processo de criação de riqueza com base nas ideias e por é por esta razão que nos Estados Unidos continuam a surgir produtos e serviços que marcam a tendência, apesar do inegável crescimento da China, a combinação de liberdade social com economia de mercado, sistema de educação superior produtivo, disponibilidade de capital e uma cultura empreendedora e ambiciosa constituem a base da economia mais dinâmica do mundo.

Entre nós falta tudo o que foi enumerado acima, com excepção da criatividade. Os nossos empreendedores, regra geral não têm meios financeiros e a banca comercial não é desenhada para o apoio de projectos de raiz, sobretudo os da nova economia que por norma têm na base uma solução tecnológica (web, mobile ou as duas). A banca comercial empresta fundos dos seus depositantes e está sujeita a regulação do banco central que limita a exposição a certos tipos de risco o que reduz a atractabilidade do financiamento de startups. Nas economias mais maduras, existem alternativas de financiamento que colmatam este desencontro entre bancos comerciais e empreendedorismo com necessidade e seed capital, nomeadamente: (i) capital de risco ou venture capital (ii) business angels ou investidores anjo e (iii) mercado de capital.

Começando pelo mercado de capital, a sua inexistência até ao momento (existe bolsa em Angola que infelizmente transaciona apenas títulos de dívida) é o testemunho do atraso do nosso sistema financeiro que coloca o crédito bancário no centro do financiamento à economia, seja para o sector público como para entidades privadas. A possibilidade de listar um negócio a prazo numa bolsa sustenta a actividade do capital de risco e investidores anjo dos Estados Unidos porque é mais fácil apoiar uma ideia quando é fácil montar uma estratégia de saída e existe todo um sistema desenhado para suportar as melhores ideias, desde advogados à engenheiros e sempre subjacente a ideia que em caso de diferendos os tribunais cumprirão o seu papel e estas ideias facilitam e promovem os negócios.

Em Angola existe uma actividade minúscula de capital de risco que não tem a capacidade necessária para alavancar as milhares de ideias que não se conseguem financiar na banca e muitas das vezes este capital vem de entidades estrageiras apesar de termos entre nós um grupo de pessoas com invejável fortuna em nome próprio que na sua maioria encaixam no perfil do “marimbondo” como definiu o presidente João Lourenço quando se referia aos políticos que enriqueceram servindo-se dos cargos e capacidade de influência para aceder ao dinheiro público.

O elemento da origem da riqueza é indissociável do apetite para investimento em ideias de terceiros por duas razões principais:

  • o dinheiro ganho no mercado desenvolve o apetite para investir noutras ideias em que se acredita que podem triunfar no mercado e num país em que o grosso da classe mais afluente depende do acesso directo ou indirecto ao Orçamento do Estado para acumular riqueza, não se desenvolveu a cultura do capital de risco seja a nível colectivo como individual

  • a forma que as pessoas acumularam riqueza não só não as ensinou a valorizar os resultados do trabalho na transformação de uma ideia num negócio que passa a prova da negociação voluntária em mercado como as condiciona a envolver-se como investidores a luz da promessa de uma nova era que inibe a exteriorização de fortuna, sobretudo quando sobre esta pairam dúvidas sobre a origem honesta.

A exígua disponibilidade em Angola de capital para financiamento da fase inicial de investimento (seed capital) é só um dos obstáculos que enfrentam os nossos empreendedores num mar de horrores criados por décadas de governação não orientada para priorização dos problemas do colectivo. A qualidade da nossa educação, combinada com a falta de infra-estruturas num mundo que anda cada vez mais rápido está a afastar Angola da convergência com a modernidade, sendo que hoje registamos atrasos em algumas áreas bastante significativos relativamente aos nossos pares africanos como é o caso de pagamentos móveis, mecanização agrícola ou produção científica.

Os anos passam mas parece que o país não avança. Pelo contrário, Angola é persistentemente empurrada para trás com políticas erradas e com prevalência de um sistema deliberadamente desenhado para não responder aos anseios e reclamações dos governados. A inegável criatividade e o brio de muitos empreendedores ajuda a alimentar a esperança numa mudança de ciclo para breve, mas esta jamais ocorrerá com a manutenção da actual organização política que permite aos governantes ignorarem olimpicamente os problemas reais de Angola sem quaisquer consequências.

As contas da Sonangol e o país real

A Sonangol, a maior empresa nacional, considerando a sua abrangência e dimensão dos activos, publicou recentemente o Relatório & Contas referente ao exercício de 2020 (R&C 2020). O primeiro ano da pandemia de COVID-19 foi marcado pela quebra de expectativas e redução do consumo global que arrastaram para baixo os preços do petróleo e, consequentemente, para os resultados historicamente negativos da Sonangol. O resultado líquido negativo de Kz 2.384 mil milhões (c. USD 4,1 mil milhões) representa cerca de 6,6% (!) do PIB angolano de 2020 de acordo com estimativa apresentada pelo FMI.

Contudo, folheando o relatório, dei por mim fascinado pelo mapa que indica o número de postos de abastecimento da Sonangol Distribuidora espalhados pelo país e fui transportado para um artigo que escrevi em Fevereiro de 2015 titulado “A geografia do comércio externo angolano e a ‘luandização’ do consumo” em que procurei expor o peso desproporcional de Luanda no consumo da economia angolana.

Considerando as exportações por casas fiscais, sobressai a delegação do Soyo com exportações de $50,7 mil milhões em 2012 e $49,7 mil milhões em 2013, as exportações processadas no Soyo, no total do país, em 2012 e 2013 representaram 71,9% e 73,5% respectivamente. Cabinda ocupa o segundo lugar com 25,3% (2012) e 23,2% (2013) enquanto que Luanda aparece em terceiro lugar entre os principais portos de exportação com 2,8% (2012) e 3,3% (2013).

O contraste aparece com os números sobre as importações. Luanda aparece a cabeça com $23,1 mil milhões em 2012 e $21,4 mil milhões em 2013 (80,2% e 77,4% do total), segue-se o Lobito com 8,2% (2012) e 11,3% (2013) e depois aparece Cabinda com 5,7% (2012) e 7,4% (2013).

Na página 54 do R&C 2020 é apresentado um mapa com a dimensão da rede de postos de abastecimento (PA) e quotas de consumo que é demonstrativo do nível de desequilíbrio do consumo na nossa economia com Luanda a chamar a si 57,3% do consumo da rede da Sonangol apesar de ser a casa de 27,4% da população nacional segundo estimativa do INE (8,8 milhões de 32,1 milões de habitantes em 2021). Curiosamente as províncias integrantes da proposta de nova divisão político-administrativa estão na parte de baixo do ranking do consumo de combustíveis, o que indica a dimensão das suas economias e níveis de consumo em particular. As 5 províncias em causa respondem em conjunto por 8,1% do consumo de derivados de petróleo na rede da Sonangol que pode ser usada como proxy para o consumo nacional, uma vez que em 2020 a rede contava com 959 postos de abastecimento (Luanda com 345) e a segunda maior rede (Pumangol) tem apenas 79 postos de abastecimento.

Este mapa é mais uma ilustração de como a centralização do poder e da economia em Luanda tem criado uma país desequilibrado em que Luanda se constitui como um íman para grande parte das outras províncias que assistem a um êxodo contínuo que agrava a situação económica e afasta as perspectivas de desenvolvimento local num contexto de défice crónico de infra-estruturas e incapacidade institucional para alteração do quadro.

Na visão do governo uma reorganização das fronteiras sem alteração do modelo de governação é a solução para inverter a situação mas é pouco provável que a manutenção do modelo centralizado e centralizador que vigora com ligeiras alterações desde 1975 colocará a maior parte das províncias no caminho do desenvolvimento. Na verdade, Luanda é igualmente prejudicada pela falta de equilíbrio na distribuição da riqueza em termos geográficos porque passa a viver sob constante pressão demográfica que debilita a qualidade de vida na província.

Luanda é territorialmente uma das menores províncias do país e a sua população é 1/3 do total dos habitantes de Angola e consome, no mínimo, entre 55-70% do total consumido em Angola e estes números deveriam alimentar um debate sério sobre a forma que se está a construir Angola e como pode ser melhor aproveitado o potencial de todo o território nacional.

No R&C em que a Sonangol apresenta os seus piores resultados de sempre, foi o desequilíbrio na distribuição da riqueza em termos geográficos apresentado no mapa acima que deixou-me mais preocupado e acredito que este tema tem de passar a ser central nas discussões sobre o futuro de Angola, só espero que a sua solução não se resuma à discussão de uma nova divisão político-administrativa de mérito duvidoso como já discuti aqui.

Mais províncias é a solução?

O governo de Angola anunciou recentemente o seu plano de implementar uma nova Divisão Político-Administrativa (DPA) que no limite acrescentará 6 novas províncias ao mapa de Angola por via da redefinição das fronteiras de 5 províncias que partilham fronteiras com países vizinhos: Malange, Uíge, Lunda-Norte, Moxico e Kuando-Kubango.

Os promotores desta iniciativa defendem que foram movidos pelo objectivo de promover o “desenvolvimento equilibrado do território nacional, de combate às assimetrias, da aproximação e da prestação de serviços públicos com maior eficiência assim como de ocupação integral do território nacional”.

Quando estamos à uma ano de eleições gerais e sem notícias sobre as prometidas eleições autárquicas, a iniciativa parece incompreensível e inoportuna, mesmo sem entrarmos nos eventuais méritos da mesma.

Na defesa desta iniciativa, a nós apresentada como de origem presidencial, o governo fez sair um vídeo que indica que a dimensão de algumas províncias e o facto de partilharem fronteiras com outros países foi um dos motivos da sua integração na “lista”, sendo que a Lunda-Sul foi excluída apesar de aparentemente cumprir com estes critérios. Mas a inconsistência do racional não termina aí.

Proximidade

A mim choca que em 2021 o Presidente da República entende que a solução para aproximar a governação dos cidadãos é reduzir a dimensão das províncias. Aparentemente o modelo de governação centralizado e sem participação dos governados na escolha de quem os governa não tem qualquer relação com ineficiência da governação provincial, pelo que deduzi das explicações dos autores desta medida aumentando o número de províncias, mantendo tudo o resto constante, a governação melhora.

Aparentemente, criando mais províncias, ainda que mantendo o nosso modelo anacrónico de governação local, mais facilmente será resolvido o défice de infra-estuturas que afasta as províncias uma das outras e limita grandemente o potencial de criação de riqueza.

Dimensão e demografia

A extensão territorial com comparações ao território de Portugal, tal como era feito na era colonial por outros motivos, foi um recurso comum no vídeo que assisti sobre a nova DPA em fase de auscultação pública. Curiosamente pouco é dito sobre a geografia e demografia destas regiões numa linha comunicativa que fala muito num registo semelhante ao que levou à Conferência de Berlim no final do século XIX.

O nosso governo dá a entender que para um país com mais de 1,2 milhões de km2 18 províncias é pouco porque algumas delas são comparáveis à área total de Portugal. Contudo, nada foi dito sobre a África do Sul que tem praticamente a mesma área que Angola (1.219.090 km2) e tem o território dividido em apenas 9 províncias, num país federalizado com três capitais e com mais 15 milhões de habitantes que Angola.

A questão da população parece não ser central na nova DPA. Por exemplo, o Censo 2014 indica que a gigante província do Kuando-Kubango era casa de apenas 2,1% da população nacional (24,4 milhões na altura) e 60,1% dos habitantes do Kuando-Kubango viviam no município do Menongue, assim, estamos a caminhar para a criação de províncias desérticas porque existe uma intenção esquisita de “ocupação integral do território nacional” como se tal objectivo dependesse da criação de novas províncias. Considerando a projecção da população do INE, em 2021 a população estimada de Angola é de 32,1 milhões e 658 mil vivem no Kuando-Kubango e destes 395 mil vivem no Menongue.

E o referendo?

Na nota introdutória do site criado para informação e recolha de posições no âmbito da auscultação em curso (dpa.gov.ao), somos informados que “em Angola, a alteração da DPA é da competência da Assembleia Nacional, mediante proposta submetida pelo Poder Executivo”.

Contudo, na minha modesta opinião, uma alteração desta magnitude num país democrático nunca deveria ser tão centralizada com a participação pública reservada à auscultação pública com contributos submetidos pela Internet e por eventos coreografados em alguns municípios.

A redefinição de fronteiras neste nível deveria exigir um referendo com campanhas pró e contra durante algum tempo e entregar a decisão para a maioria. Avançar com uma iniciativa dessas surpreendendo todos e reservar 30 dias para auscultação parece-me um acto autoritário travestido de democrático.

E as autarquias?

O modelo de governação centralizado que temos actualmente está falido há muito tempo e a sua substituição deveria ser um desígnio nacional mas parece que para o governo de Angola não existem razões para pressa. As eleições autárquicas prometidas para 2020 foram adiadas e com 2022 à porta, nada se fala da democratização do poder local que deveria acontecer antes do fim do mandato de 5 anos para o qual João Lourenço foi eleito em 2017.

A expectativa de muitos angolanos é que ser governado por alguém escolhido pela maioria local e com um mandato limitado no tempo e com fiscalização de um parlamento local, pode transformar a dinâmica de desenvolvimento dos nossos municípios e aproximar os interesses políticos dos eleitos daqueles que os elegeram e, por esta razão, fica difícil entender que na perspectiva do nosso presidente a solução pelos problemas da ineficiência da governação local passa por aumentar o número de províncias.

Enfim…

Fico triste em saber que ao fim de 45 anos no entendimento de alguns as nossas fronteiras internas ainda não estão maduras e que aumentando mais províncias porque algumas delas “são do tamanho de Portugal” na actual configuração é a solução para falta de estradas, falta de acesso à água, educação deficitária, questões de segurança e tantas outras que a meu ver beneficiariam do abandono imediato do modelo actual a favor da democratização do poder local.

Olhando para os problemas de Angola não consigo perceber a necessidade ou a oportunidade para em Agosto de 2021 estarmos a brincar de conferência de Berlim com esta discussão quando nunca foi abordada enquanto são olimpicamente ignoradas questões bem mais urgentes. Contudo, o jogo ainda não chegou ao fim e até o apito final há que manter a esperança no melhor dos resultados.